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Menino afegão que foi mantido como escravo sexual | Aref Karimi/AFP
Menino afegão que foi mantido como escravo sexual| Foto: Aref Karimi/AFP

No verão passado, um comandante de polícia afegão me convidou para o seu posto para tomar chá – e também para ver o seu “lindo” escravo sexual. 

Eu passei por uma plantação de papoulas de ópio da altura do meu peito para chegar ao seu posto enlameado nos arredores de Tarin Kowt, a capital da província sulista de Oruzgan, que oscila na iminência de uma insurreição do Talibã. Debaixo do seu teto aberto, um adolescente frágil senta-se perto do seu captor brutamontes, lançando olhares tristes para mim enquanto enche em silêncio as nossas xícaras de chá. Cachos ruivos saem do seu chapéu bordado e seus olhos claros estão contornados por delineador. O comandante o exibe do mesmo jeito que um diretor de circo exibe um animal exótico. “Veja o meu lindo bacha (menino escravo)”, diz de modo alegre a casual, com uma arma pendurada do lado do seu corpo. 

O comandante, um aliado dos Estados Unidos na guerra contra o Talibã, não é exceção. Centenas de oficiais da Polícia Local Afegã (ALP), uma força de linha de frente armada e financiada pelos impostos dos cidadãos americanos, e outras milícias governistas são acusados de manter meninos escravizados para apresentações de dança e companhia sexual, muitos deles sequestrados. 

A libertação do regime puritano do Talibã em 2001 também trouxe liberdade para a “bacha bazi”, prática cultural de escravidão sexual e abuso de meninos, que geralmente são vestidos de modo afeminado e cuja posse é vista pelos líderes afegãos como um símbolo de poder e masculinidade. 

Conforme os Estados Unidos se aprofundam nos problemas afegãos, se preparando para enviar tropas adicionais a uma guerra que parece não ter fim, ainda desvia o olhar desse abuso oculto e perverso das crianças por aliados locais. A tolerância dos EUA com essa desumanidade atroz passa a mensagem de que é aceitável para as forças financiadas pelo país manterem crianças como escravos sexuais

Isso também tem grandes implicações de segurança. Ano passado eu relatei como o Talibã está explorando a bacha bazi para se infiltrar no alto escalão da segurança afegã, usando jovens escravos sexuais – muitos deles abusados brutalmente e com sede de vingança – como cavalos de Tróia para articular ataques internos mortais. 

É provável que a bacha bazi institucionalizada, descrita como estupro masculino culturalmente sancionado, continue sem interrupção na ausência de um impedimento oficial. A ONU pediu ao Afeganistão que adotasse com urgência uma legislação para criminalizar a bacha bazi e julgar rapidamente os oficiais culpados dessa prática. 

Um oficial de alto escalão descreveu a bacha bazi como um vício pior do que o ópio, dizendo que os comandantes competem – e às vezes batalham – entre si para capturar os meninos mais bonitos. Muitos deles rondam os bairros da região por meninos “que não viram o sol por anos”, um eufemismo cultural para beleza imaculada. 

Ano passado, quando eu trouxe à luz uma epidemia de sequestros de meninos, foi perturbador ver as autoridades fazendo vista grossa para o problema e usando a segurança para justificar a sua falta de ação. Na superfície, o presidente Ashraf Ghani prometeu tolerância zero para bacha bazi nas forças de segurança. Mas diversos oficiais no sul do Afeganistão me contaram que qualquer ação contra os comandantes culpados – um baluarte contra os insurgentes – os deixaria nervosos e faria com que eles abandonassem os seus postos com os seus seguidores, abrindo caminho para o Talibã. Não há, portanto, qualquer intenção de recuperar ou resgatar as vítimas inocentes cujas vidas foram afetadas por essa prática

Para entender completamente essa lógica, imagine um xerife americano com tendências pedófilas capturando crianças publicamente – e, ao invés de resgatar as vítimas e julgar o xerife, a administração facilita a sua prática criminosa e justifica que ele mantenha o seu emprego. 

Essa apatia cruel explica por que o comandante que eu conheci era tão indiferente quanto a manter um escravo sexual. Nenhum oficial de alto escalão foi julgado por bacha bazi; o comandante provavelmente sabe que ele também vai sair sem punição. 

O Afeganistão se tornou uma teia viva de abuso institucionalizado com a supervisão de Washington. Conforme o conflito se espalhou durante dezesseis anos, líderes abusivos foram apoiados para lutar contra os insurgentes – de membros de milícias rebeldes semeando tirania nos seus feudos a torturadores em uniformes militares. 

Apoiar aliados abusivos é uma estratégia descrita como combater fogo com fogo, que está lançando o Afeganistão em mais instabilidade e caos. 

Segurança é a preocupação principal, mas fechar os olhos para crimes como bacha bazi representa uma infração séria da emenda Leahy dos EUA, que proíbe o governo americano de oferecer assistência ou treinar forças armadas estrangeiras que violem os direitos humanos

Os Estados Unidos precisam estabelecer as suas influências em um país muito dependente para auxiliar no fim dessa cultura primordial de impunidade. Tropas adicionais e assistência financeira precisam ser dependentes de uma reforma urgente e julgamento dos abusadores. 

Para vencer no Afeganistão, a América não pode perder a sua humanidade.

*Chopra é chefe da redação da France-Presse em Cabul, mas está de mudança para Riad. 

Tradução de Andressa Muniz
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