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Opinião

Ter (ou não) bebês: a ligação entre colonialismo cultural e taxas de fertilidade

Gravidez nos países em desenvolvimento: institutos transnacionais estimulam a queda na fertilidade
Gravidez nos países em desenvolvimento: institutos transnacionais estimulam a queda na fertilidade (Foto: Pixabay)

No decorrer dos séculos XIX e XX, houve um acontecimento notável: as pessoas começaram a ter menos filhos. Muito menos. Em diversos países, os índices de fertilidade caíram de quatro a oito filhos por mulher para menos de três e, em muitos casos, menos de dois.

O que causou esse declínio na fertilidade? Mudanças na mortalidade infantil e na expectativa de vida fizeram com que os pais desejassem menos concepções? O aumento do retorno ao capital humano mudou a estratégia ideal de criação de filhos? O declínio foi causado pelo aumento da exposição a produtos tóxicos da industrialização?

As explicações acima, e muitas outras, foram propostas em vários momentos por biólogos, economistas e sociólogos. Mas um corpo crescente de pesquisa econômica está oferecendo uma explicação decididamente antropológica para a fertilidade: é a cultura. As pessoas têm filhos não por uma busca pessoal da felicidade, por retorno econômico, ou por razões meramente biológicas, mas pelo modo como sistemas culturais moldam seus comportamentos.

É fácil encontrar ligações nuas e cruas entre cultura e fertilidade. Por exemplo, em populações etnicamente chinesas, as taxas de natalidade aumentam em alguns anos do zodíaco, como no ano do dragão. Os nascimentos caem drasticamente em grandes feriados de praticamente todos os países. Nos Estados Unidos, acontece também uma queda brusca em dias ligados ao azar como 1º de abril ou sextas-feiras 13. Eu cataloguei essas e muitas outras interações culturais e de fertilidade em outros textos.

Mas fatores culturais podem explicar grandes mudanças na fertilidade? Poderia um choque arbitrário nos valores sociais realmente desencadear uma mudança demográfica como aquela observada durante a conhecida “transição demográfica”? Uma nova pesquisa feita por Brian Beach e W. Walker Hanlon diz que sim.

Indignação pública como educação pública

Em 1877, dois defensores de métodos contraceptivos, Charles Bradlaugh e Annie Besant, publicaram um livro de Charles Knowlton, um dos primeiros defensores do controle de natalidade. Isso violou as rígidas leis de censura inglesas, que proibiam divulgação de informações sobre contracepção, e provocou um dos mais importantes dramas da corte do final do século XIX. Um ano depois do julgamento, a taxa de fertilidade britânica, anteriormente estável, começou a cair.

Os autores do estudo mostram que esse declínio não foi aleatório: ele foi ainda mais severo e começou primeiro nos distritos ingleses onde os jornais deram mais atenção ao julgamento Bradlaugh-Besant. Mais cobertura da mídia sobre esse fato significou declínio mais rápido na fertilidade, apesar do fato de que praticamente nenhuma cobertura tenha incluído qualquer discussão sobre métodos de controle de natalidade. De fato, os principais métodos aconselhados pelo panfleto não têm validade científica. Em outras palavras, o livro não melhorou a educação sobre controle de natalidade – apenas mudou o que as pessoas se sentiam confortáveis para falar.

Ao divulgar a controvérsia, os meios de comunicação de massa da época transformaram um tópico “obsceno” em uma conversa normal. As pessoas de repente podiam falar sobre controle de natalidade e limitação de fertilidade. Mesmo que os métodos contraceptivos divulgados não funcionassem, as pessoas entendiam a mecânica de como os bebês são feitos e podiam usar várias estratégias para evitar a concepção. Concomitantemente ao julgamento público, se formou um grupo chamado “Sociedade Malthusiana”: a primeira organização pública de planejamento familiar na Inglaterra, com a explícita missão de reduzir o crescimento populacional. Tudo isso foi uma grande mudança cultural: antes do julgamento de Bradlaugh-Besant a discussão pública supunha que as mulheres não tinham o direito moral de exercer controle sobre sua fertilidade, que era simplesmente um fenômeno natural, regido por Deus.

Mas os autores não demonstram o efeito do julgamento apenas na Inglaterra. Eles vão mais longe, mostrando os transbordamentos ocorridos: entre colonos anglófonos no Canadá, que tiveram declínios súbitos na fertilidade em relação aos vizinhos francófonos; entre colonos anglófonos na África do Sul, que viram grandes declínios de fertilidade em comparação com seus vizinhos bôeres, de língua holandesa; entre os recentes imigrantes britânicos nos Estados Unidos, que viram quedas de fertilidade mais acentuadas que o resto do país; e até na Austrália, onde as taxas de fertilidade caíram vertiginosamente.

Na verdade, o julgamento Bradlaugh-Besant teve repercussões culturais em todos os lugares onde chegaram as manchetes, o que basicamente significava qualquer lugar do império britânico onde houvesse pessoas lendo jornais em inglês. É claro que foi apenas umas das muitas controvérsias sobre o controle de natalidade nos séculos XIX e XX, com dinâmicas similares ocorrendo várias vezes: os ativistas pressionam por uma mudança nas normas de fertilidade, o público responde com indignação, mas o discurso aceitável muda – na verdade, as reações conservadoras são precisamente um dos fatores que contribuem para que mude.

Ao menos no caso britânico, parece bastante claro que a transição demográfica foi diretamente provocada por um evento cultural específico: um importante julgamento que questionou normas culturais sobre se as pessoas tinham o direito de gerenciar e controlar sua própria fertilidade.

Uma revolução de ideias

Esse artigo da área de economia não é o único mostrando como as pessoas desenvolvem suas preferências de fertilidade. Outro estudo recente, realizado por Guillaume Blanc e Romain Wacziarg, analisou a questão de uma maneira diferente. Em vez de olhar para um evento específico, o estudo forneceu um detalhado relato econômico e histórico da vila francesa de Saint-Germain-d’Anxure.

A França experimentou sua transição demográfica muito antes da maior parte do mundo, uma anomalia que atraiu a atenção da pesquisa por muitos anos. Ao examinar detalhadamente uma comunidade para a qual uma enorme quantidade de detalhes está disponível (graças, em parte, aos registros da igreja sobre nascimentos, casamentos e óbitos), podemos delinear algumas questões importantes. Por exemplo, o que causou a diminuição da fertilidade em Saint-Germain-d’Anxure entre 1730 e 1895? Foi uma mudança para o trabalho industrial, longe da agricultura? Foi o aumento da educação para mulheres? Foi uma mudança nos valores sociais? Examinando detalhadamente como todos esses fatores mudaram com o tempo, os autores podem responder a essas perguntas.

A resposta deles é impressionante: a fertilidade caiu antes que a mortalidade infantil despencasse, antes que a alfabetização subisse, antes que o emprego na agricultura caísse e antes que qualquer mudança na mobilidade econômica se instalasse. Nenhuma das explicações convencionais para causas de declínio da fertilidade explica o caso Saint-Germain-D’Anxure. Ao contrário, a explicação mais provável diz respeito aos valores culturais. Acompanhe: a fertilidade caiu para um filho por mulher entre 1787 e 1815. Antes desse período, que coincide com a Revolução Francesa, a fertilidade estava diminuindo gradualmente, mas permaneceu estável. E depois de 1815, a fertilidade voltou a subir até os novos deslocamentos revolucionários de 1848 e o começo do Segundo Império sob Napoleão III, quando caiu novamente.

Em outras palavras, as condições políticas, a disseminação de ideologias específicas e as mudanças nas atitudes sociais e culturais provavelmente importavam tanto ou mais do que condições econômicas específicas. Era assim na Inglaterra em 1877 e também na França dos séculos XVIII e XIX. O advento da transição demográfica de alta para baixa fertilidade pode ser melhor explicado através de referências a mudanças na cultura e nos valores do que apenas pelas mudanças nas condições econômicas.

As preferências contemporâneas da fertilidade

Finalmente, há um corpo de pesquisas considerável sobre o que impulsiona as preferências de fertilidade hoje. Muitas pesquisas medem essas preferências de diferentes maneiras: homens e mulheres são questionados sobre suas intenções, planos, desejos, preferências e ideais. No entanto, apesar da variedade, uma extensa pesquisa descobriu que a questão mais constante é sobre ideais. Perguntar às pessoas sobre suas intenções de reprodução tende a ser muito volátil: mudanças econômicas e de relacionamento podem ter efeitos grandes sobre como elas reagem. Mas perguntar a respeito dos ideais produz respostas mais consistentes e isso nos leva de novo a um cerne, o dos valores culturais.

Então o que faz as pessoas preferirem mais crianças? A religiosidade é certamente um fator. Mas as diferenças étnicas não diretamente ligadas à religião também são importantes. Crescer em uma comunidade cercada por famílias extensas e pessoas que apoiam seu estilo de vida também aumenta a fertilidade. Essa descoberta apareceu entre os ciganos na Europa Oriental, entre os imigrantes na França, entre as minorias étnicas na Indonésia e entre os afro-americanos nos Estados Unidos. Crescer em um ambiente que incentiva a conexão com a família e um senso de identidade étnica ou cultural ajuda a transmitir ideais, normas e comportamentos de fertilidade. Simplificando, há fortes evidências empíricas de que as pessoas “aprendem” ideais de fertilidade de seus pais e comunidades imediatas.

Mas não é apenas em comunidades tradicionais. A mídia moderna pode ser tão influente quanto os jornais ingleses da década de 1870. As novelas no Brasil e o reality show 16 and pregnant nos Estados Unidos (transmitido pela MTV Brasil com o nome 'Grávida aos 16') causaram mudanças mensuráveis na fertilidade dos últimos anos. O ambiente cultural continua a influenciar, seja através de identificação étnica, laços familiares ou consumo de mídia. Obviamente, as normas culturais relacionadas ao tempo de casamento e de maternidade também podem ser importantes.

Pesquisas recentes sugerem que parte da recuperação da fertilidade na Europa Oriental dos últimos anos pode ter acontecido devido a uma “retradicionalização” de valores. Basicamente, como a parte oriental do continente rompeu com o caminho esperado da mudança progressiva em direção ao secularismo e à individualidade, sua taxa de fertilidade aumentou. Atitudes e valores são importantes. No caso de grande parte da Europa Oriental, essa mudança de valores foi acompanhada por mudanças nas crenças e práticas religiosas, com a religião pública retornando após décadas de repressão soviética. O fim do secularismo imposto pelo Estado levou diretamente a uma crença mais religiosa e, portanto, a valores mais tradicionais. Através disso, houve uma recuperação na fertilidade.

Conflitos culturais

Embora toda essa questão possa parecer pedantismo histórico, acaba sendo hoje politicamente significativa. Os ricos doadores ocidentais nas antigas metrópoles coloniais, como França e a Inglaterra, ou nos Estados Unidos, gastam bilhões de dólares em programas voltados à demografia no mundo em desenvolvimento. O conceito desses programas é que eles preenchem uma “necessidade não atendida” de contracepção nos países. Ou seja, eles são justificados por alegar que as mudanças econômicas conduzem a uma redução nas preferências de fertilidade, e, para ajudar as mulheres a alcançarem essas preferências, os doadores ocidentais devem desembolsar doações para preservativos, pílulas e abortos. Não importa se os estudos mostram consistentemente que as mulheres nos países em desenvolvimento realmente desejam ter muitos filhos: os doadores ocidentais acham que sabem o que é melhor para elas.

Mas se a transição demográfica é impulsionada em grande parte por choques culturais, e menos por fatores econômicos ou de saúde, então todo argumento que justifique esses programas se desfaz. Se, de fato, o declínio nas preferências de fertilidade não é causado simplesmente pela mudança natural nas condições econômicas, mas por eventos culturais específicos que destroem as normas culturais existentes anteriormente e criam novas, então todo o projeto de planejamento familiar financiado pelo Ocidente não é nada além de colonialismo cultural. É a França que exporta seus ideais revolucionários através dos antigos laços da dependência colonial; é a Inglaterra que exporta as controvérsias do julgamento Bradlaugh-Besant para os países que dominou durante gerações.

Em termos simples, se a transição demográfica for em grande parte baseada na mudança de valores, então ela deve ser entendida como um projeto fundamentalmente político, carregado de valores, em que indivíduos e países podem ter interesse em resistir ou se opor. Se o índice de fertilidade diminuir porque a mortalidade infantil está diminuindo, então quase todos os sistemas morais irão encorajar que as pessoas considerem essa uma boa troca. Mas se o índice de fertilidade está caindo porque países ocidentais contam histórias para mulheres na África, na Ásia e na América Latina de que crianças impedem uma vida feliz, de que o estilo de vida de suas comunidades está ultrapassado e é retrógrado e que a legitimidade cultural vem da imitação de famílias ocidentais brancas, então haverá fortes razões para negar esse modelo.

Na verdade, ambas as forças estão operando. Há uma extensa pesquisa mostrando que as reduções na mortalidade infantil, juntamente com a modernização econômica, diminuem a fertilidade, mesmo que não ocorram mudanças na educação, na religião ou na democracia. Mas quando colonizadores intervêm nos países que costumavam dominar, eles deveriam manter em mente que a redução da fertilidade não é apenas sobre esses bens incontroversos: é também, em grande extensão, um projeto de revisão cultural que os habitantes locais podem justamente resistir.

*Lyman Stone é um economista especializado em população e demografia. Ele é consultor da empresa de consultoria Demographic Intelligence, pesquisador do Institute for Family Studies, e membro adjunto do American Enterprise Institute. Ele e sua esposa Ruth moram em Tuen Mun, Hong Kong.

Tradução de André Luiz Costa.

©2019 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.

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