Ninguém nega que as economias latino-americanas estão sofrendo e que o crescimento econômico na região mal deve chegar à metade da média global no ano que vem. E ninguém questiona o maior motivo para isso. A falta de regras claras e de um sistema jurídico confiável desencoraja o investimento e a administração empresarial eficiente.
Então por que a corte mais alta do Brasil está analisando uma das pedras basilares do código penal do país, algo que pode libertar milhares de criminosos condenados, gerar discórdia política e lançar uma nuvem sobre a iniciativa anticorrupção que livrou o Estado de ladrões aventureiros?
A questão que o Supremo Tribunal Federal tem em mãos parece prosaica: quando um criminoso condenado deve ser preso? A lei atual diz que o tribunal pode prender qualquer réu cuja condenação foi mantida em segunda instância. É um padrão sensato para um país onde os criminosos ricos usam advogados espertos para atulhar os tribunais com petições e embargos a fim de mantê-los longe da prisão indefinidamente.
Mas a lei incomoda os formalistas do direito que dizem que ninguém deve ser preso antes de exauridos todos os recursos. Eles mencionam a Constituição brasileira, que os constituintes encheram de salvaguardas bem-intencionadas, ainda que às vezes irreais, depois de um longo período de ditadura militar.
Isso tudo pode parecer apenas uma querela jurídica, não fosse por um nome sempre presente: Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente brasileiro que foi condenado duas vezes por receber propina, primeiro em 2017 e depois no ano seguinte, e sentenciado a 12 anos de prisão. Ele é o preso mais importante da famosa Operação Lava Jato, que investigou políticos acusados de roubar empresas públicas.
Os devotos de Lula, que são uma legião, nunca engoliram o veredito, dizendo que ele foi prejudicado por um juiz executor partidário. ([Nota do tradutor: Supostas] Mensagens de textos entre os promotores da Lava Jato e o juiz Sergio Moro parecem provar que Moro pode ter contornado algumas regras). De qualquer modo, as pessoas leais a Lula dizem que ele deve ser libertado. Mas a pior forma de lidar com essa questão é fazer com que a corte mais alta do país mude as regras jurídicas para todos.
As leis não devem ser inscritas na pedra, claro, mas tampouco devem ser mudadas ao sabor do vento. O Supremo Tribunal Federal já mudou sua posição quanto à prisão depois da segunda instância duas vezes na última década. Se a maioria mudar de novo, o que é bem provável, Lula pode ser libertado (por enquanto, já que ele será julgado em outros sete casos) – juntamente com outros 4.895 criminosos.
Sejam quais forem os méritos legais, tal inconstância é um problema para um tribunal de último recurso num país onde boa parte da classe política e dos empresários corruptores foram pegos assaltando os cofres públicos a fim de obterem lucro e glória política.
Os tentáculos do Supremo Tribunal Federal se estendem em várias direções: ele funciona como tribunal constitucional, corte de apelações e tribunal criminal para políticos eleitos com imunidade parlamentar. Graças à Constituição extremamente detalhada e abrangente do país, quase qualquer assunto, desde um caso de violência doméstica até corrupção, pode ser julgado pelo STF.
No ano passado, o Supremo recebeu mais de 100 mil casos. A única forma de lidar com isso é distribui-los entre os 11 ministros. Cerca de 95% dos casos são geralmente julgados por um único juiz (frequentemente usando decisões anteriores). As decisões tomadas pelos 11 juízes garantem vereditos bem divergentes.
"A divergência leva à incapacidade de criar uma jurisprudência clara, e a falta disso só dará origem a mais e mais casos”, diz Matthew Taylor, professor norte-americano que estudou os tribunais brasileiros. “É um círculo vicioso”.
A decisão sobre quando prender os condenados não afetará diretamente os negócios e investimentos. O caráter mercurial do judiciário é o que os afetará. Entre os muitos obstáculos que as empresas brasileiras enfrentam, as mudanças constantes nas regras e leis (o que dá origem a ainda mais leis) estão entre as mais prejudiciais. O Brasil tinha, em 2017, um total de 5,7 milhões de regras tributárias, em comparação a 3,3 milhões em 2003, de acordo com o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário.
Não é de se admirar que as empresas brasileiras gastem 1.958 horas para planejar o pagamento de impostos, mais do que qualquer outro país do mundo (a média mundial é de 237 horas). “Quem garante que o Supremo não mudará as leis tributárias daqui a um ou dois anos?", pergunta Maílson da Nobrega, ex-ministro da Economia do Brasil.
Mas os excessos parecem agradar aos ministros atuais, cujas decisões e discursos controversos são republicados por toda a Internet, transformando juízes em “políticos de toga”, como diz o analista político Christian Edward Lynch.
Os brasileiros não precisam de celebridades de toga ou de um tribunal tão sobrecarregado que não é capaz de tomar decisões duradouras. Eles precisam de estabilidade jurídica, circunspecção e de ministros que interpretem, e não reinventem, as leis do país. Uma forma de conseguir isso seria transformar o Supremo num tribunal constitucional, deixando as apelações, os casos criminais e políticos para as instâncias menores. "O Brasil precisa transformar o Supremo num tribunal invisível, onde os juízes não pontificam”, diz Lynch.
Os legisladores brasileiros, os juristas constitucionalistas e a sociedade terão de tomar essa decisão, provavelmente por meio de uma grande reforma do judiciário. E este veredito os juízes brasileiros que excedem suas atribuições não têm capacidade de dar.
Mac Margolis é colunista da Bloomberg para assuntos envolvendo a América Latina.
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