A Justiça Federal do Paraná recebeu neste mês uma ação civil pública com uma exigência controversa: retirar da galeria de presidentes do Palácio do Planalto todas as fotografias de presidentes que ocuparam o cargo durante o regime militar, de 1964 a 1985. Os autores da ação - o Sindicato de Arquitetos e Urbanistas do Paraná (Sindarq-PR), o Sindicato dos Servidores do Magistério Municipal de Curitiba (Sismmac) e estudantes de direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), alegam que Paschoal Ranieri Mazzilli, Humberto de Alencar Castello Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Baptista de Oliveira Figueiredo não foram eleitos presidentes e, portanto, não deveriam integrar a galeria do Planalto.
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O texto da ação civil argumenta que a exibição das fotografias "ofende a dignidade de grupos que foram perseguidos durante a ditadura e, especialmente, representa uma cicatriz na história recente do país". E querem não apenas a retirada das fotos, mas também a cassação de todas as honrarias e medalhas concedidas aos generais.
Esse tipo de iniciativa não é novidade. Diversos grupos organizados ligados aos direitos humanos trabalham já há alguns anos para banir "homenagens" ao regime militar, e têm como foco principal os nomes de ruas, avenidas, rodovias, praças, prédios, escolas e afins.
O tema ganhou força nas últimas semanas após os conflitos de Charlotesville, na Virgínia (EUA): a ameaça de derrubar a estátua do general Robert E.Lee, militar confederado que comandou o Exército da Virgínia do Norte durante a Guerra Civil Americana, gerou protestos contra e a favor que terminaram em pancadaria e com uma morte.
Afinal, remover tais referências, sejam elas de generais confederados ou de generais presidentes brasileiros, é uma ação legítima e efetiva? "Isso é panfletarismo barato", afirmou o historiador Marco Antônio Villa, doutor em História e mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo, e autor do livro "Ditadura à Brasileira – A Democracia Golpeada à Esquerda e à Direita".
"Não se pode ler o passado com os olhos do presente. Eles querem mexer com Castello Branco, Médici, Costa e Silva, mas não citam nada e nem ninguém do Estado Novo (regime autoritário de Getúlio Vargas que durou de 1937 a 1946. Nada dizem sobre as ruas que levam os nomes de Ademar de Barros ou Fernando Costa (interventores federais do estado de São Paulo de 1938 a 1941 e de 1941 a 1945, respectivamente). Vale lembrar que o Estado novo matou mais do que o regime militar brasileiro"
"Getúlio foi ditador de fato, mas teve um papel muito importante na nossa história. Em outro período ele foi eleito legitimamente e seu legado pode ser observado nos dias atuais", defendeu o professor de Ciência Política da PUC-SP, Pedro Fassoni Arruda. "As pessoas podem não gostar, mas reconhecer que ele foi, sim, eleito", acrescentou, ao destacar que nomes de logradouros e edifícios é um reconhecimento simbólico da importância de um líder.
"Não se trata de apagar a história, e sim de não homenagear quem estimulou o racismo, o preconceito, a separação, o ódio e a violência", explicou Arruda. "A história em si pode ser lembrada nos livros, nos museus. Homenagens públicas a quem não foi eleito democraticamente não fazem sentido. Esse revisionismo é legítimo."
"Monumentos e nomes de ruas são lieux de mémoires, repositórios das memórias coletivas de pessoas e eventos que deram forma ao presente. As inúmeras estátuas de Voltaire, mantidas na França, são lieux de mémoires de um francês extraordinariamente influente e que sabidamente enriqueceu com o tráfico negreiro. É certo que nossa perspectiva atual podemos lamentar essa mácula na biografia do grande escritor. Mas destruir suas estátuas seria um passo na direção de obliterar da memória coletiva francesa o papel desempenhado por um dos pais do iluminismo e, portanto, um absurdo em toda linha", avaliou o professor de filosofia da Universidade de Pernambuco (UFPE), Rodrigo Jungmann.
Para o historiador Henrique Vailati, da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), não se pode apagar a História. Ele citou o exemplo de Rui Barbosa, então ministro da Fazenda em 1891, que mandou queimar todos os arquivos ligados à escravidão. "O que ele fez foi um atentado documental", afirmou o professor.
"É descabido julgar a História. Fernão Dias, Borba Gato, Raposo Tavares, não podem ser apenas avaliados pelo viés de genocidas. Há outro aspecto: foram desbravadores, fundadores da nação. A História é filha de seu tempo e é preciso rever o passado e reconhecer outras faces", acrescentou.
Para Maurice Politi, ex-preso político e fundador do Núcleo Memória, "é um absurdo homenagear qualquer um que matou ou torturou alguém". O núcleo paulistano foi criado em 2009 por Politi e outros ex-presos para promover ações educativas nas questões referentes à memória política e defesa dos direitos humanos, e uma de suas iniciativas envolve justamente renomear espaços públicos que lembrem períodos de violência e tortura.
Em março deste ano, data em que o golpe militar de 64 completou 53 anos, os membros do núcleo recolheram assinaturas para solicitar ao prefeito João Doria e à Câmara dos Vereadores a mudança dos nomes de diversas ruas em São Paulo. A lista de nomes a serem excluídos contém, além de generais e de outros nomes ligados ao regime militar, o de ditadores como Adolf HItler e Benito Mussolini.
"Tudo gera controvérsia. Até mesmo quando se mudou o nome da rodovia dos Trabalhadores para Ayrton Senna, em 1995, muita gente ficou insatisfeita. Seria correto deixar de homenagear todos os trabalhadores para fazê-lo a uma pessoa só? Acho que, se a ideia é debatida e decidida por representantes do povo, como vereadores ou deputados estaduais, é perfeitamente legítimo e democrático", concluiu Pedro Fassoni Arruda.
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