Vários sites noticiaram a assinatura de um memorando de entendimento entre China e Brasil, na figura do ministro das Comunicações, Juscelino Filho, no qual a empresa SpaceSail proveria serviços de internet via satélite nos moldes da Starlink.
O acordo foi anunciado como derrota para a SpaceX e Elon Musk, com chamadas tratando a SpaceSail como “concorrente” e afirmando que ela “bateu” a Starlink. A verdade, como sempre, não acompanha o ufanismo.
Quem é a SpaceSail?
A China está investindo pesado em empresas aeroespaciais. A SpaceSail é uma delas, subsidiária da Shanghai Spacecom Satellite Technology, bancada pela municipalidade de Xangai, com um aporte de US$ 933 milhões (R$ 5,4 bilhões na cotação atual). Fundada em 2024, a SpaceSail é conhecida localmente como Qianfan, e já usou — acredite — o nome “G60 Starlink”. Eles planejam oferecer serviço de acesso à internet usando satélites de órbita baixa, inicialmente para o território chinês.
Isso é inédito?
Não, a Starlink já oferece esse serviço só prometido pela SpaceSail, e há outros concorrentes planejando entrar no mercado, como o Projeto Kuiper, da Amazon. A Rússia planeja um sistema próprio e a Europa planeja o sistema IRIS², nos mesmos moldes. Algo em comum nesses projetos é que nenhum foi lançado ainda, por um motivo simples:
O espaço é caro
Um lançamento espacial pode custar mais de US$ 100 milhões (R$ 581,3 milhões). Em um foguete Delta IV da United Launch Aliance (ULA, um fabricante aeroespacial), um quilograma colocado em órbita custa US$ 12.300 (R$ 71,5 mil). Em um Ariane 5, foguete da Agência Espacial Europeia, custa US$ 8.500 (R$ 49,4 mil). A SpaceX barateou enormemente o custo de lançamento, mas mesmo em seu foguete Falcon 9 o custo é de US$ 2.600 por quilograma (R$ 15.114/kg) enviado ao espaço.
Constelações com centenas de satélites demandam dezenas de lançamentos. A SpaceSail fez dois, cada um levando 18 satélites. O foguete usado, o Longa Marcha 6A, tem um custo por quilograma de US$ 11 mil (R$ 64 mil). Um lançamento dedicado custa US$ 70 milhões (R$ 407 milhões).
A conta não fecha
A SpaceSail promete terminar 2025 com 648 satélites em órbita. São 18 satélites em cada foguete, totalizando 36. Ao custo unitário de US$ 70 milhões por lançamento, são US$ 2,52 bilhões ao todo. Se todo o dinheiro da empresa fosse usado só para lançamentos, ainda faltariam US$ 1,5 trilhão (R$ 9,2 trilhões).
Como a Starlink sobrevive, então?
A Starlink, por ser uma subsidiária da SpaceX, domina toda a cadeia produtiva. Ela constrói os próprios satélites e os próprios foguetes, o que barateia bastante os custos. Além disso, a SpaceX domina a tecnologia de foguetes reutilizáveis, ninguém mais no mundo consegue pousar um foguete, vistoriar e lançar de novo alguns dias depois.
Alguns foguetes da SpaceX já foram lançados 23 vezes. Imagine a economia de não ter que construir 23 foguetes.
A reutilização é fundamental para viabilizar a indústria aeroespacial. Até hoje um foguete equivale a um caminhão que leva uma caixa de cerveja, chega no destino e é jogado fora. Há empresas chinesas tentando criar foguetes reutilizáveis, mas estão anos atrás da SpaceX.
O Projeto Kuiper, da Amazon, é um dos concorrentes da Starlink com mais chances de ter sucesso, pois a Blue Origin, empresa do bilionário Jeff Bezos, principal acionista da Amazon, está finalizando o New Glenn, um foguete próprio. Mesmo assim, o Projeto Kuiper contratou lançamentos também de outras empresas, inclusive a SpaceX, para atingir a cadência necessária de lançamentos.
Cadência é a palavra-chave. Para manter uma constelação de satélites você precisa lançar muito e lançar sempre.
A China como um todo efetuou 56 lançamentos orbitais em 2024, até o final de novembro. A SpaceSail ocuparia 64% desses lançamentos para colocar 648 satélites em órbita em 2025.
A SpaceX, sozinha, até 18 de novembro, realizou 77 lançamentos de satélites Starlink em 2024. No total são 6.676 satélites em órbita, com um plano de lançarem 12.000, e uma possível expansão para 30.000.
A Starlink dá lucro?
Com um investimento planejado de US$ 10 bilhões (R$ 58,13 bilhões), a Starlink precisa de uma base grande de clientes. Hoje são mais de quatro milhões. Em um evento 15 de novembro, Gwynne Shotwell, presidente da SpaceX, revelou que 2024 será o primeiro ano em que a Starlink dará lucro, mas o futuro do projeto depende da Starship, o superfoguete da empresa.
Os primeiros satélites Starlink eram pequenos, cada lançamento do Falcon 9 levava 60. A versão nova, muito mais poderosa, capaz de atender mais usuários com mais velocidade, é maior e mais pesada. Só cabem 20 por lançamento. Isso aumenta o custo. Com a Starship, a SpaceX poderá lançar 200 satélites de cada vez, o que é fundamental para expandir a constelação, e repor os satélites que ultrapassam sua vida útil.
Se a China ainda não conseguiu nem copiar o Falcon 9, que dirá a Starship.
E o Brasil com isso?
A SpaceSail não vai atender o território brasileiro tão cedo, o tal acordo é só mais uma peça ufanista, como as promessas de “dezenas” de empresas usando a base de Alcântara para lançar foguetes, ou a vergonhosa participação do Brasil na Estação Espacial Internacional, da qual fomos expulsos por falta de pagamento. Ao menos não houve até agora dinheiro público investido, ao contrário de casos como o foguete Ciclone, que seria desenvolvido em conjunto com a Ucrânia, mas — depois de R$ 1 bilhão afundado no projeto — foi cancelado.
Carlos Cardoso é editor de Ciências do Meiobit.com.
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