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Quando conversou com a reportagem da Gazeta do Povo, a americana Melissa Ohden havia acabado de chegar à Nova Zelândia. Lá, ela faria o que tem feito há mais de uma década: contar a história de uma sobrevivente de um aborto.
Em 1977, no estado de Iowa, a mãe de Melissa entrou em uma clínica para tirar a vida da filha, que estava no oitavo mês de gestação. O método escolhido foi a injeção de uma substância salina que lentamente faria o organismo de Melissa parar de funcionar. O bebê era grande demais para que o aborto ocorresse por outros métodos.
No quinto dia depois da aplicação, Melissa nasceu. Viva.
À época, em casos assim, era comum que a criança fosse deixada para morrer, sem assistência médica. É como se o bebê em gestação não tivesse direitos mesmo depois do parto.
Mas duas enfermeiras decidiram buscar ajuda, contrariando as ordens da enfermeira responsável pelo aborto — ninguém menos que a avó de Melissa.
O bebê havia nascido com menos de 1,5 kg, e sofreu problemas respiratórios por anos. Mas, de forma milagrosa, a tentativa de aborto não deixou sequelas físicas permanentes.
Já as sequelas emocionais demoraram mais a desaparecer.
Distúrbio alimentar e alcoolismo
Melissa, que foi adotada por outra família, tinha 14 anos quando descobriu sua verdadeira história.
A sensação de rejeição levou a um distúrbio alimentar e ao alcoolismo. Quando atingiu a maioridade, Melissa começou a procurar pela mãe e, aos poucos, foi descobrindo sua história.
A mãe dela era uma universitária de 19 anos que não pretendia abortar; foi a avó materna de Melissa quem a obrigou. Sem perceber que a filha havia sobrevivido, a jovem nada sabia sobre Melissa.
Quando finalmente encontrou a mãe biológica frente a frente, Melissa já tinha mais de 30 anos de idade. Ela conta que podia ver o arrependimento nos olhos da mulher.
Hoje, superados os traumas, Melissa é casada e tem duas filhas. Com o tempo, ela também descobriu que não estava sozinha. Melissa fundou a Abortion Survivors Network (Rede de Sobreviventes do Aborto), que já conectou mais de 600 pessoas com histórias parecidas à dela. Segundo a organização, cerca de 1.700 crianças sobrevivem a procedimentos de aborto por ano nos Estados Unidos.
Melissa já foi ouvida no Congresso americano e viaja pelo mundo contando a sua história.
Articulação global pró-aborto
À Gazeta do Povo, Melissa Ohden afirmou que a promoção do aborto ganhou proporções globais nos últimos anos, e que o movimento pró-vida precisa levar isso em conta quando definir sua forma de atuação.
“Acredito que, infelizmente, existe uma articulação global para promover o aborto legal. Seja através de financiamento governamental, fundações privadas e lobby intenso, a indústria do aborto tem os recursos para impulsionar esta agenda de forma agressiva em todo o mundo", afirma.
Ao mesmo tempo, Melissa está convencida de que o movimento pró-vida tem o potencial para mudar a realidade. Contar histórias como a dela é uma das formas de fazer isso.
Conselho aos pró-vida do Brasil
Melissa Ohden diz que, mesmo diante de um cenário hostil, os ativistas pró-vida devem persistir em sua mensagem contra o aborto. "Quero encorajar as pessoas pró-vida do Brasil a continuarem se manifestando e se envolvendo. Se eu puder usar a mim mesmo como exemplo, sempre há esperança – algo que, acredito, eu e outros sobreviventes do aborto personificamos", diz ela.
Além disso, ela afirma que ter encontrado hostilidade do outro lado do debate deve servir para reforçar a disposição dos defensores da vida. "Se eu pude me sentar na frente de políticos e agentes públicos, como faço repetidas vezes, sendo menosprezada tanto velada quanto abertamente, eles também são capazes de resistir.“
Embora o aborto continue legal na maior parte dos Estados Unidos, a causa pró-vida obteve vitórias importantes nos últimos anos.
Em casos como o de Melissa, em que o bebê sobrevive ao aborto, os profissionais de saúde são obrigados a fornecer atendimento médico imediato.
Além disso, a Suprema Corte reverteu a decisão Roe X Wade, de 1973, que impedia os estados de proibirem completamente o aborto. De lá para cá, alguns estados têm aprovado restrições ao aborto.
Por outro lado, outros seguiram o caminho inverso e derrubaram restrições ao aborto mesmo na fase final da gestação.
No Brasil, a lei não prevê punição por aborto nos casos de estupro, e risco à vida da mãe. Mas não há um limite legal para o aborto nesses casos.
A Câmara dos Deputados vem debatendo um projeto de lei que estabeleceria o limite de 22 semanas — a partir do qual a criança já tem chances de sobreviver fora do útero.
Crítica à inconsistência dos militantes pró-aborto
Melissa afirma que a ênfase da esquerda americana na liberação total do aborto, incluindo as semanas finais da gravidez, é contraditória.
"Se o aborto tardio é tão 'raro', por que ativistas e formuladores de políticas pró-aborto não estão dispostos e não conseguem nomear um ponto na gestação em que apoiariam que o aborto fosse restringido? Se é tão 'raro', por que eles lutam tanto para protegê-lo?“, ela indaga.
Nas atuais eleições, o presidente Joe Biden, que disputa a reeleição, tem se recusado a defender qualquer marco temporal a partir do qual o aborto seja proibido. Ele também prometeu codificar na lei o conteúdo da decisão Roe X Wade.
Melissa afirma que, mesmo que políticos a favor do aborto cheguem ao poder, a defesa da causa pró-vida deve ser vista como um esforço de longo prazo: "Toda vez que falamos e estamos envolvidos, as pessoas estão assistindo e ouvindo. Eu comparo isso a plantar sementes – não sabemos quando ou quanto algo crescerá a partir dos nossos esforços, mas algo crescerá".