Em 1992, a política e ativista de direitos civis alemã Vera Lengsfeld encerrou um casamento de 12 anos com o matemático e poeta dinamarquês Knud Wollenberger. O motivo do divórcio foi a abertura dos arquivos da polícia secreta da Alemanha Oriental, a Stasi, que havia surgido em 1950 e desaparecido em 1989.
Com o acesso aos registros que não haviam sido destruídos durante o processo de reunificação do país, ela descobriu que seu marido, com quem ela teve dois filhos, era informante do governo. Ele havia passado anos delatando a própria esposa.
Ao longo da primeira metade daquela década, casos assim se repetiram aos milhares. Nenhum outro sistema de espionagem e perseguição, em nenhum outro país, jamais havia alcançado o grau de capilaridade da Stasi, em parte graças à capacidade do órgão em transformar qualquer pessoa comum em informante.
Quem concordasse em apontar comentários e comportamentos suspeitos, em casa, no trabalho ou na escola, costumava contar com alguns privilégios, desde a liberdade de fazer viagens ao exterior até pagamentos de bonificações em dinheiro. Desde 1972, Wollenberger era um desses colaboradores voluntários e bem tratados – designados, dentro da Stasi, pela sigla IM, que faz referência à expressão Inoffizieller Mitarbeiter (ou “colaborador extraoficial”).
Filha de um oficial da Stasi, Vera Lengsfeld havia se convertido ao cristianismo em 1980. Sua fé a levou a participar de uma série de ações pela defesa da liberdade de expressão e pelo direito de ir e vir em seu país. Em 1988, ela foi presa durante uma manifestação por carregar um cartaz contendo o texto do artigo 27 da Constituição da Alemanha Oriental: “Todo cidadão tem o direito de expressar suas opiniões livremente e abertamente”.
Longo alcance
Os Inoffizieller Mitarbeiter prestavam informações a uma vasta rede de agentes – ao fim dos anos 1980, havia 90 mil agentes e 175 informantes para controlar 17 milhões de habitantes, o que significa que existia um investigador para cada 63 moradores do país. Eram considerados especialmente valorosos profissionais que trabalhassem em contato com muitas pessoas, como médicos, atendentes de lojas ou motoristas de táxi.
O alcance da rede da Alemanha Oriental superava até mesmo a Gestapo, instalada pelo governo da Alemanha unificada nazista e que contava com 40 mil profissionais para investigar 80 milhões de pessoas.
Os trabalhos de investigação geravam toneladas de documentos em papel. Aproximadamente 6 milhões de pessoas, pouco mais de um terço da população total do país, tinha ficha nos arquivos do órgão.
Não havia como escapar das garras da Stasi. Além dos informantes, que incluíam adolescentes que fiscalizavam seus pais e professores, os agentes utilizavam câmeras, instaladas em apartamentos, quartos de hotel, escritórios, comércios e restaurantes – até mesmo banheiros contavam com sistemas de vigilância capazes de gerar áudio ou fotos, que somam 28.400 fitas e 1,75 milhão de imagens. Bordeis eram fiscalizados de perto, a fim de gerar informações que pudessem ser usadas como arma de chantagem.
Diferentemente da antecessora, conhecida pelos métodos agressivos, a polícia secreta da Alemanha Oriental utilizava técnicas menos violentas: apartamentos eram revirados quando a pessoa estava fora de casa.
Agentes mentiam para as famílias que o suspeito era um informante, ou infiltravam pessoas para sabotar o desempenho profissional dos críticos do regime. Era uma forma de isolar e desacreditar os cidadãos descontentes, sem abarrotar cadeias ou transformar os perseguidos em mártires. Foi o que aconteceu com o psicólogo Jürgen Fuchs, que por anos foi torturado com ligações anônimas nas madrugadas e consultas e reuniões marcadas em seu nome, sem seu conhecimento.
Inquisição no século 20
Para virar alvo da perseguição cotidiana dos agentes da ditadura comunista, bastava reclamar de um buraco na rua, ou expressar o desejo de atravessar o Muro de Berlim para ver as cidades da outra metade da Alemanha. Esse método de perseguição buscava controlar os cidadãos no nível de seus pensamentos.
“As democracias procuram controlar as sociedades através de leis e de um sistema judicial eficiente. Considera-se que apenas quando as intenções transgressoras se tornam atos é que a transgressão pode ser identificada e então punida”, avalia o professor Edgard Leite, Presidente da Academia Brasileira de Filosofia.
“Nos regimes comunistas, à maneira da Inquisição, procura-se disciplinar as intenções. Trata-se de controlar o pensamento transgressor. E, assim, impedir o ato de transgressão. Por isso é importante que existam espiões que possam ter conhecimento das intimidades pessoais e familiares”, analisa ele, para completar: "O espião desvela o íntimo. Busca denunciar o pensamento. Por isso é importante ter espiões em todos os lugares”.
Para os delatores, diz Edgard Leite, essa estrutura paranoica confere grande poder. “O poder de decidir o destino do outro. O poder de saber o que o outro pensava. O poder de destruir o outro, por inveja, despeito ou vingança. Baseia-se, claro, em personalidades fracas ou ambiciosas em demasias em pessoas ressentidas ou vingativas. Mas esse recrutamento sempre funciona. Funcionou no caso da Stasi”.
Controle do futebol
Stasi é um apelido adotado pela população local, abreviatura de “Staatssicherheit”, ou “segurança estatal”. Seu nome oficial era Ministério para a Segurança do Estado. Sediado em um complexo em Berlim Oriental, o órgão mantinha escritórios em diferentes cidades do país. Dividido em dezenas de departamentos, o ministério praticava desde a violação de correspondências até a produção de materiais de leitura para as escolas.
O alcance do serviço de inteligência era tão amplo que o time de futebol bancado pela Stasi, o Dynamo Berlin, ganhou o campeonato nacional da Alemanha Oriental por dez anos consecutivos, entre 1979 e 1988. Oficiais circulavam nas ruas ou nas fábricas, de forma ostensiva, tanto quanto controlavam tudo o que era publicado pela imprensa.
O ministério também zelava pelo fornecimento de armas e treinamento para grupos terroristas, especialmente os instalados no Iraque, na Líbia, na Síria, no Irã e na Palestina. E era muito requisitado para auxiliar no treinamento de agentes de outras ditaduras comunistas, especialmente no Leste Europeu e na África – mas o intercâmbio com o governo cubano de Fidel Castro, por exemplo, também era intenso.
Quando o Muro de Berlim caiu e a Stasi foi desfeita, poucos agentes foram punidos por suas ações. O governo alemão mantém os arquivos pessoais abertos até hoje. Mas o impacto provocado por décadas de perseguição permanece até hoje, especialmente nas famílias desfeitas pelas suspeitas levantadas pelos agentes.
E, posteriormente, pelas revelações dolorosas a respeito de mães que foram investigadas por seus filhos, ou amigos que deduravam uns aos outros, ou relações que começaram por interesse. Hans Schulze, por exemplo, se apaixonou por uma mulher durante uma viagem de trabalho, em 1986. Ele geria uma empresa de produtos químicos na parte ocidental e seguia para uma feira comercial no lado oriental quando a conheceu. As conversas que Schulze manteve com a moça renderam 13 meses de prisão. Só em 2009 ele descobriu, por intermédio de uma reportagem sobre sua história, que a namorada era espiã.
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