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Sobral Pinto: o conservador que virou herói da esquerda brasileira

Ele virou herói da esquerda por ter feito algo inimaginável hoje em dia: atravessado as fronteiras ideológicas para defender esquerdistas.
Ele virou herói da esquerda por ter feito algo inimaginável hoje em dia: atravessado as fronteiras ideológicas para defender esquerdistas. (Foto: Reprodução/ Wikipedia)

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O jurista Heráclito Fontoura Sobral Pinto ocupa um lugar único dentre os expoentes do conservadorismo no Brasil. Esquecido pela direita, ele tornou-se em um herói da esquerda por ter feito algo inimaginável em tempos de polarização como os atuais: atravessado as fronteiras ideológicas para defender esquerdistas (cujas ideias repudiava) em nome dos princípios da democracia e dos direitos humanos, sem nunca abrir mão de suas fortes convicções católicas, conservadoras e anticomunistas.

Nascido em Barbacena (MG), em 1893, Sobral Pinto se formou e fez carreira no Rio de Janeiro. Já como advogado, depois de um período atuando como procurador de Justiça, ele foi incumbido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de defender os líderes comunistas Luís Carlos Prestes e Harry Berger em 1936. Após fracassarem na Intentona Comunista de 1935, os dois haviam sido presos pelo regime de Getúlio Vargas e se recusavam a ser representados por advogados. Nessas circunstâncias, a OAB era incumbida, por lei, de apontar um defensor. Muitos juristas se recusaram a fazê-lo antes de Sobral Pinto aceitar a missão.

A carta em que Sobral Pinto aceita defender os dois comunistas explicita o modo de pensar que guiaria o advogado até o final de sua longeva carreira:

“O que me falta em capacidade, sobra-me, porém, em boa vontade para me submeter às imposições do Conselho da Ordem; e em compreensão humana para, fiel aos impulsos do meu coração cristão, situar no meio da anarquia contemporânea a atitude desses dois semelhantes, criados, como eu e todos nós, à imagem de Deus. Quaisquer que sejam as minhas divergências do comunismo materialista – e elas são profundas – não me esquecerei, nesta delicada investidura de que o Conselho da Ordem impõe, que simbolizo, em face da coletividade brasileira exaltada e alarmada: A DEFESA”

No caso de Berger, que estava detido em condições degradantes (em uma cela minúscula, improvisada debaixo de uma escada em um quartel), Sobral Pinto via seus pedidos serem rejeitados sucessivamente pela Justiça. Em um episódio que entrou para o anedotário do direito brasileiro, ele chegou a apelar à lei de proteção dos animais.

Sobral Pinto teve uma participação fundamental no resgate de Anita, filha de Olga Benario e Luís Carlos Prestes. Olga havia sido enviada pelo governo Vargas para a Alemanha, seu país de origem. Lá, foi presa num campo de concentração, onde acabaria sendo assassinada pelo regime nazista. A filha do casal, Anita Leocádia, nasceu na prisão. Com a ajuda de Sobral Pinto, a documentação que atestava a paternidade de Prestes foi emitida a tempo de ser enviada à Alemanha para permitir que a garota ficasse com a família do pai.

Caridade cristã

O advogado defenderia ainda militantes integralistas, cujas ideias também repudiava. Assim como no caso dos comunistas, atuou de graça. O que o motivava, ele repetia, eram a caridade cristã e o apreço pelos direitos individuais.

Sobral Pinto não era um católico relapso, tampouco um conservador “não-praticante”: ao lado de intelectuais católicos eminentes, como Gustavo Corção, ele participou do Centro Dom Vital, dirigiu o Instituto Católico de Ciências Sociais e militou na Liga Eleitoral Católica. Comungava diariamente e ia à missa todos os sábados. Em 1945, o grupo Resistência Democrática, do qual ele foi um dos fundadores, publicou um amplo manifesto em que pedia o repúdio ao autoritarismo e apresentava um programa de governo que hoje pode ser definido como conservador e democrático, com Estado limitado, economia livre, uma Constituição legitimada pela vontade popular, voto universal secreto, liberdade de imprensa e liberdade religiosa.

Mas talvez a ideia mais central do manifesto seja a de direitos naturais inalienáveis, que não podem ser retirados pelo Estado. “Anteriormente ao direito positivo, decretado pelo Estado, existem outras esferas jurídicas superiores e às quais aquele deve conformar-se: o direito natural, ou a lei não escrita, cujo reflexo se encontra na consciência humana, e em que se fundam os direitos básicos da pessoa, o direito comum e o direito das gentes”, dizia o texto.

Ditadura

Sobral Pinto não se opôs ao golpe de 1964 - ele argumentava que João Goulart havia perdido o controle do governo para os comunistas. Mas, já no primeiro mês do novo governo, escreveu uma carta ao presidente Castello Branco (então provisoriamente no comando do país) advertindo-o de que sua candidatura à Presidência era claramente ilegal. Seria o primeiro de muitos embates com o regime militar, em uma queda de braço que incluiria uma passagem do advogado pela cadeia em 1968, logo após o Ato Institucional número 5.

Nos anos 1970, Sobral Pinto defenderia novamente Prestes, ao lado de outros 41 presos políticos. Neste caso, ele saiu-se vitorioso. Àquela altura, o advogado de estilo impetuoso e persistência insuperável havia acumulado um nível de respeito elevado no Judiciário.

“Era um advogado muito talentoso e com uma personalidade forte que fazia com que ele pudesse se impor perante os tribunais e, de uma certa forma, inibir quem pudesse exercer alguma coerção sobre ele”, afirma Ronaldo Poletti, doutor em direito pela Faculdade do Largo de São Francisco e professor aposentado da Universidade de Brasília.

Os confrontos constantes de Sobral Pinto com o governo instaurado em 1964 colocam em xeque a ideia de que o regime militar e o conservadorismo políticos são fenômenos da mesma natureza.

Ao mesmo tempo em que denunciava a ditadura, o advogado manteve-se em sua trincheira tradicionalista e contrária ao comunismo. Ele foi contra a lei do divórcio e a favor da educação religiosa nas escolas públicas. Combateu diretamente a Teologia da Libertação, contra a qual escreveu um livro. Em 1980, alertou contra “ perigo da infiltração da filosofia marxista no ensino”. Ele apoiava até mesmo a censura de obras artísticas tidas como ofensivas à moral.

Sobral Pinto também se pronunciou publicamente contra a legalização do aborto. “O sentimento que a natureza inscreve na alma feminina, que a eleva, enobrece e engrandece, é o da maternidade. A grande aspiração da mulher, por imposição da lei natural, é ser mãe. Nisto está sua grandeza (...). Pregando o aborto, defendendo-o, legitimando-o, a mulher demite de si a sua nobreza, o seu encanto, a sua bondade e a sua beleza, que são inerentes ao seu ser e à sua natureza”, escreveu.

Constituição é impraticável

Em 1983, Sobral Pinto juntou-se a políticos de todos os matizes na campanha das Diretas Já. Fez um discurso histórico na Candelária, no Rio de Janeiro, diante de centenas de milhares de pessoas. Ele morreria em 1991, não sem antes alertar que a Constituição de 1988 era impraticável.

Sobral Pinto atravessou boa parte do turbulento século 20 repleto de idas e vindas na política, com os mesmos princípios e a mesma causa: a defesa da democracia. Mas o seu legado deixa em aberto questões relevantes ainda hoje no Direito e na política. Uma delas: vale a pena se sacrificar pela defesa dos direitos de alguém que não acreditava no Estado democrático de direito, como Prestes? “O advogado não se confunde com as pessoas que ele está defendendo. Mas, do de ponto de vista filosófico, envolvendo pessoas como o Prestes, a situação é bastante delicada. É uma questão recorrente e está sempre em aberto”, diz Ronaldo Poletti.

Quando indagado sobre esse dilema, Sobral Pinto costumava citar um provérbio cristão, nas palavras que repetia sempre que fosse preciso: “Deve-se odiar o pecado e amar o pecador.”

Conteúdo editado por: Paulo Polzonoff Jr.

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