Ouça este conteúdo
Quantos por cento das pessoas procurariam o dono de uma carteira perdida na rua? A resposta a essa pergunta vale mais do que a mera curiosidade.
Seis anos depois de publicarem um estudo em que “perderam” carteiras de propósito em 40 países do mundo (inclusive o Brasil), quatro pesquisadores chegaram a uma nova descoberta sobre o tema: o índice de devolução das carteiras é um indicador confiável do nível de confiança entre os cidadãos de um país, e é capaz de prever até mesmo indicadores econômicos e institucionais.
Se eles estiverem certos, o Brasil não tem muito o que comemorar.
O que diz o estudo de 2019
Um estudo original de 2019 foi publicado pela revista Science. Os quatro autores — dois de universidades americanas e dois de universidades suíças — fizeram um experimento em larga escala para medir o nível de honestidade em 355 cidades do planeta.
Todas as 17.303 carteiras tinham um cartão de visitas com o nome e o e-mail do dono. Os participantes do estudo não deixaram simplesmente a carteira no chão: eles foram orientados a procurar um prédio próximo e informar ao funcionário da recepção para dizer: "Eu achei essa carteira na esquina. Alguém deve ter perdido. Estou com pressa e preciso ir. Você pode ficar responsável por ela?".
Os pesquisadores usaram dois tipos de carteira: sem e com dinheiro. Neste caso, o valor deixado foi equivalente a aproximadamente US$ 13,45 (o que, no Brasil, correspondia a R$ 21,75 à época).
Globalmente, 51% das pessoas procuraram o dono da carteira com dinheiro, e 40% fizeram o mesmo após encontrarem a carteira sem dinheiro. As exceções a essa regra foram Chile, Peru e México. Nestes países, o índice de devolução da carteira sem dinheiro foi maior que o da carteira com dinheiro.
De forma geral, os pesquisadores concluíram que as mulheres foram mais honestas que os homens, e as pessoas com mais de 40 anos foram mais honestas que as mais jovens.
Os países com maior índice de devolução da carteira com dinheiro foram Dinamarca (com quase 80% de devolução), Suécia, Nova Zelândia, Suíça e Noruega. Os cinco últimos foram China, Cazaquistão, Quênia, México e — em último lugar — Peru (com menos de 15%).
No caso da carteira sem dinheiro, os cinco primeiros lugares no ranking ficaram com Suíça, Noruega, Holanda, Dinamarca e Suécia. Nesse critério, os cinco últimos foram Quênia, Cazaquistão, Peru, Marrocos e China.
Brasil: na metade de baixo da tabela
No critério de carteira sem dinheiro, o Brasil ficou em 26° lugar entre os 40 países. Pouco menos da metade das pessoas fizeram contato com o “dono” do objeto.
No das carteiras com dinheiro, o país aparece em 24° lugar. Aproximadamente um terço dos brasileiros procurou o proprietário da carteira.
No Brasil, os pesquisadores “perderam” 399 carteiras em oito cidades: Belo Horizonte,
Brasília, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo entre julho e agosto de 2015.
Geografia pode explicar diferenças
O estudo publicado em 2019 encontrou uma correlação positiva entre a renda per capita de cada país e a taxa de devolução das carteiras. Entretanto, é difícil separar a causa do efeito. “Não está claro se a riqueza de um país leva a uma maior honestidade cívica ou vice-versa (ou, alternativamente, se alguma terceira variável não observada influencia tanto a riqueza quanto a honestidade cívica)”, os autores escrevem, em um dos apêndices do artigo.
Curiosamente, temperaturas menores, a latitude (distância da linha do Equador) e menor elevação também ajudaram a explicar o índice de retorno. Os autores têm uma hipótese: alguns fatores geográficos como a imprevisibilidade do clima compelem os membros de uma sociedade a cooperar mais que outras. "Normas de confiança e cooperação podem, por sua vez, ter facilitado a transição de sociedades agrícolas para economias de mercado, que se baseiam em interações com membros de outros grupos e estranhos”, eles descrevem.
No estudo, países de tradição protestante tiveram um retorno das carteiras acima da média. A correlação também foi positiva para o nível de acesso à educação básica e o nível dos limites impostos sobre o Poder Executivo (típico de países mais democráticos).
Já o nível de prevalência de doenças transmissíveis reduziu a taxa de retorno, assim como a força dos laços familiares. No primeiro caso, o risco de transmissão de doenças pode ter reduzido o grau de confiança mútua com o tempo, e isso se tornou um traço da própria sociedade. No segundo, dizem os autores, a explicação é simples: o pensamento que prioriza a família acima de tudo pode se refletir em um grau menor de preocupação com não parentes.
Teste da carteira é forma de prever confiança e prosperidade
Apesar das descobertas da pesquisa publicada em 2019, ainda restava uma pergunta: é possível extrair alguma conclusão geral com base nos dados sobre o índice de devolução de carteiras?
Depois de analisar novos dados, os autores agora afirmam que sim.
Os quatro autores do estudo anterior assinam um artigo publicado este mês por The Review of Economics and Statistics.
Eles dizem que os resultados do teste da carteira têm uma forte correlação com os níveis de confiança mútua de um país. "Algumas medidas de capital social obtidas em pesquisas, como confiança generalizada e moralidade generalizada do WVS/EVS, estão fortemente correlacionadas com as diferenças entre países na tendência de devolver uma carteira perdida", escrevem eles. A sigla WVS/EVS se refere a dois estudos amplamente citados por pesquisadores: o World Values Survey e o European Values Survey (Pesquisa Mundial de Valores e Pesquisa Europeia de Valores, respectivamente).
Além disso, os resultados do teste da carteira ajudam a prever outros indicadores institucionais e econômicos — como a eficiência do governo e a produtividade.
"Uma segunda constatação é que as taxas de devolução de carteiras perdidas explicam variações adicionais no desempenho econômico e institucional entre países, sugerindo que essa medida contém informações únicas não capturadas pelas medidas existentes de capital social em pesquisas”, concluem os autores.
A conclusão sugere, portanto, que em países com problemas estruturais na economia e no governo os políticos não são os únicos culpados. Eles não são os únicos a bater carteiras alheias.