Os homicídios cometidos por policiais dominam o noticiário. Ainda assim, no primeiro semestre deste ano, 34% de todos os assassinatos que aconteceram na cidade do Rio de Janeiro foram provocados pelo tráfico de droga, e outros 13% foram causados por grupos paramilitares, totalizando 47% de todos os homicídios.
Apurado pela Delegacia de Homicídios (DH) da capital carioca, o percentual se mantém constante ao longo dos últimos anos. No segundo semestre de 2019, organizações criminosas responderam por 51% dos homicídios investigados. No segundo semestre de 2018, a taxa era de 50%. Em São Gonçalo, 84% dos casos registrados no primeiro semestre deste ano tiveram participação de organizações criminosas; em Niterói, 63%; em Itaboraí, 70%.
Segundo a polícia civil, mais de 1.400 comunidades do estado estão dominadas por grupos criminosos, sendo que o tráfico controla 81% deste total, contra 95% das milícias. Vivem no estado aproximadamente 56.600 criminosos em liberdade, contra 44.000 policiais militares disponíveis, sendo que 22.000 são os que atuam efetivamente na rua.
Os grupos criminosos podem ser responsáveis por uma fatia ainda maior dos assassinatos, segundo Marcelo Rocha Monteiro, procurador de justiça do Estado do Rio de Janeiro. “As facções criminosas dominam os territórios onde se instalam, controlando a vida dos moradores. Não existe a menor chance de um morador de comunidade dizer que a bala perdida que matou uma criança partiu da arma de um traficante. Se ele fizer isso, será assassinado”, afirma. “Portanto, ou ele dirá que o tiro partiu da polícia ou que não sabe de onde partiu”.
Balas perdidas e chacinas
Parte desses homicídios acontece por causa de disputas por território, que resultam em balas perdidas, como a que vitimou o garoto Ítalo Augusto de Castro Amorim, de apenas sete anos. Na noite de 30 de junho, ele foi atingido na cabeça num momento em que brincava no portão de casa, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Ítalo estava perto de outras crianças quando começou um tiroteio. Caiu no chão, e uma prima de sua mãe o levantou, imaginando que ele estava se protegendo. O menino estava ensanguentado. Foi encaminhado ao hospital, mas não resistiu.
Em outros casos, os ataques são propositais. No mesmo dia da morte de Ítalo, Maria Alice de Freitas Neves, de quatro anos, morreu baleada durante uma festa da aniversário na cidade de Três Rios. Um homem desceu de uma moto e saiu atirando. Dois dias antes, na madrugada de 28 de junho, morreu Rayanne Lopes, de 10 anos. Sua família participava de uma festa junina em Anchieta, um bairro da zona norte do Rio de Janeiro, quando quatro homens armados com fuzis desceram atirando de um carro preto.
Também morreram Josué de Oliveira Xavier, de 20 anos, além de Yuri Lima Vieira e Yan Lucas Soares Gomes, de 23 anos. A polícia trabalha com a hipótese de que a chacina foi resultado de uma disputa entre facções criminosas rivais. O pai de Yan Lucas seria traficante -- morreu em 2015, durante um confronto com a Polícia Militar.
Nesse caso em específico, a Polícia Civil se declarou de mãos atadas, porque, no início de junho, uma liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin proibiu operações em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia, a não ser em “hipóteses absolutamente excepcionais”. Para investigar a morte de Rayanne, afirma a corporação, seria “forte aparato operacional, com blindados e helicópteros”.
Liminar do STF
Enquanto a liminar reduz o alcance das ações policiais, a disputa por espaço entre diferentes grupos criminosos ligados ao tráfico de drogas, ou entre grupos milicianos, ou entre milicianos e traficantes, continua. No dia 8 de julho, por exemplo, a Polícia Militar realizou uma operação na Praça Seca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. O porta-voz da Polícia Militar, coronel Mauro Fliess, explicou que a guerra declarada entre milicianos e traficantes justificou a operação como “absolutamente excepcional”, como exige o STF.
“Há dados de inteligência e um planejamento meticuloso por conta da periculosidade da área, do grande número de pessoas armadas e dessa proximidade de área de mata”, ele declarou, em entrevista à Rede Globo. “Nos 150 primeiros dias do ano, sem a decisão do ministro Fachin, aprendemos 152 fuzis, ou seja, média de 1 fuzil por dia. Esse período sem operações significa que mais de 30 fuzis deixaram de ser apreendidos”.
De acordo com o procurador Marcelo Rocha Monteiro, a melhor maneira de lidar com as organizações criminosas, diz ele, é punir os traficantes de forma efetiva. Para isso, seria necessário alterar a legislação. “Tráfico é equiparado a crime hediondo. Durante alguns anos, a lei proibia condenados por esses crimes de progredirem de regime prisional. Em 2006, o STF, por 6 x 5, considerou a lei ‘inconstitucional’ nesse aspecto, o que é um absurdo”, diz ele.
“Hoje um traficante, mesmo preso com fuzil, cumpre apenas 2/5 ou, dependendo do caso, 1/6 da pena e volta às ruas no ‘regime semiaberto’ – e, claro, foge”, acusa o procurador. “Além disso, se o ‘soldado’ do tráfico for menor de 18 anos (estima-se que a metade, aqui no Rio de Janeiro), nem preso (‘internado’) será, ou ficará cerca de três meses apenas”.
Histórico de violência
O envolvimento de traficantes e milicianos nos episódios de violência da cidade não é exatamente novo, e já deixou milhares de vítimas ao longo das últimas décadas. “As taxas de homicídio aumentaram de maneira continuada, inicialmente, no Rio de Janeiro. Passaram de dez por 100 mil na década de 1950 para 25 por 100 mil na década de 1970 e alcançaram 50 por 100 mil nos anos 1980”, escreve Michel Misse, professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no artigo Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades.
Entre os anos 1950 e 1980, diz ele, o jogo do bicho foi um foco importante de violência. “Atualmente, apenas uma família disputa violentamente o controle de distribuição de máquinas caça-níqueis no Rio de Janeiro, mas o conflito não extravasa para além dos próprios atores envolvidos na disputa”, escreve o pesquisador.
A partir dos anos 1970, o crime organizado se estruturou e começou a ocupar espaços. “Nesse período, os presos políticos organizaram-se dentro das penitenciárias do Rio de Janeiro para reivindicar alguns direitos que lhes estavam sendo negados. A relativa vitória em suas reivindicações criou um efeito de demonstração para os assaltantes de banco comuns”, afirma Michel Misse.
“Eles também resolveram organizar-se para reivindicar direitos e impor seu domínio dentro do sistema penitenciário. Por isso, e pelo fato de alguns de seus líderes considerarem-se também de esquerda (embora não reconhecidos assim pelos presos políticos), passaram a designar-se primeiramente como ‘Falange Vermelha’ e, depois, pela imprensa, como ‘Comando Vermelho’ (CV), o nome que finalmente prevaleceu”. A partir dos anos 1980, novos grupos desafiaram o controle do Comando Vermelho, o que levou a uma corrida armamentista que disseminou episódios de tiroteios violentos.
“Traficantes pertencentes a comandos inimigos ou policiais versus traficantes engajam-se em conflitos armados constantemente, o que passa a ser percebido como uma guerra”, descrevem Alba Zaluar e Christovam Barcellos no estudo Mortes prematuras e conflito armado pelo domínio das favelas no Rio de Janeiro. “Nela, os ‘soldados do tráfico’ ou ‘falcões’ formam um ‘bonde’ que responderá ao ataque de outro ‘bonde’ constituído da mesma maneira. Por isso, os vizinhos não têm permissão de cruzar as fronteiras entre as favelas rivais”.
Guerra aberta
Já as milícias surgiram com o Grupo de Diligências Especiais, nos anos 1950, que depois ficaram conhecidos como Esquadrão da Morte. Foi só na década de 1990, com a disseminação do controle do tráfico pelas comunidades cariocas, que esses grupos paramilitares passaram a cobrar dos comerciantes e moradores para garantir a proteção.
“O modelo passou a disseminar-se em outros bairros da Zona Oeste do Rio de Janeiro”, prossegue o pesquisador Michel Misse, da UFRJ, “dando origem a uma organização de tipo mafioso intitulada Liga da Justiça, cujo braço político estava representado por deputados e vereadores e o braço armado por grupos de policiais militares e civis da ativa e aposentados, agentes penitenciários, bombeiros e guardas municipais, chamados pela imprensa, a partir de 2006, quando se constituíram, de ‘milícias”.
A partir da virada do século, portanto, traficantes e milicianos passaram a lutar para controlar espaços. O resultado é que as comunidades cariocas se veem, há décadas, dominadas por uma rotina marcada por ações violentas, incluindo homicídios e chacinas.
“Milícia e tráfico cada vez se confundem mais”, afirma o procurador Marcelo Rocha Monteiro, “e até se associam”.
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