Baseada nos quadrinhos de Garth Ennis, a série televisiva 'The Boys', veiculada pelo serviço de streaming da Amazon, é um retrato do que há de mais trágico na pós-modernidade: sua insistência em negar o Ser e suas faces transcendentais (o Bem, o Belo e o Verdadeiro) como fundamento da realidade. Para compreender a intrincada relação da saga com o "espírito do tempo", contudo, é preciso dar um passo atrás.
O colapso da hegemonia da tradição filosófica conhecida como realista tem início nos primórdios daquilo que os historiadores definem como Era Moderna. A perspectiva do realismo filosófico afirma que o que chamamos de real (o Ser) está fundamentado no Bem, entendido como aquilo que é desejável e que sustenta a vida. Desta forma, a percepção do fundamento do que é bom por meio do que captamos com nossos sentidos (primordialmente a visão) nos faz contemplar a Beleza das coisas. Quando, por fim, através de nossa inteligência conseguimos apreender a essência do que percebemos, nossa mente se satisfaz com o Verdadeiro.
Pelo menos desde Platão e seus guardiões da 'República', os responsáveis pela condução do bem comum deveriam ser cada vez mais virtuosos em suas dimensões corporal, emocional e intelectual, mantendo uma honradez e uma integridade juntamente com sua excelência, reivindicando sua autoridade por meio da contemplação desses transcendentais do Ser. Os políticos deveriam ser heróis do povo, em uma união entre alma individual e pólis, ética e política. Essa tradição filosófica foi endossada pela Cristandade Medieval com seus reis, santos e cavaleiros.
A Era Moderna substitui as bases do realismo, reduzindo as certezas da razão ao método matemático-experimental, retirando a convicção de que o fundamento do real é intrinsecamente bom e limitando a relação entre o Belo e o Verdadeiro. O filósofo Maquiavel é um dos exemplos deste rompimento com a aposta nos governantes como heróis e santos: Príncipe moderno é pragmático e deve separar ética e política. A partir de então, as razões de Estado se concentraram não na virtude dos governantes, mas nos princípios impessoais da soberania popular, das liberdades e direitos individuais, do patriotismo e dos tecnicismos econômicos de gestão do bem-estar da maioria.
Diante da ressaca pela falência das grandes narrativas da modernidade no final do século passado - a trágica era das duas grandes guerras, do Holocausto, da bomba atômica e da dissolução da URSS -, a cultura contemporânea, contudo, não conseguiu apresentar fontes de sentido que não sejam a própria negação. Consequentemente, para sobreviver enquanto produtora cultural, precisa requentar aqueles mesmos ídolos que já tinha destituído. É como o cão que volta ao seu vômito.
O que nos traz de volta aos "heróis" decaídos de Garth Ennis. Não li os quadrinhos do autor, mas me parece que a série da Amazon se mantém fiel ao seu satirismo, ceticismo e niilismo. O abuso escatológico das retratações da destruição da dignidade humana, com suas aberrações em sexualidade, violência e abuso de drogas, pode ser remontado à certa tradição das sátiras gregas de Aristófanes, das mais tenebrosas tragédias de Sófocles, das descrições dos círculos infernais medievais de Dante, dos bacanais clericais de 'Decamerão' de Boccacio, dos quadros renascentistas tal o 'Jardim das Delícias' de Hieronymus Bosch, das comédias Dell’arte de François Rabelais, da impactante e popular obra do Marquês de Sade, do culto moderno a Mefisto e 'Fausto' de Goethe e, por fim, à vasta produção da indústria pornográfica, do cinema gore e das distopias desumanizantes de 'Black Mirror'. Até podemos integrar neste percurso o teatro de Nelson Rodrigues. É um florilégio fenomenológico do Mal.
Contudo, diferente dos fascinados pelo Mal de outrora, minha suspeita é que Ennis e os roteiristas da série conseguiram estabelecer um curto-circuito entre a fabricação em massa de super-heróis - ainda tributária da modernidade e seus discursos de Estado de Bem-Estar social, autonomia dos oprimidos e campeões da liberdade e da democracia - com a voracidade ácida da pós-modernidade e sua degradante concepção de humanidade.
De fato, por trás da aparente libertação moral pós-moderna, reside um potencial iluminismo luciferiano da negação do Bem. Quando esses dois elementos – uma indústria cultural de super-heróis com o objetivo de propaganda e a desumanização por meio da crítica – se unem num produto cultural, surge a vertigem diante do absurdo do Mal.
Já nos anos 1960 Umberto Eco buscava uma saída entre os apocalípticos, que exortavam uma pronta recusa do super-homem como cultura, e os integrados, que engoliam acriticamente os enlatados super calóricos de simplificação moral e ideológica. Ao que parece, o sucesso de 'The Boys' é um triste fenômeno que pode representar esse paradoxo de uma sociedade que recusa o super-homem devido à consciência de sua fraude, mas que ao mesmo tempo não consegue se libertar desse vício cultural (cultual?) porque simplesmente não admite nenhuma outra possibilidade de sentido. É uma bricolagem fantasista entre a banalidade do Mal de Hanna Arendt, as vidas líquidas de Zygmunt Bauman e as sociedades do espetáculo de Guy Debord.
Em suma, a única coisa que temos são os “supes” para nos trazer significado, ainda que todos saibamos que eles são fraudes. Daí nossa necessidade de vê-los lentamente sendo desconstruídos em meio à banalização do sexo e da violência. Talvez, seja uma maneira do público manifestar sua tentação de que, no fim, o que traz sentido à vida é o regozijo no Mal. Não à toa, Tolkien apresentou uma ressalva ao livro 'Cartas do Diabo a Seu Aprendiz', de C.S. Lewis: receava que o amigo havia se emaranhado demais no pensamento do demônio. Descartando-se a bússola moral, o mesmo parece acontecer com os criadores de 'The Boys'.
Ainda que os heróis das HQ’s do século passado possam, de fato, possuir reminiscências míticas mais antigas e poderosas, a individualização do consumo dos produtos culturais - isto é, sua retirada de uma comunidade interpretativa dos mitos enquanto sagrados - deixa o imaginário completamente vulnerável às mais insidiosas manipulações ideológicas, como imperialismos e colonialismos militares, econômicos e culturais. Daí a analogia já senso comum entre o super-homem enquanto expoente dos Estados Unidos como guardiões do mundo. A despeito de todas as boas intenções presentes na fabulação dos heróis, com a amputação da transcendência e da busca sincera pelo Bem, a pós-modernidade parece assumir que o que nos resta é aceitar como nosso modelo esse super-homem conscientemente apodrecido do Homelander.
Neste caso, encontramos anunciado em Platão e seu Anel de Giges - que garantia a invisibilidade para quem o usasse, tal como o Um Anel de Sauron - os riscos que a impunibilidade gerada pela supremacia bruta traria. Em suma, a pergunta latente de quem vigia os vigilantes expressa a consciência de que a onipotência necessariamente corrompe, transformando o herói popular em tirano carniceiro. Segundo Acton, o poder absoluto corrompe absolutamente, e o sorriso cínico e desumano de Homelander ensina rapidamente essas lições.
Aristóteles ensinava em sua 'Poética' que mesmo aquelas descrições artísticas mais repulsivas, como cadáveres e monstros, nos atraem devido ao conhecimento que podemos adquirir por meio delas. Nos tempos de hoje, para sensibilizar uma geração amortecida com pornografia à vontade na internet e bombardeada pela violência mais alucinada presente no mundo e trazida às telas das redes sociais, 'The Boys' se encharca desse ácido digestivo de veneno que tudo se corrói: religião, patriotismo, o politicamente correto dos movimentos antirracistas e pró-LGBT, o discurso da prosperidade, a ética da propaganda de mercado e o controle governamental. Sua atração reside na exibição da crueza dos tempos atuais. Tudo termina em abusos sexuais e corpos estraçalhados.
Como dizia Mefisto de Goethe: "Eu sou o espírito que tudo nega! Porque nada que existe merece ser eterno".
*Diego Klautau é doutor em Ciências da Religião, professor do curso de especialização em Teologia e Ensino Religioso da PUC-SP, do Centro Universitário FEI e do Colégio Catamarã
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