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Artigo

Sobre morrer (e morrer de Covid): Ivan Ilitch também quis encontrar um culpado

Por algum motivo, a imagem de um Monet doente, pintado por Jean Frederic Bazille, costuma ser associada a Ivan Ilitch. (Foto: Reprodução/ Wikipedia)

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Muito já se tem escrito sobre a Covid-19 e sobre os efeitos perversos dela sobre a sociedade como um todo e sobre cada um de nós. Mas eu ainda quero falar mais um pouco, preocupado em não chover no molhado.

Gostaria, sinceramente, de poder ser lido e “ouvido” pelos leitores deste jornal, sem a necessidade de ter de definir logo de cara de que lado estou, porque falo do fundo do coração. E o fundo do coração não tem lado nenhum. É fundo mesmo e só anseia por outro coração capaz de ouvir.

Já leram “A morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói? Eu poderia passar horas falando sobre esse clássico da literatura – pequeno e, ao mesmo tempo, cheio de conteúdo. Mas só quero falar de uma única coisa: a obra de Tolstói é uma elegia aos sonhos interrompidos.

No livro, Ivan é um homem comum, como muitos de nós, que nunca fez nada de errado; que, como todos nós, sonhou com uma vida melhor, uma família boa, uma boa esposa e um casal de filhos, menino e menina. Não é o sonho de muitos de nós? Ou, pelo menos, de muitos dos nossos conhecidos? E um emprego razoável, que lhe desse segurança, prestígio e, por que não?, alguma que outra regalia, mas sem nada de errado, nada de corrupto. Apenas um emprego que lhe desse uma boa posição social e lhe permitisse passar o resto da vida de forma cômoda e honesta, ou, como o próprio Ivan dizia, de uma forma decente.

Mas, de repente, quando parecia que a maior parte desses sonhos estavam se realizando, uma pequena dor no rim o deixa prostrado e, a partir de então, começa um caminho de dor, de medo, de angústia, de desespero.

Ivan, no começo, não acreditava que fosse nada grave, mas, com o tempo, começou a perceber que tudo ia de mal a pior. E se desesperava, porque parecia que os médicos não se entendiam: uns falavam que não era grave; outros que sim, que era muito grave. Alguns receitavam um remédio; outros, outro. E cada cabeça, médica ou leiga, era uma sentença. Todos falavam do alto de si mesmos o que o Ivan devia ou não fazer. Mas o único que sofria era o coitado de Ivan que, pouco a pouco, definhava.

Então, a gente para e pensa: o que é que está se passando conosco? O que é que está se passando comigo? Por que será que cada um fala uma coisa completamente diferente do outro? Uns querendo máscaras e outros dizendo que não precisa. Uns acreditando com fé e profunda certeza na vacina e outros dando risada e tirando sarro da “crendice” dos outros. O que é que se passou com o mundo? Comigo? Com o Ivan?

O que aconteceu conosco?

Com um desespero cada vez maior, Ivan vai sentindo que a vida dele está se esvaindo, que seus sonhos, seus projetos, tudo o que até pouco tempo atrás o impulsava para a frente agora está sendo interrompido. E não apenas os sonhos: esposa, filhos, amigos, colegas – tudo entrou em colapso. Como se, do nada, um enorme buraco preto abduzisse aquilo que havia de mais humano: o sentido da vida, o desejo de lutar, a vontade de sonhar.

Então, mais uma vez a gente para e pensa: valeu a pena? O que foi que aconteceu conosco? Nos últimos cinquenta, sessenta anos, era como se finalmente tínhamos o mundo na mão; como se, por fim, poderíamos construir o novo mundo. Estávamos, se diz, a um passo do Paraíso. Era uma questão de tempo, de um tempo muito curto, para que todos pudessem ser, todos pudessem ter e todos pudessem fazer tudo o que quisessem, tudo o que sonhassem. E, então, o sonho foi interrompido como os de Ivan Ilitch.

Olho ao redor e vejo gente cujos sonhos foram interrompidos. Gente que achava que existia o direito de ser feliz, gente que deu um duro danado para chegar aonde chegou e que, agora... E vejo gente cujos sonhos foram destroçados. Assim, sem mais, a epidemia chegou e levou tudo de roldão: sonhos, carinhos, vida. Tudo. De roldão.

Dói. E machuca. E, por isso, queremos desesperadamente encontrar um culpado. Porque não é possível que não haja um culpado para isso. Porque alguém tem que pagar por tudo o que nos foi tirado, por tudo o que poderia ter sido e, provavelmente, não será mais.

Então, pela terceira vez, a gente para e pensa: e o Ivan? O que é que o Ivan fez? O que foi que o Tolstói imaginou para o Ivan?

Acredito que possa consolar a muitos saber que Ivan também se revoltou. E também quis encontrar um culpado. E também ficou cada vez mais triste e amargo e exausto, porque nada disso é justo, nem pode ser justo, nem faz o menor sentido. Mas este meu texto não pode acabar assim, porque o ser humano, como já disse Viktor Frankl, é alguém sempre em busca de sentido; porque eu mesmo, que estou escrevendo este texto, procuro um sentido e, espero de verdade, talvez você que me lê também queira encontrá-lo.

O que o Tolstói fez entender ao Ivan foi que, num momento como o que vivemos, o que verdadeiramente importa não é nada abstrato, nem genérico, nem tão grande e universal que não tenhamos a mínima condição de abarcá-lo num abraço. O que realmente fez sentido para o Ivan e lhe deu a paz que ele ansiosamente buscava foi o gesto cálido e carinhoso do filho mais novo e do velho criado. Foi sentindo essa onda de calor humano que Ivan se lembrou da necessidade de pedir perdão. E quando o fez, mesmo que de forma atrapalhada, porque ele já nem sabia mais como é que se pedia perdão, Ivan dormiu feliz e em paz.

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