A Crise do Mundo Moderno, de Leonel Franca, indicou os passos para vencer a contenda que sacudiu até aos alicerces a arquitetura da civilização ocidental. Nós precisamos conhecer a origem das nossas ideias, ele disse e eu acrescento; para que ninguém seja vítima de intelectuais orgânicos, nem da própria ignorância. É impossível conhecer a grandeza de uma nação sem distinguir o pensamento metafísico que se lhe ramifica. Implícita, envolvem-na todos os valores correntes na comunidade; explícita, enunciam-na em argumentações mais ou menos uniformes. Eis que pergunta o sacerdote brasileiro: “Haverá para nós interesse mais vital do que ter consciência nítida das doutrinas que nos governam? Do espírito que plasma as nossas instituições?”
É tentador, então, começar a missão pela História da Inteligência Brasileira. Todavia, as nossas ideias não têm origem em José de Anchieta, Antônio Vieira, Gregório de Matos, Gonçalves Dias, nos lampejos iluministas nem na Escola do Recife, e cia. À surpresa de muitos e ao alcance de poucos, elas começam muito antes, ao cruzar o Atlântico, lá na Grécia e Roma Antiga.
Críticos de incultura até argumentam o contrário; que o brasileiro, em favor de um pensamento nacional, deve ignorar os clássicos. No entanto, a recepção da cultura greco-romana, além de fato inequívoco em toda a civilização ocidental, participou do processo de formação da ideia de brasilidade. Os clássicos estavam presentes nos acontecimentos vitais da construção do Brasil; a vinda da Corte Portuguesa, a Independência, a formação de um Império Constitucional, a Abolição da Escravatura, a mudança Constitucional Republicana.
Destaco as seguintes traduções existentes desde o princípio: as Categorias, de Aristóteles, por Silvestre Pinheiro Ferreira, em 1814; A Primavera, de Meleagro, por José Bonifácio, em 1816; a História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, e Odisseia, de Homero, por D. Pedro II, que viveu entre 1825 e 1891. Em fato, o nosso monarca foi um exímio tradutor, que ainda verteu para o português obras de Victor Hugo, Manzoni, Schiller, Longfellow, Liégeard e Lamartine. Portanto, só um brasileiro com sede de barbárie pode ignorar os clássicos em nome de uma “razão tupiniquim”, expressão de Roberto Gomes, feita a partir de nada (ex nihilo).
Também porque os pré-socráticos, Sócrates, Platão e Aristóteles deram as bases para o filosofar em todas as nações. Se alguém filosofa, no presente, é porque, no passado, eles ordenaram a vida teorética. O que não significa que criticá-los é sempre obstinação. Ninguém está sendo chamado para se tornar refém dos antigos. Está, sim, a ser convocado ao reconhecimento de duas afirmativas: a primeira, a história das ideias influencia a atualidade da teoria e da prática; a segunda, os filósofos antigos tiveram mais acertos do que erros.
É que eles procuravam conhecer a realidade, e, uma vez que costuma ser recompensado o esforço de quem somente deseja a verdade, e empreende atenção contínua para alcançá-la, eles acertaram no essencial. No entanto, na modernidade, o homo academicus (homem acadêmico) substituiu a adequação do intelecto à coisa pela adequação da coisa ao intelecto, dando adeus à definição clássica: veritas est adaequatio rei et intellectus (a expressão latina para o dito há pouco). Essa despedida é exatamente o que significa ideologia: a expressão que se pretende conceito sobre as coisas do mundo, porém, na verdade, é flatus vocis, pura emissão fonética.
Apesar do pessimismo dos templários da nova direita, que mais parecem escravos ressentidos do que guerreiros em batalha, o portão para o reino onde habita a verdade não está fechado; a porta é estreita mas ainda é possível sair do reino totalitário onde “tudo é linguagem” para resgatar o contato com a realidade. O caminho é perseguido ao atualizar na própria consciência o pensamento dos filósofos do passado que ainda não tinham perdido a relação com o ser, ou dos intelectuais do presente que se empenham em recuperá-la. Para isso, é apropriado dispor do recurso ao mito e à Bíblia; à Filosofia Antiga e aos seus comentadores (Luc Brisson, Eric Voegelin, Paul Friedlander, Werner Jaeger, E. R. Dodds e Bruno Snell); à Patrística, à Escolástica e aos seus comentadores (Étienne Gilson e Henri de Lubac); e, por fim, à religião comparada por seus especialistas (Mircea Eliade e Gilles Quichel).
Eu gostaria de poder auxiliar em todos os caminhos, mas penso que a recuperação de mito e rito, religião e liturgia, requer contato com um santo ou quase santo. Longe de mim ser modelo vivo, sugiro que tenhamos uma atitude mais humilde, mas ainda valente, de iniciar pela filosofia. Enquanto início, não há como fugir do primeiro dos amantes da sabedoria, que é Tales de Mileto. (Peço ainda que aguardem os próximos artigos a serem escritos aqui, pois assim, ordenadamente, poderemos vivificar nos nossos corações, juntos, o espírito de todos os filósofos clássicos.)
De antemão, a filosofia começa com a seguinte proposição: “Tudo é água.” O conteúdo parece absurdo, mas no pensamento filosófico, como na obra de arte, deve-se olhar para a forma. A própria grandeza socrática não foi a de perguntar: “Qual dessas respostas é a verdadeira?”, mas sim: “O que é a verdade?”. O mesmo pode-se dizer de Tales; isto é, a sua grandeza não está na resposta encontrada, mas na pergunta delineada. Se tivesse dito: “Da água provém a terra”, estaria sob uma questão científica. Mas Tales não disse: “Tudo provém da água”, antes disse: “Tudo é água”. Assim, a sua pergunta era pelo princípio de todas as coisas, e a sua resposta, tirante do conteúdo, estava sob a forma: “Tudo é um”.
Num mundo de multiplicidade, onde os sentimentos são fluidos e as coisas transitórias, recuperar a unidade e o senso de eternidade é ato heroico. Portanto, a filosofia de Tales tem o efeito de uma vacina contra o niilismo. A perda de sentido está em sentir-se uma gota perdida no oceano; o seu resgate é sentir-se o oceano em uma gota.
*Natália Cruz Sulman é professora de filosofia