Os episódios recentes envolvendo um prefeito e um gibi com uma cena de beijo entre dois meninos, bem como a história, posteriormente negada, de que um documentário sobre a vida e a obra de Chico Buarque tinha sido vetado pela Embaixada do Brasil numa mostra de cinema no Uruguai, sem falar na menção de repúdio de alguns deputados catarinenses contra um livro de poesia despertaram, entre intelectuais, artistas e até YouTubers, o temor e o fascínio da censura.
É uma censura ilusória e paranoica, fruto de um delírio romântico e de um vazio existencial muito próprio do nosso tempo. A censura no Brasil de setembro de 2019 (melhor deixar claro porque tudo pode mudar no mês que vem) é um moinho de vento subsidiado pela Lei Rouanet, contra o qual lutam ativistas solitários por trás de telas frias de computador, mas de barriga cheia.
Porque nada, a não ser talvez o bom gosto, impede uma pessoa de entrar agora mesmo numa livraria, física ou virtual, para comprar um exemplar de qualquer obra que pudesse ser considerada “subversiva” por esse governo malvadão.
Salvem as bruxas
O clima de medo, contudo, fez a revista 451, especializada em literatura, trazer na capa de sua edição de outubro a atriz Fernanda Montenegro, aquela que disse que Gwyneth Paltrow só lhe tirou o Oscar de Melhor Atriz em 1999 por ser “loirinha, bonitinha e meiga”.
Com uma expressão dramaticamente soturna, toda cheia de preocupação política, social e moral, ela aparece presa por cordas a uma fogueira na qual os livros fazem as vezes de lenha. Embaixo, lê-se a inscrição (manchete?) infantil, indigna de uma redação daquelas que eu escrevia na sexta série: “Salvem os livros. E as bruxas”.
A parte das bruxas é curiosa e me fez buscar uma explicação. Pelo que entendi, ela faz referência à personagem tradicional da literatura infantil, que aparentemente corre perigo e eu nem estava sabendo. Mas atenção: a campanha pela salvação das bruxas só vale até o dia em que descobrirem que uma delas fez um comentário transfóbico ou, pior, pintou o rosto durante um ritual macabro qualquer.
Fernanda Montenegro serve de modelo porque a revista também noticia o lançamento das memórias da atriz.
Censura, eu quero uma para vender
Mas é a parte da fogueira de livros que me chamou mais a atenção. Primeiro porque, até onde a vista alcança, os livros não correm o perigo de serem queimados em praça pública. Não há absolutamente nenhuma iniciativa neste sentido em nenhum lugar do Brasil. O presidente Jair Bolsonaro, em que se pese todos os seus muitos defeitos, até agora não propôs um grande arraiá com quadrilha em torno de uma fogueira feita com os clássicos da literatura brasileira ou com biografias de atrizes.
Aliás, os únicos index prohibitorum que conheci em vida foram elaborados por progressistas. Informalmente, claro, que é para não deixar rastro. São listas que circulam na privacidade dos e-mails acadêmicos, recomendando a professores e alunos e aqui e ali um leitor desavisado que estava de passagem jamais, em hipótese alguma, de jeito nenhum se atrever a ler autores conservadores e/ou cristãos e/ou que um dia ousaram contrariar a cartilha do politicamente correto.
A imagem da fogueira de livros à espera de uma chama atraiu minha atenção também porque os livros hoje em dia são mais um objeto de afetação do que um instrumento de disseminação da cultura propriamente dito. Prova disso é o sucesso desses clubes de assinatura que vendem livros belíssimos e caríssimos e politicamente corretíssimos que servem mais para serem exibidos às visitas naquele sarau woke de sábado do que para serem lidos, sujos, riscados, rabiscado e manchados de café – como convém a um livro que preste.
Aliás, a revista traz em seu nome uma referência a Fahrenheit 451, o clássico da literatura distópica de Ray Bradbury. No livro, que tive o prazer de conhecer por meio da famosa lista do escritor e ex-professor Cristóvão Tezza, bombeiros são chamados não para apagar incêndios, e sim para queimar bibliotecas. A obra é, obviamente, uma metáfora sobre os regimes totalitários que impedem a disseminação do conhecimento, a autorreflexão, o livre pensar, aquela coisa toda.
O que nem Bradbury nem o pessoal bonzinho que acha que os livros podem servir de combustível de uma grande fogueira autoritária num futuro imediato ousaram imaginar é que o maravilhoso mundo da literatura estivesse ameaçado pelo puro desinteresse do público. A crise do mercado editorial está aí e não me deixa mentir. A literatura não precisa mais de um governo ditatorial, autoritário, totalitário e/ou fascista para acabar. Os leitores é que optaram por deixar de existir (ou existir apenas como uma seita excêntrica e comercialmente inviável).
Se um dia os livros entrarão em extinção, portanto, não é porque um déspota nada esclarecido assim quis. É porque eles foram incinerados numa fogueira de silêncio, de analfabetismo consentido e até orgulhoso – faceta de um anti-intelectualismo apartidário, espontâneo, sorrateiro e destruidor.
Um fascismo para chamar de seu
O que me leva à conclusão necessária de que a capa da revista, além de escandalosamente piegas, sentimental e feia (mas pode chamar só de kitsch mesmo), reflete apenas o desejo, por parte de certa intelectualidade e de certa “nata cultural”, de ter um fascismo para chamar de seu. De ter um ditadorzinho imaginário contra o qual lutar. De ter uma censurazinha de mentira para burlar e, quem sabe, com ela ganhar a notoriedade que não podem obter pelo talento e trabalho.
O que eles querem, no fundo, é uma fogueira de livros para apagar com as lágrimas sempre muito profundas e inquestionavelmente virtuosas de quem se diz defensor da liberdade (desde que socialmente justa, politicamente correta, racialmente diversa, etc.), mas que, na calada da noite, no conforto de sua luxuosa mansarda comprada com o dinheiro suado da herança, bebendo um Aperolzinho e ouvindo uma versão orquestrada de funk proibidão, se deleita mesmo é com a nostalgia segura de um tempo em que escritores tinham alguma relevância.