Cheburashka, o Mickey soviético: mascote dos russos| Foto: Reprodução
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Em um grande palácio de gelo, escondido em um país ao norte da Europa, vive uma rainha com poderes mágicos. Ela usa um vestido azul-claro e é capaz de criar neve e controlar os ventos. É a protagonista de um desenho animado que fez muito, muito sucesso, a ponto de ser exaustivamente reproduzido até em países rivais.

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Muito antes de “Frozen: Uma Aventura Congelante” angariar fãs entre chineses, russos e iraquianos em 2013, uma animação soviética quebrou a Cortina de Ferro em plena Guerra Fria, e levou os Estados Unidos a trabalhar na dublagem de um desenho baseado no conto dinamarquês que inspirou a história da rainha Elsa. “A Rainha da Neve”, de 1957, é uma das animações de maior sucesso da história da URSS e representa um dos pontos altos de uma indústria feita para bater de frente com a Disney e inculcar a “alma russa” nas crianças desde cedo.

Desde os primeiros anos do século XX, a indústria da animação se mostrava promissora na Rússia; com produções em stop-motion (filmagens de objetos reais em sequência) com uso de marionetes e até de insetos embalsamados. Até que a revolução de 1917 mudou os rumos do país e da arte. A década de 1920 seria dedicada a desenhos satíricos, deliberadamente propagandísticos. “Interplanetary Revolution” e “Soviet Toys” (“Revolução interplanetária” e “Brinquedos Soviéticos”, em tradução livre), de 1924, fazem parte dessa leva: ridicularizam a burguesia e exaltam símbolos do comunismo, conclamando a população para a revolução.

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“Em geral, os temas folclóricos e imaginativos (como animais antropomorfizados, personificação de objetos inanimados, etc.) não eram considerados atraentes para a cultura soviética de vanguarda (por exemplo, em 1924 e 1928, os Congressos de Educação Pré-escolar condenaram como inadequados contos antropomórficos ou de fantasia). Tudo deveria convergir para a construção do novo homem do futuro”, explica a tradutora Márcia Xavier de Brito.

Foi o próprio Josef Stálin que, ainda como secretário-geral do partido, levou a União Soviética a investir no ramo. Fã de desenhos animados, Stálin compreendeu logo que o sucesso de seu projeto de poder dependia do controle do cinema. “Com a ascensão do nacionalismo, a ideologia soviética começou a buscar suas raízes e história nacionais. O interesse pelo folclore foi revivido”.

“A Rainha da Neve”, de 1957, é uma das animações de maior sucesso da história da URSS e representa um dos pontos altos de uma indústria feita para bater de frente com a Disney

Soyuzmultfilm

É nesse período que o Estado soviético decreta a fusão dos principais estúdios de animação da época, Mosfilm e Lenfilm, para a criação da empresa que seria a Disney soviética: a Soyuzmultfilm, fundada em 1936.

Três anos antes, o animador Viktor Smirnov, que chefiava uma empresa sediada em Nova York responsável pela distribuição de filmes soviéticos nos Estados Unidos, foi incumbido de estudar os processos de animação nos estúdios Disney, antes de voltar para a Rússia. Em 1935, o próprio Walt Disney enviaria os curtas Três Porquinhos e Mickey Mouse para o Festival de Cinema de Moscou.

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“Nesse período, o Soyuzmultfilm produziu desenhos animados de vários tipos: os educacionais (como escovar os dentes, regras de tráfego, etc), os de contos de fadas moralizantes (mais nacionalistas e conservadores) e, um terceiro tipo, mais propagandístico, de conscientização político-social”, explica Márcia.

“Sob a liderança de Stalin, o governo soviético tentou acender o patriotismo russo e no final dos anos 1940 lançou uma campanha contra os ‘cosmopolitas’ que se prostravam perante o Ocidente. Essa virada para temas nacionais fez com que proeminentes diretores de cinema e animação soviéticos adotassem motivos e personagens folclóricos em suas obras”, escreve o pesquisador Anatoly Klots, da Universidade de Washington.

Na contramão da esquerda contemporânea que cancela desenhos antigos, em termos de costumes, as animações soviéticas propagavam valores estritamente conservadores — daí o interesse não apenas no folclore russo, mas nos mesmos contos de fada que inspiravam Walt Disney (ainda que adaptados à estética soviética). Por ironia, as histórias de Hans Christian Andersen eram populares na URSS graças ao trabalho da imperatriz Maria Fedeorovna, mãe do último czar da Rússia, que conhecia o autor pessoalmente e teve seus filhos mortos pela revolução bolchevique.

“Nesse período, a União Soviética fez o melhor que pôde para tentar criar uma nova sociedade em que a população da Rússia se unisse em um só povo, numa ‘grande família’. A felicidade era obrigatória no governo de Stálin. Assim, para reforçar a mensagem, a propaganda do partido tinha necessidade de representações mais ‘tradicionais’ e as animações infantis caíram como uma luva, via cultura, para educar as gerações vindouras. A tradição aqui serviu à propaganda”, explica Márcia.

Masha e o Urso

Apesar da inspiração deliberada na Disney, os ventos da Guerra Fria afastaram a animação russa dos ideais “fantásticos” americanos e incorporaram o realismo soviético. “Nos desenhos russos dos pós-guerra até os anos 1960, por exemplo, as representações de animais foram perdendo os contornos ‘Disney’ (com roupas, chapéus, vivendo em casas etc) e ganhando contornos mais naturalistas — um momento antiamericanista e anti-Disney”, descreve Márcia.

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Com a morte de Stálin, em 1953, a indústria se tornaria um pouco mais flexível — ainda que alinhada aos ideais nacionalistas soviéticos. Nessa época, a URSS teria sua própria versão do Ursinho Pooh (mais sisudo e sem a camiseta vermelha), do Pinóquio (“The Adventures of Burachino”) e até seu próprio Mickey Mouse, o Cheburashka, um ratinho de orelhas gigantes que até hoje faz sucesso entre os russos — é considerado símbolo de boa sorte e foi o mascote da delegação russa nas Olimpíadas de 2016. A “Elsa soviética”, por sua vez, perdeu o posto de maior animação russa para “The Tale of Tales” (“O Conto dos Contos”), do animador Yuri Norstein.

Com a queda do comunismo, a indústria da animação foi à falência. Até o encontro de Norstein com o próprio Vladmir Putin, em 2011, que reclamou da baixa produtividade no ramo e retomou os vultosos financiamentos da era stalinista. Um dos sucessos do momento é “Masha e o Urso” que, em 2019, entrou para o Guiness Book como o filme de animação mais visto do YouTube, com mais de três bilhões de acessos.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]