
Nos últimos anos, o conceito de racismo estrutural se tornou onipresente no debate público brasileiro — disseminado por figuras como o ex-ministro Silvio Almeida e amplamente adotado por setores da imprensa, da política e do meio acadêmico. Mas de onde vem essa ideia?
Embora apresentada como um diagnóstico das desigualdades raciais do país, a tese de Almeida é um desdobramento direto da Teoria Crítica da Raça, que surgiu nos EUA, tem raízes profundas no marxismo e influenciou movimentos atuais como o Black Lives Matter.
No livro “Marxismo Racial”, recém-lançado no Brasil pelo selo Avis Rara, o escritor e pesquisador americano James Lindsay apresenta um comentário crítico contundente sobre essa corrente de pensamento — que, segundo ele, substitui a luta de classes tradicional pela questão do racismo. Leia a seguir um trecho do primeiro capítulo da obra.
Teoria crítica da raça, substantivo:
(1) Rotular de “racista” tudo o que você quer controlar, até que esteja completamente sob seu controle;
(2) Teoria marxiana do conflito racial; isto é, marxismo racial;
(3) Uma crença de que o racismo criado pelos brancos em benefício próprio é o princípio fundamental de organização da sociedade
Os teóricos críticos da raça afirmam que a teoria crítica da raça é um “movimento” impulsionado por “um grupo de ativistas e acadêmicos interessados em estudar e transformar a relação entre raça, racismo e poder”.
Presumo que isso seja um início tímido se estamos interessados em compreender a questão. Ainda assim, é um início.
Por um lado, revela que a teoria crítica da raça, longe de ser apenas uma teoria acadêmica, é um movimento, e isso nos traz uma informação importante, sobretudo para aqueles que consideram equivocadamente a teoria como quase científica. Por outro lado, é um movimento composto por ativistas e acadêmicos, e isso nos diz algo adicional, já que essa é uma combinação estranha.
Por fim, nos dá a conhecer que é um movimento interessado no poder, e isso indica muita coisa. O poder pode despertar o interesse dos indivíduos de diversas formas diferentes.
Por exemplo, o interesse no poder simplesmente como um tema acadêmico: o que é o poder e como funciona? Ou talvez o interesse seja em quem o detém e os efeitos que isso causa. Ou ainda pode ser um interesse de conquista do poder.
Os teóricos críticos da raça não estão particularmente interessados no primeiro tópico, pelo menos não do mesmo modo que estavam seus predecessores intelectuais do movimento intelectual pós-moderno. Eles acreditam que já sabem tudo o que precisam saber acerca do funcionamento do poder: decorre dos sistemas e oprime.
Os teóricos críticos da raça estão muito interessados no segundo tópico — quem detém o poder e quais seus impactos —, contanto que entendamos “interesse” como o equivalente a enquadrá-lo conforme a compreensão acima.
Uma forma simples de caracterizar a teoria crítica da raça agora está disponível: trata-se de um movimento ativista baseado em um estudo motivado que é chamado de “racismo sistêmico” e de como esse fenômeno define o poder e cria opressão na sociedade. Quanto a tomar o poder, esse é, sem dúvida, o interesse central, porém oculto, dos teóricos críticos da raça.
Como lemos na primeira frase de Critical Race Theory: An Introduction [“Teoria Crítica da Raça: Uma Introdução”, de Richard Delgado e Jean Stefancic], o objetivo da teoria crítica da raça é transformar a relação entre raça, racismo e poder. Tal como outros totalitários de uma longa linhagem que os precede, os teóricos críticos da raça estão interessados em ordenar o mundo conforme a visão contida em sua teoria.
Reorganização do mundo
Como os autores mostram, o propósito de uma teoria como a teoria crítica da raça não é apenas o de compreender o mundo; é transformá-lo, reorganizá-lo segundo a dinâmica de poder social que a obceca, mas que mal consegue entender. Isso ocorre porque é uma teoria marxiana.
Esse objetivo em causa própria fica bastante evidente na literatura referente à teoria crítica da raça ou no ativismo baseado nessa teoria na prática. Isso fica ainda mais claro ao observarmos como a teoria crítica da raça, seus defensores e o ativismo afim tratam os membros dos chamados “grupos minorizados” que discordam dessa teoria e de suas prescrições (como se não fossem membros autênticos de seus grupos raciais).
Por meio dessas observações, fica evidente que os teóricos críticos da raça não atuam em nome desses grupos raciais “minorizados”. O interesse principal de seus defensores é ter um poder cada vez maior para si mesmos.
Assim, a teoria crítica da raça aspira a não só entender o poder como também a reorganizar as circunstâncias e a sociedade para que seus teóricos tenham mais poder. Curiosamente, mesmo tão claro, ainda é bastante controverso acusar diretamente a teoria crítica da raça de ser uma teoria marxiana.
De fato, durante anos, me opus com firmeza a essa conclusão, e só a expresso agora porque as evidências que a corroboram são avassaladoras. Para termos uma ideia dessas evidências, começaremos com um comentário de Richard Delgado (um dos autores de Critical Race Theory: An Introduction) sobre a experiência na conferência de fundação do movimento da teoria crítica da raça, que ocorreu em Madison, Wisconsin, em 1989.
Fui um dos membros da conferência de fundação. Eu e outras 23 pessoas nos reunimos em Madison, Wisconsin, para ver o que tínhamos em comum e se poderíamos planejar uma ação conjunta no futuro, se tínhamos uma agenda acadêmica partilhável e talvez um nome para a organização.
Eu havia lecionado na Universidade de Wisconsin, e, tempos depois, Kim Crenshaw também ingressou no corpo docente. A faculdade parecia um local lógico para isso por causa do Instituto de Estudos Jurídicos que David Trubek coordenava na época e do programa de bolsa de estudos Hastie.
A faculdade era um centro do pensamento jurídico acadêmico de esquerda. Assim, nós nos reunimos nesse convento por dois dias e meio, ao redor de uma mesa, numa sala austera com janelas de vitrais e crucifixos aqui e ali — um lugar estranho para um grupo de marxistas —, e elaboramos um conjunto de princípios. Então, seguimos nossos caminhos.
Quase todos os que lá estavam acabaram se tornando teóricos críticos da raça renomados, incluindo Kim Crenshaw, que proferiu uma palestra na conferência de Iowa, assim como Mari Matsuda e Charles Lawrence, que estão aqui em espírito. Derrick Bell, envolvido com a teoria crítica da raça desde muito antes de ela ter um nome, participou do seminário em Madison e foi uma espécie de mentor intelectual do movimento. Dessa maneira, estávamos prontos para começar.
Naturalmente, não podemos supor que a teoria crítica da raça em si seja marxista ou mesmo marxiana apenas com base nessa descrição, mas se trata de uma evidência convincente. Nesse comentário, um dos membros fundadores do movimento da teoria crítica da raça descreve as pessoas que se reuniram para a conferência de fundação dessa teoria como “um grupo de marxistas”.
Esse mesmo autor declaradamente marxista, em suas próprias palavras no livro que escreveu 12 anos depois, ofereceu mais evidências ao afirmar que o objetivo do movimento da teoria crítica da raça é “estudar e transformar a relação entre raça, racismo e poder”. Sem dúvida, isso é algo bastante marxiano.
Nesse livro, um parágrafo mais adiante, Delgado parafraseia de propósito Karl Marx ao escrever: “Ao contrário de algumas disciplinas acadêmicas, a teoria crítica da raça contém uma dimensão ativista. Ela não só procura compreender nossa situação social, mas também mudá-la; ela se propõe não só a verificar como a sociedade se organiza ao longo de linhas e hierarquias raciais, mas também a transformá-la para melhor”.
Cortina de fumaça
Sou da opinião — após a leitura de análises semelhantes em inúmeros livros sobre teoria crítica da raça (incluindo outro texto basilar importante: Critical Race Theory: The Key Writings that Formed the Movement [“Teoria Crítica da Raça: Os Escritos Principais que Formaram o Movimento”, coletânea de ensaios de vários autores] — de que é correta a avaliação de que se trata de um movimento marxiano (ou neomarxiano) que se centra na raça e no racismo como dinâmicas de poder sistêmico relevantes.
Charles Mills, renomado teórico crítico da raça, até resumiu o argumento numa coletânea de ensaios intitulada From Class to Race: Essays in White Marxism and Black Radicalism [“Da Classe à Raça: Ensaios Sobre o Marxismo Branco e o Radicalismo Negro”], que conecta as ideias sem nenhum constrangimento.
A essa altura, considero que a teoria crítica da raça não pode ser compreendida sem primeiro aceitarmos e depois entendermos esse fato básico sobre ela — ou seja, que se trata de marxismo racial —, por mais que os teóricos procurem encobrir com uma cortina de fumaça para se distinguirem do marxismo econômico tradicional.
De fato, acrescentando evidências a esse conjunto, os teóricos da teoria crítica da raça tendem a se referir ao marxismo (econômico ou clássico) como “marxismo vulgar”, o que implicaria que sua própria teoria é tanto marxiana como de algum modo mais sofisticada do que a original. Portanto, trata-se de uma teoria marxiana.
Claro que o fato de sabermos que a teoria crítica da raça é marxiana não é suficiente para compreendê-la de fato.
O modo mais simples de compreendermos o aumento autodeclarado de sofisticação pode ser obtido ao considerarmos a importância de um comentário feito por outra dupla de teóricos, Gloria Ladson-Billings e William Tate IV, num artigo de 1995 intitulado Toward a Critical Race Theory of Education [“Rumo a uma Teoria Racial Crítica da Educação”] (um título que muitos vão achar sombriamente divertido, já que com frequência ouvimos, mais de 25 anos depois, que a teoria crítica da raça não está presente nas escolas).
Após se queixarem de que os “marxistas brancos” não fizeram o suficiente para enfocar a raça no objetivo de teorizar a sociedade, Ladson-Billings e Tate observaram que a teoria crítica da raça assume a posição de que a raça deve ser compreendida como “o constructo central para entender a desigualdade”. Então, de imediato, podemos obter uma compreensão significativa acerca de teoria crítica da raça: trata-se de marxismo racial.
Ou seja, essa teoria adapta — ou, talvez, reimagina — a teoria marxiana, que entende a desigualdade em termos de condições materiais da sociedade, sobretudo as condições econômicas, de modo a colocar a raça como fator determinante, permitindo que os teóricos marxianos compreendam a desigualdade. Em outras palavras, a teoria crítica da raça busca aprimorar o marxismo ao torná-lo deliberadamente racista.
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