Em mais uma decisão que lhe rendeu o almejado selo de aprovação progressista, a Walt Disney Company anunciou que a Splash Mountain, um dos brinquedos mais antigos e populares dos parques de Orlando e da Califórnia, passará por uma reforma com o objetivo de banir de vez as referências ao filme "Song of the South" (1946), já eliminado dos catálogos oficiais da empresa após acusações de racismo.
Como noticiado pela Gazeta do Povo, o conglomerado do Mickey, em seu blog oficial, creditou a mudança ao desejo de “aumentar e melhorar a experiência dos visitantes e contar uma história totalmente nova” – sem nenhuma menção à obra que, embora vencedora do Oscar de Melhor Canção Original, foi relegada ao esquecimento. Agora, suas personagens retratadas na atração darão lugar às do desenho “A Princesa e o Sapo”, de 2009.
Entre versões live-action de animações clássicas com tramas repaginadas e novas histórias com cada vez menos “beijos do amor verdadeiro”, é fato que a Disney caminha a passos largos rumo à adequação à etiqueta pós-moderna. Para quem, como eu, assistiu amargurado à redenção da vilã Malévola no spin-off homônimo que envergonha a produção estonteante de "A Bela Adormecida", a novidade não é uma surpresa. Contudo, para que não se peque pelo reacionarismo de recusar automaticamente tudo o que é novo, o caso de "Song of the South" e a consequente transformação da Splash Mountain merece ser avaliado com atenção.
Revisionismo descompromissado
De partida, é importante ressaltar que as críticas ao filme (um híbrido de animação e filmagem com atores de carne e osso, revolucionário para a época) não surgiram junto com os livros de Djamila Ribeiro. O longa se passa no estado americano da Geórgia e conta a história de Johnny, um garotinho que, durante uma temporada na casa da avó, torna-se o ouvinte devotado de antigas fábulas americanas sobre um coelho safo a ludibriar um urso e uma raposa para escapar das armadilhas, contadas por um funcionário da fazenda.
Desde as primeiras exibições e relançamentos, houve quem se incomodasse com o tom saudosista que o tio Remus – o cativante contador de histórias cuja versão feminina e tupiniquim seria a tia Anastácia de Monteiro Lobato - usa para se referir ao passado (“tudo era melhor naqueles dias”, ele canta) presumivelmente escravocrata.
Sem as lentes contemporâneas, não é difícil assistir ao desenho como quem vê uma novela de época ou lê as histórias do Sítio do Picapau Amarelo: as coisas eram assim e hoje – ainda bem - não são mais. Daí o questionamento frequente sobre a decisão da Disney de simplesmente extirpar "Song of the South" dos catálogos enquanto a outros desenhos antigos que contenham representações estereotipadas de etnias basta um aviso de “representação cultural desatualizada”.
Some-se a isto o fato de que é pouquíssimo provável que, durante um passeio pela caverna encantada do coelho, representada no interior da Splash Mountain, uma criança venha a se questionar que passado é este do qual o tio Remus – que sequer está presente na atração – sente tanta saudade. Por esta ótica, seria possível dizer que a reforma não apenas é um ato de revisionismo descompromissado com a contextualização histórica, como também um tremendo desperdício de dinheiro.
Ocorre que a crítica ao politicamente correto que norteia a indústria do entretenimento em nada invalida o debate sobre o racismo inconteste que, em pleno século XXI, expõe sua mais face mais brutal em episódios como o assassinato de George Floyd ou nas crianças baleadas nas comunidades do Rio de Janeiro em situações que em nada se assemelham a um confronto. Do mesmo modo, dizer que os negros são pouco ou mal representados na cultura nada tem a ver com o discurso divisório de alguns pensadores que culpam a torto e a direito o que se entende por racismo estrutural.
Imaginação moral
Ouvi do professor Paulo Cruz, colunista da Gazeta do Povo, que o racismo é, antes de tudo, um problema de imaginação moral, a ser resolvido com as mesmas armas com que nos foi incutido ao longo dos séculos: arte, cultura e educação. Trocando em miúdos, é como se, de tanto ver os negros em posições subalternas – como a do tio Remus –, acostumamo-nos a tratá-los desta forma, ainda que nada nos obrigue a fazê-lo. Daí a importância de se preencher o arcabouço cultural e imaginativo de um povo com histórias nas quais o sucesso não seja prerrogativa de um só povo.
Por tudo isto, há que se reconhecer não o atraso de "Song of the South", e sim o mérito de "A Princesa e o Sapo", tema da nova Splash Mountain. Em um país multiétnico como os Estados Unidos, é de se surpreender que a primeira integrante negra da seletíssima e bilionária franquia das Princesas tenha aparecido há apenas dez anos, precedida por uma representante chinesa e outra indígena.
A história de Tiana, a ambiciosa cozinheira que, ao se apaixonar por um príncipe irresponsável, torna-se também vítima dos planos de um feiticeiro maligno, foi a última cartada da Disney em duas dimensões. Ofuscado pelas produções 3D da Pixar – adquirida três anos antes do lançamento -, o filme não foi um sucesso de bilheteria, mas dificilmente desagrada os fãs do gênero, graças ao casamento virtuoso entre uma boa história e a tal representatividade.
É lícito e desejável, afinal, que meninos e meninas negros tenham a chance de ver os próprios traços refletidos em protagonistas instigantes como Tiana e Naveen, o Pantera Negra T’Challa ou a X-Woman Tempestade. Vale ressaltar, inclusive, que Tiana é mais do que a tríade de adjetivos da moda que a Disney lançou mão para defendê-la: “moderna, corajosa e empoderada”. É também bondosa, inteligente, linda e feminina, além de ser parte de um roteiro cujas referências históricas e culturais estão bem amarradas – um legado relevante do casamento com o time de Steve Jobs.
Foi a Pixar a responsável por conferir à “nave-mãe” um maior rigor nas pesquisas históricas para animações. Note-se, por exemplo, como o figurino de Tiana, exceto pelo vestido de baile (item obrigatório para o merchandising, é claro), obedece à ambientação na Nova Orleans dos anos 1920. O visual deslumbrante dos salões de baile, do boêmio bairro francês e das margens do rio Mississippi – onde certamente se dará o “passeio” do novo brinquedo – é arrematado por uma trilha sonora marcada por jazz, gênero deliberadamente homenageado no divertido crocodilo coadjuvante, Ray.
Se a Disney souber aproveitar este manancial estético, será difícil não apreciar o novo brinquedo, dado que não há conservador que se preze que seja capaz de discordar da máxima enunciada pelo professor de Filosofia do Boston College, Peter Kreeft: “contra a beleza, não há argumentos”.