Entre todas as formas de autoritarismo que “vira e mexe” recobrem a mentalidade social brasileira, aquela que julgo ser a mais ameaçadora trata-se da sede constante dos tribunais superiores, mídias e políticos em ser mediadores da verdade, dos fatos e da realidade dos indivíduos.
Em 'A cultura do cancelamento", livro lançado recentemente no Brasil, o sensato e polêmico democrata Alan Dershowitz comenta: “Nem a liberdade de expressão nem o devido processo legal são garantidores da liberdade, da democracia ou da verdade, pois ambos contam com a inteligência, e a boa vontade, de seres humanos falíveis”. A liberdade de expressão e as demais liberdades fundamentais de um indivíduo não são geradas nem praticadas a partir de instituições e pessoas de poder.
Se é verdade, como bem disse Roger Scruton em 'Conservadorismo: um convite à grande tradição', que a liberdade não nasce de um vácuo, mas depende de uma estrutura social que lhe dê fundamento, é tão verdade quanto que não são tais esteios sociais que geram e lhe dão praticidade. Quem pratica e vive a liberdade são os indivíduos, as instituições apenas garantem ou – mais comumente – atrapalham os indivíduos no ato de exercê-la. As liberdades, a consciência individual, o julgamento e as escolhas pessoais não são terceirizáveis a instituições e juízes. A verdade que todos parecem ter esquecido é que, ou os indivíduos são livres, conscientes e capazes de escolherem seus caminhos, ou a liberdade não passa de uma cilada ideológica, uma lenda tosca que contamos para dar sentido a vidas patéticas, uma esperança de proveta feita para acalentar moribundos.
Aos poucos, juízes, políticos e seus agentes elaboram mecanismos jurídicos, midiáticos e políticos para censurar, punir e até prender pessoas, porque elas não agem tal como suas deliberadas vontades julgam corretas.
Sai a economia, entra a cultura
Para entender isso, precisamos recuar um pouco e compreender a filosofia jurídica que abarca tudo isso. Helen Pluckrose e James Lindsay, em 'Teorias cínicas', explicam como o pós-modernismo nutriu na mentalidade social da esquerda a mudança de polo da economia para a cultura, e como o marxismo deixou de ser uma espécie de teoria filosófica passiva, de espera da queda do capitalismo, para se tornar um progressismo ativo, gerador de mudanças sociais profundas.
Descendo das puras teorias ortodoxas do marxismo acadêmico do século XIX, o progressismo pós-modernista é antes um facilitador de ações. Ativistas, militantes e políticos de convicções progressistas, agora, são vistos em pé de igualdade com aqueles que produzem teorias a fim de fundamentar tais percepções.
No início do século XX, o marxismo se viu em uma leve crise existencial, pois havia uma crença arraigada – quase catequética – de que o capitalismo e a propriedade privada deveriam colapsar em algum momento, e justamente nesse instante o comunismo surgiria como o príncipe no cavalo branco para salvar a humanidade.
Mas o capitalismo estava se fortalecendo ao invés de degringolar, e o pior, os indivíduos não só não odiavam o capitalismo e suas propriedades, como pareciam gostar, cada vez mais, das benesses que o livre mercado criou. A Escola de Frankfurt, por exemplo, nasce com a convicção de que o marxismo tradicional devia ser revisado, bem como a sua estratégia de passividade ser revogada, adotando agora uma postura ativa de mudança social através de ativismos, pedagogias e a tomada de espaço cultural e político.
Em 'A ideologia alemã', escrito mais emblemático e que, pessoalmente, mais gosto de Karl Marx, o alemão disserta sobre o seu conceito de alienação e conclui que a moral conservadora da sociedade cria uma espécie de bruma sintética que anestesia as percepções dos indivíduos, fazendo com que eles não percebam suas condições de oprimidos e, por isso, não se revoltem imediatamente contra seus patrões e contra o sistema de mercado livre. É justamente aqui que entra a sanha de mediação das liberdades, opiniões e percepções da realidade dos juízes e políticos.
Ungidos
Em 'Rumo à juristocracia: as origens e consequências do novo constitucionalismo', o cientista político canadense Ran Hirschl mostra-nos como o conceito de “mediação constitucional”, papel das Cortes Supremas, tornou-se uma prática de mediação cultural, política e até de discernimento individual. Embebecidos na crença progressista de que o povo, alienado em moralidades conservadoras, não percebe o que é melhor para si mesmo, que não compreende a importância e os desafios da democracia contemporânea e de outros dispositivos institucionais do país, os juízes se sentem no direito de se tornarem mediadores, ungidos, sacerdotes não eleitos das escolhas da população. Sobre isso, diz Thomas Sowell em 'Os Ungidos':
As definições mais ambiciosas de liberdade e justiça, por exemplo, na visão dos ungidos, são consistentes com a extensa tomada das capacidades humanas que eles assumem. […] Não é meramente o fato de que o engenheiro não pode realizar uma cirurgia, o juiz, em suas decisões, não pode aventurar-se muito longe de sua expertise limitada da lei, sem a possibilidade de criar desastres ao tentar se tornar um filósofo social que pode transformar a lei em um instrumento de alguma visão maior do mundo.
E é justamente isso o que Luís Roberto Barroso denomina de “novo iluminismo”, essa tentativa de verter juízes em especialistas supremos sobre tudo, deuses da República, homens que têm livre trânsito entre as regras sociais que todos os outros mortais devem seguir sem contestar. Por isso que assistimos, cada vez mais, as quebras das regras da própria corte por seus magistrados; quando Alexandre de Moraes se torna acusador, inquiridor e juiz no mesmo processo, ele o faz em nome de uma intervenção NECESSÁRIA e HETERODOXA nas regras do jogo.
O STF então cria leis tal como xamãs criam doutrinas; baseado no argumento de que a não deliberação do legislativo sobre um tema cria uma brecha jurídica para que a Suprema Corte possa fazer leis à revelia dos representantes diretos da população, cada dia mais o STF engole as funções dos demais poderes sob a luz do sol, na cara de todos. E, vejam, tudo isso quem diz são eles mesmos, os homens de toga. Luis Roberto Barroso, em um artigo escrito para a Folha de São Paulo, em 23 de fevereiro de 2018, diz: “Cortes constitucionais, porém, desempenham também uma função representativa, quando atendem demandas sociais que não foram satisfeitas a tempo pelo Legislativo”.
Em suma, juízes e políticos, cada vez mais, rompem o véu da democracia ao avançarem violentamente contra a representatividade, a repartição dos poderes, e, o mais importante de todos, sobre as garantias constitucionais de liberdade dos indivíduos. Mark Victor Tushnet, professor da Harvard Law School, em seu livro 'Taking the Constitution away from the courts', mostra-nos como o ativismo judicial transformou o mundo moderno numa autarquia cada vez mais dura e hipócrita.
Se as opiniões dos indivíduos se tornam cada vez mais irrelevantes, dado que uma corte pode interferir em sua vontade política, expressa através de seus mandatários políticos, a democracia vai se tornando algo vazio de significado. No fim, uma lei criada a partir dos representantes populares pode ser simplesmente revogada e reescrita, sem nenhum apreço ao processo legal; e, após isso, outra ideia rigidamente contrária à ideia inicial dos representantes, subitamente criada à revelia da vontade popular direta ou indireta, pode passar a vigorar, porque alguns juízes assim o querem. No fundo, estamos falando da própria morte da democracia.
Dos políticos vem o controle de acesso à informação da mídia, a pré-interpretação e condução dos fatos; das cortes, a criação de instrumentos de repressão às liberdades individuais e o rompimento com as estruturas republicanas. Tudo isso está acontecendo agora, neste instante, e não se trata de teoria da conspiração, tudo é verificável.
Em nome da eleição que está por chegar, o TSE já baniu contas que eles consideram ser propagadoras de notícias falsas, irá punir, como numa corte inquisitorial, a vadiagem opinativa de pessoas que não concordam com eles.
O TSE está comemorando a parceria com grandes players midiáticos para o combate a fake news; em suma Twitter, TikTok, Facebook, WhatsApp, Google, Instagram, YouTube e Kwai irão verificar e, porventura, excluir mensagens que eles denominam de fake news.
O que significa isso?
Significa que o Orwell profético mais uma vez acertou: o Ministério da Verdade foi criado. Centenas de pessoas contratadas por agências de checagem, na sua maioria de tendência abertamente progressista, irão dizer a todos os brasileiros qual notícia é falsa e qual é verdadeira, vão punir pessoas por espalhar links que eles consideram mentirosos e também profissionais que produzirem conteúdos que não se adequem às diretrizes do Kremilin… quero dizer, do TSE.
Já mediadores da nossa vontade política, os togados agora estão virando mediadores da consciência. Desde o advento da primeira célula nesse planeta, nunca tivemos tão perto de voltarmos a ser amebas.
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