Com o recebimento, na semana passada, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 600, o Supremo Tribunal Federal (STF) já conta ao menos 10 ações questionando leis municipais que proíbem abordagens de gênero em sala de aula. Relator sorteado da ADPF 600, Roberto Barroso já suspendeu em decisão cautelar (provisória) dispositivos de leis municipais em duas outras ações. Na prática, busca-se deixar o caminho aberto para a ideologia de gênero.
Parte das ações deriva de um "combo" que o ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, protocolou no STF em junho de 2017. As outras são propostas por partidos políticos como Psol e PCdoB, ou por entidades privadas, como a ADPF 600, que questiona uma lei do município de Londrina (PR) segundo a qual ficam proibidas, em toda a rede municipal de ensino, “a adoção, divulgação, realização ou organização de políticas de ensino, currículo escolar, disciplina obrigatória, complementar ou facultativa, ou ainda atividades culturais que tendam a aplicar a ideologia de gênero e/ou o conceito de gênero estipulado pelos Princípios de Yogyakarta”.
Princípios de Yogyakarta são um conjunto de teses elaboradas por acadêmicos e ativistas, em 2006, na Indonésia, para orientar “a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero”. Embora eles não sejam de aplicação obrigatória pelos Estados, os ministros do STF já citaram os princípios em seus votos mais de uma vez, como foi o caso de Celso de Mello, ao propor a criminalização da “homotransfobia”, posição que prevaleceu por 8 votos a 3 em junho deste ano.
Em seu voto, Mello criticou o uso do termo "ideologia de gênero". Segundo o ministro, "determinados grupos políticos e sociais, inclusive confessionais, motivados por profundo preconceito, vêm estimulando o desprezo, promovendo o repúdio e disseminando o ódio contra a comunidade LGBT, recusando-se a admitir, até mesmo, as noções de gênero e de orientação sexual como aspectos inerentes à condição humana".
"Essa visão de mundo, Senhores Ministros, fundada na ideia, artificialmente construída, de que as diferenças biológicas entre o homem e a mulher devem determinar os seus papéis sociais [...], impõe, notadamente em face dos integrantes da comunidade LGBT, uma inaceitável restrição às suas liberdades fundamentais, submetendo tais pessoas a um padrão existencial heteronormativo, [...] impondo-lhes, ainda, a observância de valores que, além de conflitarem com sua própria vocação afetiva, conduzem à frustração de seus projetos pessoais de vida", disse ainda.
O que diz a mais nova ação no STF contra a ideologia de gênero
As demais ações que tramitam na corte estão sob relatoria de Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Edson Fachin, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Marco Aurélio. Como em outras ações que buscam invalidar leis municipais e estaduais contra a ideologia de gênero, ou que incorporem princípios do Escola Sem Partido, os autores da ADPF 600 argumentam que “o município de Londrina invadiu competência federal para tratar da matéria, violando o inciso XXIV do artigo 22 da Constituição Federal, que estabelece como exclusiva da união a competência para tal”.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e a Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais (Anajudh LGBTI), autores da ADPF 600, apontam ainda, citando artigos da Constituição:
- Violação ao princípio da prevalência dos Direitos Humanos e da igualdade material, e do repúdio à discriminação, e à desigualdade social;
- Violação do dever estatal de proporcionar acesso à cultura e à educação e de combater a desigualdade e a marginalização social;
- Contrariedade ao direito à educação para o pleno desenvolvimento, preparo para a cidadania, de acesso à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária;
- Violação do direito à liberdade de expressão;
- Violação do princípio da liberdade de cátedra e do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas.
A peça inicial argumenta que o termo “gênero” é mais amplo que “sexo” e teria “especial abrangência teórica, assentada em consolidada produção científica e prática”, de modo que “a reflexão sobre as imposições sociais e culturais que segregam, discriminam e assassinam, as(os) educadoras(es) permitem a interpretação crítica de variadas práticas que limitam oportunidades de integração plena de relevante parte da população”.
Citando dados sobre mortes de pessoas transgênero no Brasil, afirmam que lutar "pela relevância do debate significa, pois, comprometer-se com a reversão de tais quadros, ao tempo que excluí-lo – ou, ainda pior, proibi-lo – significa oficializar, pelas mãos do Estado, a barbárie” e que “a laicidade estatal, abraçada pela nossa constituição [...] impõe radical separação dos espaços público, da política, e privado, da religião. Neste sentido, torna-se fundamentalista, por definição, a postura de restrição do debate institucional em função de crenças pessoais”
Por fim, os autores denunciam suposta inconsistência do termo “ideologia de gênero”, afirmando que “a ampla distribuição de cartilhas apócrifas, de procedência desconhecida, forjando o real sentido da questão de gênero, conduziu informação distorcida sobre referida previsão nos planos educacionais”.
Ideologia de gênero: posturas opostas nas liminares dos ministros do STF
Nos outros dois em casos em que é relator de ações parecidas, o ministro Roberto Barroso deu decisões cautelares (provisórias) para suspender essas proibições em leis municipais. Foram atingidas normas de Palmas (TO), que já estava em discussão no Tribunal do estado, e Paranaguá (PR), a pedido da PGR. Segundo o ministro, o perigo na demora, que é um dos fundamentos para conceder liminares, era “inequívoco, uma vez que a norma compromete o acesso imediato de crianças, adolescentes e jovens a conteúdos relevantes, pertinentes à sua vida íntima e social, em desrespeito à doutrina da proteção integral”.
Para Barroso, além de violar a competência da União de legislar sobre o tema, a proibição cria um “desrespeito ao direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição”, representa a “utilização do aparato estatal para manter grupos minoritários em condição de invisibilidade e inferioridade” e compromete a “importância da educação sobre diversidade sexual para crianças, adolescentes e jovens”.
Antes de ser presidente, o ministro Toffoli também deu uma cautelar suspendendo parte de uma lei de Foz do Iguaçu (PR) sobre o tema, mas nenhum dos outros ministros do STF deu decisões cautelares em casos dessa natureza. Ao contrário, o ministro Alexandre de Moraes, em processo que questionava lei do Município de Novo Gama (GO), negou monocraticamente seguimento à ação, por entender que ela deveria, primeiro, ser julgada pelo Tribunal de Justiça do estado (TJ-GO).
“O cabimento da ADPF será viável desde que haja a observância do princípio da subsidiariedade, que exige o esgotamento de todas as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceitos fundamentais ou a verificação, [desde o início], de sua inutilidade para a preservação do preceito”, escreveu Moraes. “Caso os mecanismos utilizados de maneira exaustiva mostrem-se ineficazes, será cabível o ajuizamento da arguição”, completou.
A PGR recorreu da decisão, que aguarda inclusão no plenário, como várias das outras ações.
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