Mc Diguinho lançou a versão “light” da música “Surubinha de leve” após repercussão negativa.| Foto: Reprodução/Youtube

O funk mais uma vez está no epicentro de uma discussão sobre incitação ao crime e liberdade de expressão. Desta vez não é a relação com o crime organizado que escandaliza a sociedade, mas sim a maneira com que se refere às mulheres. Afinal, cantar uma música que remete a um abuso de vulnerável seria uma incitação ou apologia ao crime? 

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O funk “Surubinha de leve”, do MC Diguinho, foi alvo de críticas depois que uma postagem alertando para o conteúdo da letra viralizou na internet. Yasmin formiga, estudante de Artes Visuais, publicou em seu perfil uma foto onde aparece com uma maquiagem que simula marcas de agressão segurando um cartaz com um trecho da música que diz “Taca a bebida / Depois taca a pica / E abandona na rua”. 

“Sua música ajuda para que as raízes da cultura do estupro se estendam. Sua música aumenta a misoginia. Sua música aumenta os dados de feminicídio. Sua música machuca um ser humano. Sua música gera um trauma. Sua música gera a próxima desculpa. Sua música tira mais uma. Sua música é baixa ao ponto de me tornar um objeto despejado na rua”, escreveu a estudante de 20 anos na postagem original que foi compartilhada por 140 mil pessoas no Facebook. 

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Depois da repercussão, Youtube, Spotify, Deezer e Apple Music excluíram a música de seus catálogos. Vale lembrar que na semana anterior à polêmica, o funk de MC Diguinho já tinha atraído um grande público: figurava em primeiro lugar entre as músicas que mais viralizaram no Spotify e contava com mais de 14 milhões de visualizações no Youtube, desde o lançamento em dezembro do ano passado. 

Como resposta, MC Diguinho criou uma versão “light” do funk, que agora canta que as “minas tchucas” não devem ser abandonadas na rua. “A rapaziada na internet, hoje em dia, entende a música de um jeito. Cem pessoas, cada um entende a música de um jeito. Eu queria passar a música de um jeito e ela foi mal interpretada”, disse ele em um vídeo gravado para o canal de sua produtora, a GR6, no Youtube

Em meio às críticas, a cantora Ludimilla, sucesso comercial do funk, ironizou os ataques à música em sua conta no Twitter. “Na internet fazendo graça, problematizando frase de música, mas quando toca na balada hahaha, na balada não vou nem falar o que acontece. Segue o baile", escreveu ela, mas que acabou apagando a postagem da rede social por conta da repercussão negativa da música.

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Crime ou liberdade de expressão? 

O funk recebeu várias críticas de que seria uma apologia ao estupro, mas a presidente da comissão de estudos sobre violência de gênero da OAB Paraná, Sandra Lia Leda Bazzo Barwinski, explica que, juridicamente, o termo correto que poderia ser utilizado neste caso é incitação ao crime. 

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“De acordo com o Código Penal, [a letra] não seria apologia. Apologia é quando alguém faz publicamente um elogio a um crime que foi cometido ou a um criminoso. Já a incitação ocorre quando alguém incentiva um crime publicamente”, afirma. 

Apesar da correção acerca do termo jurídico, a advogada, que também é membro do Cladem (Comitê Latino Americano e do Caribe para o Direito de Defesa das Mulheres), acredita que a letra da música não configura incitação ao crime. “Para que possa ser caracterizado incitação ao crime é preciso que fique clara a intenção do autor. E como o cantor veio à público dizer que esta nunca foi a sua intenção,que ele não teve a vontade livre e consciente de incitar o estupro, acredito que não caracteriza [incitação ao estupro], apesar de considerar a letra uma afronta ao direito da liberdade sexual das mulheres”. 

Na tarde desta sexta-feira (19), as comissões OAB Mulher e de Segurança Pública da OAB do Rio de Janeiro emitiram uma nota de repúdio contra qualquer tipo de manifestação que, “sob o manto de caráter social e cultural, apresente conteúdo machista e reitere a cultura do estupro em nossa sociedade”. No documento, a instituição afirma que o enquadramento ou não da música como crime ou não precisa ser apurado pelo Ministério Público. 

“A liberdade de expressão é um direito garantido. Ninguém é impedido de dizer nada, mas esta liberdade de expressão pode acabar encontrando uma repercussão na esfera civil, criminal”, declara a presidente da comissão OAB Mulher do Rio de Janeiro, Marisa Gaudio. 

Em nota, a OAB-RJ também salienta que “versos que expressam o desrespeito aos direitos das mulheres violam o princípio constitucional nuclear da dignidade da pessoa humana e perpetuam a desvalorização do gênero feminino”

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Funk, o mais visado 

Esta não é a primeira e provavelmente não será a última vez que letras de funk são condenadas pelo seu teor e denunciadas como apologia ou incitação ao crime. A internet está cheia delas. Por exemplo, a música “Faz a Fila”, do MC Denny, que na opinião da advogada Barwinski usa termos ainda mais pejorativos em relação à mulher, está disponível no Spotify e é a faixa mais tocada do artista na plataforma (já foi reproduzida mais de 3 milhões de vezes). 

Apesar destes casos, a própria OAB do Rio de Janeiro afirma que o funk, como gênero musical e legítima manifestação da cultura brasileira, não deve ser criminalizado, mas sim respeitado e valorizado. 

“Na verdade a cultura do machismo e do estupro não está presente somente nas letras de funk. Outros gêneros musicais também já fizeram uso de letras que retratavam uma normalização em relação à violência contra a mulher. Na minha opinião o funk acaba sendo mais visado porque caiu no gosto da população em geral recentemente e porque usa uma linguagem mais corriqueira que se fala muito em sexo”, opinou Gaudio. 

Desde o surgimento dos baile funk no Brasil, nos anos 1970, o gênero já era visto com repúdio por parte da sociedade. Em uma coluna que escreveu para o Globo em 2014, Hermano Vianna lembrou o episódio que ocorreu em 1992, no Arpoador, onde as pessoas que estavam por lá - e a imprensa - confundiram “conflitos dançantes entre turmas de favelas diferentes” com um arrastão. “Resultado: os ataques se voltaram contra o funk”, escreveu Vianna. 

Em um artigo publicado em 2009, a professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRJ, Adriana Facina, lembra que “no final da década de 1990 e no início dos anos 2000, o funk se dedicou a cantar o cotidiano neurótico de seus moradores, seja fazendo das facções criminosas sua inspiração, seja cantando o sexo num estilo papo reto, sem romantismo nem meias palavras”. E isso continua rendendo polêmicas em torno do gênero musical.

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Para citar alguns casos em que as letras de funk viraram assunto de Justiça, em 2005, o MC Frank foi processado por fazer apologia ao crime na música “Bonde do 157”, que relata assaltos a motoristas. Dez anos depois a produtora de Furacão 2000 foi condenada a pagar indenização de R$ 500 mil pelo hit “Um tapinha não dói”, denunciada pelo MPF por banalizar a violência contra a mulher. A Furacão 2000 recorreu. 

Outros casos - além do funk 

Em 2016, os integrantes da banda de rock alternativo UDR, de Belo Horizonte, foram condenados por incitação a crimes e discriminação religiosa. A acusação era por incitação a “crimes de estupro de vulnerável, homicídio e uso de drogas” e disseminação de preconceito religioso por meio das letras de músicas satíricas como “Clube Tião”, “Bonde da Orgia dos Travecos” e “Vômito Podraço”. O juiz Luís Augusto César Fonseca entendeu que os réus incitaram a prática de crimes e praticaram atos preconceituosos. Os músicos recorreram. 

A Planet Hemp já foi autuada em flagrante em Brasília por apologia às drogas em 1997. O juiz, mais tarde condenado à aposentadoria compulsória por suspeita de receber propina de traficante, mandou prender os integrantes e proibiu shows e vendas dos produtos da banda no Distrito Federal. A Justiça depois acabou entendendo que músicas como “Legalize Já” são manifestações de pensamento garantidas pela Constituição. 

Já a gaúcha Bidê ou Balde teve de fazer um acordo com a justiça a respeito da canção “E por que não”, denunciada por apologia à pedofilia e ao incesto. A música foi proibida de ser executada sob pena de multas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 2005. 

Até mesmo a gravadora Sony Music, foi condenada a pagar multa de mais de R$ 1,2 milhão por danos morais pelo conteúdo da música “Veja os cabelos dela”, do Tiririca, em 2011. Na época, a ação foi movida por ONGs do movimento negro, que consideraram que a letra tinha conteúdo racista.

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