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Stalin cancelou “Hamlet”na URSS — e o que isso pode ensinar sobre a cultura do cancelamento

Hamlet cancelado na União Soviética: censurar ou não censurar, eis a questão (Foto: Pixabay)

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A peça "Hamlet", de William Shakespeare, é considerada por muitos como a maior história já escrita.

Hamlet tem de tudo: fantasmas, lutas de espadas, suicídio, vingança, luxúria, assassinato, filosofia, fé, manipulação e um banho de sangue digno de um filme de Tarantino. É uma obra-prima da arte e do sensacionalismo, a única peça que vi apresentada ao vivo três vezes.

Nem todo mundo gosta de Hamlet, é claro. Um de seus detratores foi o primeiro-ministro soviético Joseph Stalin.

O ódio de Stalin pela peça quase se tornou uma lenda, em parte porque não está claro exatamente por que Stalin odiou a peça. Trabalhos acadêmicos inteiros são dedicados a responder à pergunta.

Em sua autobiografia "Testimony", o famoso compositor russo Dmitri Shostakovich sugere que Stalin via a peça como excessivamente sombria e potencialmente subversiva.

“[Stalin] simplesmente não queria que as pessoas assistissem a peças com tramas que o desagradavam”, escreveu Shostakovich; “Nunca se sabe o que pode surgir na mente de uma pessoa demente.”

Stalin não proibiu a peça, no entanto. Ele apenas deixou claro que desaprovava Hamlet durante um ensaio no Teatro de Arte de Moscou, o favorito de Stalin.

“Por que isso é necessário — interpretar Hamlet no Teatro de Arte?” perguntou o líder soviético.

Foi o que bastou, disse Shostakovich.

“Ninguém quis arriscar. Todo mundo estava com medo ”, observou Shostakovich. “E por muitos longos anos Hamlet não foi visto nos palcos soviéticos.”

Cultura do cancelamento e medo

"Hamlet" está seguro nos Estados Unidos hoje, felizmente. No entanto, a cultura de cancelamento eliminou muitas obras de arte — dos livros do Dr. Seuss e "E o Vento Levou" a filmes da Disney como "Peter Pan" e "Dumbo".

Essas obras de arte não estão sendo proibidas por censores do Estado; elas estão sendo eliminadas ou sofrendo restrições por parte de provedores de conteúdo, lojas online como a Amazon e editores sob o argumento de que são culturalmente ou racialmente insensíveis.

“Esses livros retratam as pessoas de maneiras que são prejudiciais e erradas”, disse a Dr. Seuss Enterprises à Associated Press ao anunciar que não publicaria mais seis livros do autor, incluindo "And to Think That I Saw It on Mulberry Street" e "If I Ran the Zoo".

Se essas obras de arte são culturalmente insensíveis é uma questão subjetiva, assim como a questão de Hamlet ser uma peça moralmente subversiva. Agora, há aqueles que negam que o Dr. Seuss esteja realmente sendo cancelado.

“Podemos debater se fazer isso foi a coisa certa, mas é importante apontar algumas coisas”, escreveu o crítico de cinema Stephen Silver no Philadelphia Inquirer. “A decisão foi tomada pela empresa que possui e controla os livros, não pelo governo, ou por uma ‘multidão’ que a pressionou.”

Silver está correto ao notar que há uma diferença entre censura governamental e autocensura. Mas sua alegação de que não houve pressão por trás da decisão merece exame minucioso. (Mais sobre isso em um momento.)

Em qualquer caso, embora existam diferenças na censura governamental e na autocensura, ambas são perigosas, observou George Orwell:

"Obviamente, não é desejável que um departamento governamental tenha qualquer poder de censura … mas o principal perigo para a liberdade de pensamento e expressão neste momento não é a interferência direta do [governo] ou de qualquer órgão oficial. Se os editoras e editores se esforçam para manter certos tópicos fora de catálogo, não é porque têm medo de um processo, mas porque têm medo da opinião pública. Neste país, a covardia intelectual é o pior inimigo que um escritor ou jornalista tem que enfrentar, e esse fato não me parece ter tido a discussão que merece."

O que Orwell estava dizendo é que o medo da opinião pública também pode resultar em censura.

Agora, para ser claro, não sabemos com certeza as motivações das editoras que decidem parar de publicar certos livros do Dr. Seuss. Assim como não podemos saber ao certo por que o Spotify de repente deixou sumir 42 episódios do podcast de Joe Rogan. Mas é razoável suspeitar que o ímpeto que levou ao cancelamento das obras de hoje não é diferente daquele que expulsou "Hamlet" da União Soviética: o medo.

Medo: um censor mais eficaz do que as proibições?

O cancelamento de Hamlet por Stalin mostrou que as proibições do governo não são as únicas maneiras de suprimir a liberdade de expressão, ou mesmo a mais eficaz. Como Shostakovich observou, a capacidade de Stalin de cancelar Hamlet com uma simples palavra foi uma demonstração de poder muito melhor do que uma proibição oficial do estado. Não exigia nenhuma lei ou anúncio formal. Bastou uma palavra dita em voz baixa e medo, uma emoção com a qual os americanos hoje estão familiarizados.

Um estudo recente do Cato mostra que a autocensura está aumentando nos EUA, com dois terços dos americanos dizendo que têm medo de compartilhar ideias em público por causa do clima político, que é cada vez mais dominado pelos militantes de esquerda.

Esses medos não são irracionais. Não faltam exemplos de americanos despedidos, envergonhados e cancelados por estarem do lado errado da cultura lacradora e militante. Este estado de coisas fez com que uma dezena de acadêmicos renomados assinassem uma carta na Harper’s Magazine condenando o clima intolerante de ideias.

“Editores são demitidos por publicarem peças polêmicas; livros são retirados de circulação por alegada falta de autenticidade; os jornalistas estão proibidos de escrever sobre certos tópicos; professores são investigados por citarem obras de literatura em sala de aula; um pesquisador é demitido por circular um estudo acadêmico revisado por pares; e os chefes das organizações são demitidos pelo que às vezes são apenas erros desajeitados”, dizia a carta. “Já estamos pagando o preço da maior aversão ao risco entre escritores, artistas e jornalistas que temem por sua subsistência caso se desviem do consenso.”

Esse clima não termina com escritores e acadêmicos com medo de oferecer certas opiniões, no entanto. Ele se estende a diretorias corporativas e comitês executivos, onde os indivíduos são pressionados a decidir qual arte é aceitável e quais opiniões devem ser compartilhadas nas plataformas.

Estar do lado errado do debate convida à destruição pessoal. É simplesmente mais fácil concordar em remover a arte "prejudicial" ou demitir aquele funcionário que despertou a ira da multidão do Twitter.

"As pessoas têm medo de desafiá-los", disse Robby Soave, da Reason, a John Stossel no ano passado, em uma entrevista sobre a cultura do cancelamento.

Como no livro "1984", de Orwell, na cultura de hoje você nem mesmo precisa cometer Crime de Pensamento para ser condenado por isso.

Pergunte ao Dr. Howard Bauchner, que em março foi destituído do cargo de editor-chefe da proeminente revista médica JAMA. O crime de Bauchner foi que, durante um podcast no mês anterior, seu editor adjunto questionou a existência de racismo estrutural.

“O racismo estrutural é um termo infeliz”, disse o Dr. Edward H. Livingston, que é branco. “Pessoalmente, acho que tirar o racismo da equação vai ajudar.”

"Todo mundo estava com medo"

Evidentemente que nos EUA atualmente não se corre o risco de ser executado por se recusar a ceder à pressão para autocensurar obras de arte. Isso não pode ser dito da União Soviética sob Stalin.

No entanto, há um fio condutor que permeia ambos os casos de censura: o medo.

“Todo mundo estava com medo”, disse Shostakovich.

Essas mesmas palavras podem ser aplicadas àqueles que estão se curvando para a cultura do cancelamento hoje.

Isso não quer dizer que as obras do Dr. Seuss sejam ou não culturalmente insensíveis, ou que Hamlet contenha ou não contenha temas nocivos ou subversivos.

É simplesmente dizer que o medo espreita por trás do apagamento da arte e da supressão da liberdade de expressão. Só por essa razão, é preciso resistir.

©2021 FEE Foundation for Economic Education. Publicado com permissão. Original em inglês.

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