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“Telepatia”: projeto de Elon Musk quer tornar real o controle de dispositivos pelo pensamento

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À esquerda, protótipo do chip "Telepathy", da Neuralink. Empresa começou testes do implante cerebral em humanos que perderam movimentos dos membros. (Foto: Modificado de Neuralink/Reprodução e Steve Jurvetson/Wikimedia Commons)

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O primeiro produto da Neuralink, empresa do bilionário Elon Musk, se chamará “Telepatia” (“Telepathy”) — é um chip implantado no cérebro que permitirá que uma pessoa paralisada “controle seu celular ou computador, e através deles quase qualquer outro dispositivo, só pelo pensamento”. A promessa é do próprio Musk, que sugeriu a seus seguidores na rede social X, da qual ele também é dono, que imaginassem se o físico teórico tetraplégico Stephen Hawking, falecido em 2018 de uma doença genética neurodegenerativa, “pudesse se comunicar mais rápido que um velocista da datilografia ou um leiloeiro. Esta é a meta”.

A promessa veio junto com a notícia de que a Neuralink já implantou o dispositivo eletrônico no cérebro de um paciente humano, na segunda-feira (29). O paciente recebera o implante no dia anterior e estava “se recuperando bem”, com “resultados iniciais [que] mostram uma detecção de sinais neuronais promissora”. A autorização para implantação foi dada pelo governo americano em maio do ano passado.

Como funciona a tecnologia de interface cérebro-máquina

O Telepatia da Neuralink consiste em um chip central, com bateria recarregável à distância, cercado por 1.024 filamentos mais finos que fios de cabelo que “desabrocham” no ato de implantação, cobrindo uma área maior do cérebro que a da abertura cirúrgica no crânio (que é fechada após o procedimento). Esses filamentos são sensíveis às pequenas perturbações elétricas pelas quais os neurônios se comunicam, conhecidas como potenciais de ação. Em vez de uma corrente elétrica como a da fiação de uma casa, esse sinal é feito de gradientes de íons de sódio e potássio, de carga elétrica positiva, dentro e fora dos neurônios, as principais células do cérebro, que atuam como fios elétricos em longas projeções que recebem o sinal (dendritos) e o transmitem (axônio). Essas mudanças de carga elétrica pela movimentação das cargas positivas são detectáveis pelos eletrodos nos filamentos, e são interpretáveis por processadores de computador para que virem comandos como arrastar um cursor em tela. O chip se comunica com outros aparelhos eletrônicos com ondas eletromagnéticas, como se faz no caso das tecnologias de Wi-Fi e Bluetooth. É mais próximo da segunda tecnologia, por usar baixa energia.

“Só pelo pensamento” pode ser um pouco de exagero de Musk. A neurociência desvenda desde os anos 1870 que há no cérebro áreas especializadas em movimentos específicos. Com o tempo, os neurocientistas mapearam a correspondência entre área do cérebro e movimento (além de sensações) a um “homúnculo cerebral”, um mapa do corpo no cérebro. Esse mapa feito de neurônios no córtex (a camada mais externa do cérebro) tem relação com movimentos, mas não necessariamente produz o que se considera pensamento. Que esse córtex motor possa ser usado para mover cursores em computador é algo que atesta a flexibilidade do nosso cérebro, desenvolvida durante as centenas de milhares de anos de uso de ferramentas pelos nossos ancestrais.

A concorrência está na dianteira, mas pode ter desvantagem técnica

O anúncio da implantação em paciente humano vem com algum atraso, e a Neuralink já está perdendo a corrida para ao menos uma concorrente: a Synchron, empresa fundada em 2012 que tem aprovação do governo americano para testes em humanos desde 2021. A concorrente está cada vez mais perto de lançar produtos no mercado: anunciou na quinta-feira (31) que adquiriu ações da fábrica alemã Acquandas, que tem a capacidade de montar uma peça delicada do implante por um processo de formação de camadas de metal. O processo patenteado pela empresa envolve a manipulação de coberturas muito finas de metal através de técnicas que envolvem a luz ultravioleta, a deposição de átomos por ímãs em vácuo e a corrosão seletiva com banhos químicos, permitindo uma “liberdade de design sem paralelos”.

O primeiro produto a chegar no mercado poderá ser o Synchron Switch, um chip que é inserido no cérebro através de vasos sanguíneos e permite que o paciente opere dispositivos domésticos conectados à internet e cursores em computadores. É essencialmente um estente (implante usado em cirurgias cardiovasculares) “inteligente”. No momento, seis pacientes nos EUA e quatro na Austrália estão fazendo testes. “Há milhões de pessoas com paralisia que precisam dessa tecnologia, e estamos preparados para produzi-la em grandes volumes”, disse Tom Oxley, diretor executivo da Synchron, à CNBC. Somente em 2022, a empresa ganhou US$ 75 milhões (R$ 369 milhões) de investidores como Bill Gates (fundador da Microsoft) e Jeff Bezos (fundador da Amazon).

O modo de implantação por dentro de vasos sanguíneos é uma vantagem da Synchron, pois é comparativamente menos invasivo. A Neuralink precisa abrir o crânio dos pacientes para implantar o seu dispositivo, trazendo assim mais riscos. Mas Musk está correto em dizer que os sinais são mais fortes quando o contato com o cérebro é direto, neste caso poderá superar o que a concorrente consegue fazer.

As duas empresas não são as únicas a atuar no problema de restaurar movimento aos paralisados. Há quatro meses, uma equipe de pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Francisco anunciou que restaurou a fala a uma paciente que sofreu um acidente vascular cerebral há 18 anos. Um implante cerebral do tamanho de um cartão de crédito ajudou Ann, de 47 anos de idade, a utilizar a inteligência artificial para fazer um avatar virtual transmitir suas palavras por áudio.

Controvérsias bioéticas

A sugestão de Musk que as pessoas poderão ser mais rápidas em se comunicar com o Telepatia que velocistas da digitação e leiloeiros sugere aderência a certa linha de pensamento. Como nem mesmo a maioria das pessoas que dispõem de saúde completa do sistema nervoso e muscular esquelético consegue falar com a velocidade de um leiloeiro, a ideia de melhoria do padrão normal aponta para o transumanismo, a linha de pensamento de quem não quer apenas aliviar sofrimento, mas “melhorar” a natureza humana pela autonomia individual e integração mais íntima do organismo humano à tecnologia.

“O transumanismo é uma ideologia”, alertou a bioeticista espanhola Elena Postigo, no ano passado. “Um conjunto de ideias sem fundamento racional exaustivo, cuja finalidade é a obtenção de determinados fins concretos”. Ela não se opõe ao objetivo de ajudar pessoas afligidas por sofrimentos decorrentes da perda de movimentos, mas acredita que os transumanistas, entusiastas de modificações do ser humano em direção a um progresso tecnológico, “tomam a parte pelo todo” ao reduzir o ser humano a genes e neurônios, e são adeptos de “uma pseudorreligião, pois suas afirmações não se sustentam no plano racional: trata-se de pura fé na ciência”.

Elon Musk, no entanto, não é um transumanista completamente deslumbrado por um futuro brilhante. Na verdade, ele tem feito alertas a respeito de potenciais efeitos catastróficos do avanço da tecnologia e da inteligência artificial, e vê na integração desses avanços ao organismo humano uma forma de preservar o ser humano e evitar sua extinção por máquinas hostis. Se não se pode contra elas, junta-se a elas, pensa o bilionário.

Preocupa, também, o preço pago em vidas de animais pela tecnologia de interface cérebro-máquina. Enquanto a Synchron teria sacrificado cerca de 80 ovelhas no desenvolvimento de seu estente inteligente, a Neuralink teria sacrificado até 1.500 animais, entre camundongos, ratos, ovelhas, porcos e macacos, até o final de 2022. O governo americano, contudo, disse no ano passado que não encontrou indícios de maus tratos desnecessários aos animais.

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