Somos realmente menos ignorantes do que nossos ancestrais? Esta é a pergunta que norteia o o historiador britânico Peter Burke em ‘Ignorância: Uma História Global’, lançado no Brasil pela editora Vestígio.
Reconhecido na academia por enfatizar os fatores sociais e culturais em suas pesquisas, Burke resgata no livro as mais diversas formas de ignorância (da Antiguidade aos “hiperconectados” dias atuais). Também chama a atenção para o conhecimento perdido pela humanidade e que nunca mais será recuperado.
No trecho a seguir, ele mostra como historiadores, filósofos e teólogos refletiram sobre o tema ao longo dos séculos.
Nos séculos XVIII e XIX, alguns historiadores organizaram seus livros em torno da ideia de progresso, um movimento que parte da ignorância rumo ao conhecimento.
O início da Idade Média era muitas vezes apresentado como uma época de ignorância, a “Idade das Trevas”, contra a qual os escritores da era da luz, o “Iluminismo”, definiram-se.
O filósofo David Hume descreveu os séculos X e XI como “aqueles dias de ignorância” e “aquelas eras ignorantes”. Voltaire também descreveu a Idade Média como “ces siècles d’ignorance” [aqueles séculos de ignorância].
A ignorância foi muitas vezes ligada ao analfabetismo. Em seu relato da origem das “fábulas” (incluindo o que chamamos de “mitos”), o acadêmico francês Bernard de Fontenelle sugeriu que a ignorância e a barbárie começaram a declinar após a invenção da escrita.
Há uma ênfase semelhante no papel da escrita, juntamente ao da impressão, na história mais famosa já produzida em termos do progresso do conhecimento e do recuo da ignorância: o “esboço” do progresso da mente humana, de autoria de Nicolas de Condorcet, publicado postumamente, após seu aristocrático autor ter sido guilhotinado no curso da Revolução Francesa.
A tradição dos estudos da guerra contra a ignorância durou até o século XIX e foi além.
Um exemplo advindo da Inglaterra vitoriana é Makers of Modern Thought (“Criadores do pensamento moderno”, em tradução livre, de 1892), de David Nasmith, que carregava o subtítulo de “A luta de quinhentos anos (de 1200 d.C. a 1699 d.C.) entre ciência,
ignorância e superstição”.
Os autores de livros como esse escreviam de um modo que pode ser chamado de “triunfalista”, confiantes de que a guerra estava sendo ganha e de que sua época era mais esclarecida do que as antecessoras.
Em outras palavras, eles aceitaram a chamada interpretação “Whig” da história como a história do progresso [os historiadores “Whig” do século XIX acreditavam na luta contra um passado dito “opressivo” (ignorante) rumo a um presente que era “glorioso” (esclarecido) por força da adoção da democracia liberal, do governo constitucional, da garantia das liberdades individuais e do progresso científico].
Hoje, após um longo intervalo, alguns historiadores estão voltando ao tema da ignorância sem se comprometerem com as suposições “tipicamente Whig” sobre seu inevitável declínio.
Cornel Zwierlein e alguns de seus colegas alemães têm estudado a diplomacia e o império a partir desse ângulo, ao passo que Zwierlein também editou uma coleção de ensaios sobre o tema.
Alain Corbin, historiador francês há muito conhecido por sua escolha de temas incomuns – de alhos a bugalhos –, publicou um estudo sobre o que não era conhecido sobre a Terra no final do século XVIII e início do século XIX.
Em 2015, foi realizada uma conferência no Instituto Histórico Alemão, em Londres, a respeito de “Ignorância e Não Conhecimento na Expansão do Começo da Era Moderna”. No entanto, muitos outros domínios ainda precisam ser explorados.
Uma história que aborde escolas ou universidades, por exemplo, pode se concentrar naquilo que não foi ensinado, o que foi descrito pelo teórico educacional Elliot Eisner como o “currículo inexistente”.
A ideia subjacente a tal foco é a de que “a ignorância não é simplesmente um vazio neutro; ela tem efeitos importantes sobre os tipos de opção que alguém pode considerar, as alternativas que alguém pode levar em conta e as perspectivas a partir das quais se pode ver uma situação ou problema […] uma perspectiva limitada e provinciana ou uma análise simplista são a inevitável progênie da ignorância”.
Da mesma forma, um estudo de sucessivas edições de enciclopédias poderia examinar o
que ficou faltando nelas em diferentes lugares e períodos – especialmente o que foi removido porque já não se pensava que fosse correto ou importante.
Os historiadores da ignorância enfrentam um problema fundamental: como estudar uma ausência. Os cientistas sociais podem preencher a lacuna fazendo suas próprias pesquisas – por exemplo, de “ignorância do eleitor”.
Mas que possíveis fontes e métodos poderiam existir para construir a história daquilo que não pode ser visto?
Para C. S. Lewis, hostilidade à filosofia medieval era uma forma de ignorância
Uma forma relativamente tradicional de responder a isso é focar a noção de “ignorância” em diferentes períodos.
A carta “On His Own Ignorance and That of Many Others” [“Sobre sua própria ignorância
e a de muitos outros”], do poeta-acadêmico renascentista Francesco Petrarca, já foi fartamente discutida.
Petrarca cita Sócrates ao dizer “saber que não sabe”, enquanto se defende contra a afirmação de quatro jovens venezianos de que ele mesmo é ignorante.
Os argumentos acerca dos limites do conhecimento apresentados pelos céticos antigos
e modernos vêm sendo discutidos com frequência, tal como neste livro. Os teólogos, por sua vez, estudaram a tradição de uma “rota negativa” para o conhecimento de Deus.
As respostas recentes a esse desafio oferecem abordagens indiretas, semelhantes a seguir pedestres olhando para suas sombras.
Uma dessas abordagens pode ser batizada de “método retrospectivo”, mudando o
foco do aumento do conhecimento para o declínio gradual da ignorância.
Como o acadêmico espanhol Francisco López de Gómara apontou, em sua Historia general de las Indias (“História geral das Índias”, em tradução livre, de 1553), a descoberta da América “revelou a ignorância dos antigos, por mais sábios que fossem” (declaró la ignorancia de la sabia antigüedad).
O método retrospectivo se assemelha ao método regressivo empregado pelo historiador francês Marc Bloch quando ele estudava sistemas agrários.
No entanto, Bloch estava interessado em descobrir continuidades, enquanto o método retrospectivo enfatizava os contrastes entre passado e presente.
Sendo assim, ele está mais próximo da abordagem do colega de Bloch, Lucien Febvre, que explorou os limites do pensamento francês do século XVI por meio de conceitos ausentes, palavras que ainda não haviam sido cunhadas naquela época.
Uma segunda abordagem é estudar o que poderia ser chamado de “ausências eloquentes”, seguindo o exemplo de Sherlock Holmes.
Ao investigar um cavalo de corrida desaparecido, Holmes observou que o cão de guarda não latiu durante a noite, como normalmente teria feito quando confrontado com um intruso. O detetive tirou a conclusão de que o ladrão era, então, bem conhecido do animal.
De maneirasemelhante, os historiadores da ignorância podem praticar o método
comparativo para revelar ausências significativas, como fez o sociólogo alemão Werner Sombart em um famoso ensaio sobre a ausência, nos Estados Unidos, de algo que estava muito presente na Alemanha da época do próprio Sombart: o socialismo.
Por exemplo, Cornel Zwierlein, concentrando-se na ignorância ocidental a respeito do Levante do início da era moderna, notou a ausência de certos livros em bibliotecas privadas, notadamente a obra do grande historiador árabe Ibn Khaldun, bem como a ausência de certas informações nos livros que podem ser encontrados nessas bibliotecas.
Essa prática tem sido chamada de “história nula”, tratando a ausência de certo material em um arquivo, por exemplo, como um fenômeno significativo.
Relembrando: a comparação de textos escritos por diferentes viajantes para um mesmo lugar revela as lacunas em cada texto, permitindo ao historiador perceber o que o autor não viu.
Uma terceira abordagem é virar a narrativa triunfalista tradicional de cabeça para baixo, substituindo a ênfase no recuo da ignorância por um relato de seu avanço ou mesmo (como sugerido anteriormente) de sua “explosão”.
Tal forma de registro conta a história da extinção de línguas, da queima de livros, da destruição de bibliotecas, do esquecimento coletivo das descobertas, da morte de pessoas sábias e assim por diante.
Em resumo, ela oferece uma ênfase nos perdedores, e não nos vencedores; no fracasso, e não no sucesso.
O valor dessa abordagem érevelar a unilateralidade da história tradicional, o que os historiadores costumavam chamar de “viés”. E sua fraqueza (se essa abordagem for perseguida isoladamente) é que ela é igualmente unilateral, ou o outro lado da moeda.
Um caminho possível para uma reconciliação entre essas duas interpretações da história já foi sugerido nos anos 1950 por C. S. Lewis, acadêmico de Oxford mais conhecido como autor de ficção [escreveu, entre outras obras, ‘As Crônicas de Nárnia’] e teólogo leigo.
A introdução de Lewis à sua história da literatura inglesa na Renascença enverga o cativante título de “Novo conhecimento e nova ignorância”.
O autor alegava que a hostilidade à filosofia medieval por parte dos humanistas da Renascença era uma forma de ignorância e, a partir dessa premissa, passou a generalizar sua argumentação.
“Talvez cada novo conhecimento crie um lugar para si mesmo dando origem a uma nova ignorância. O poder de atenção do homem parece ser limitado; cada prego batido afasta outro”.
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