Impostura, ou embuste, é muito pior do que hipocrisia, já que, se por “hipocrisia” expressamos a incapacidade de vivermos de acordo com nossos ideais morais, a maioria de nós é hipócrita, e ainda bem por isso. Uma sociedade na qual todos vivessem de acordo com seus princípios morais seria intolerável, independentemente dos princípios. Além do fato de que é impossível existir uma trama de princípios morais capaz de conter as infinitas variáveis da vida, uma pessoa sem fraquezas morais, ainda que admirável em abstrato, seria incômoda e até assustadora. É bom não ser mentiroso; mas nunca mentir é ser antissocial, praticamente um robô.
Sem hipocrisia, não haveria fofoca; sem fofoca, não haveria literatura e aquela preciosa conversa à toa. A dose de hipocrisia necessária para se manter as relações sociais é uma questão pessoal porque, ainda que muitos casos individuais de hipocrisia sejam reprováveis e estejam sujeitos a críticas, e outros casos estão além do aceitáveis, a hipocrisia é tão necessária para a existência humana quanto e o amor e a risada. Não podemos nunca nos esquecer do aforismo de La Rochefoucauld segundo o qual a hipocrisia é o preço que o pecado paga à virtude: mas ele ao menos sabe que existe uma diferença. A única forma eficiente de eliminar completamente a hipocrisi das questões humanas é abdicar dos padrões morais.
A impostura pode ser mais destrutiva do que a hipocrisia porque ela é mais difícil de identificar e expor e porque um impostor engana a si mesmo e aos outros, enquanto um hipócrita sabe o que está fazendo; ele é um trapaceiro, mas não necessariamente um vilão. A impostura é a expressão pública veemente da preocupação pelos outros ou da revolta diante de uma opinião que lança dúvidas sobre alguma ortodoxia moral que não é nem pode ser genuinamente sentida; sua veemência é um escudo que protege a mentira e a falta de confiança na opinião ortodoxa. Samuel Johnson define a impostura como “a pretensão sofrida da bondade, em termos formais e afetados”. A impostura é contagiosa e, quando disseminada, gera uma atmosfera na qual as pessoas temem chamá-la por seu nome. As discussões, então, acontecem sem contrariedade; e, se a discussão é realizada assim sem o contraditório, o resultado são políticas públicas ridículas, ruins e até prejudiciais.
Acho que vivemos na era da impostura. Não estou dizendo que essa é a única época em que vivemos isso. Mas, ao menos ao longo da minha vida, nunca foi tão importante defender as opiniões certas não expressas nenhuma opinião errada, isso se você pretende evitar o cancelamento e continuar socialmente aceito. Pior ainda, e ainda mais totalitária, é a exigência de submissão pública a proposições explicitamente falsas ou exageradas; a recusa em se submeter a tais circunstâncias é um pecado tão reprovável quanto expressar uma opinião proibida. É preciso se juntar à impostura universal – do contrário...
O poder de destruir
Sempre que as pessoas são legal ou socialmente castigadas por expressarem uma opinião contrária a uma ortodoxia recém-adotada qualquer, ou por não concordar com as bases dessa ortodoxia, a impostura prospera. Além disso, as pessoas que começam a desconfiar de que são impostoras passam a acreditar que tudo é verdade porque ninguém gosta de pensar que se expressou de tal forma por mera conformidade ou pusilanimidade, ou para evitar o incômodo ou a ruína da própria reputação. Por isso a impostura se espalha rapidamente assim que surge na sociedade, e torna-se difícil de combater e erradicá-la.
A impostura também tem a tendência a inflar. Quando ela se torna generalizada, é necessário, para qualquer um que deseje se distinguir da maioria, ir além em sua própria impostura. É como o fundamentalismo islâmico: você sempre pode ser superado por alguém ainda mais ortodoxo do que você. Assim que uma nova doutrina da impostura se transforma na ortodoxia, ela se torna obsoleta.
Os líderes da impostura não buscam a verdade, e sim o poder, nem que seja apenas o poder de destruir, que às vezes é uma diversão em si. A impostura é a arma da mediocridade ambiciosa, um tipo de gente que se tornou muito mais numerosa com a ampliação e também diluição do ensino superior. Essa gente acredita que a proeminência social é seu dever.
O Reino Unido é um líder mundial em impostura. O historiador Macaulay dizia que não havia nada mais ridículo do que um britânico dando um ataque moralista. Ele se referia mais à impostura do que à obediência à lei moral ou à reflexão real sobre a base ética da ação. Dickens retratava personagens cuja principal característica era a impostura: Pecksniff, Uriah Heep, Srta. Jellyby, Sr. Podsnap. Claro que a impostura não é uma invenção. Acusado de ser um caricaturista, Dickens respondeu (no prefácio de “Martin Chuzzlewit”) que o que parecia uma caricatura era para ele a realidade explícita. E acho que o hábito da impostura é capaz de reduzir as pessoas a uma única característica predominante. Ela faz com que as opiniões das pessoas pareçam um disco riscado, cuja agulha fica saltando, repetindo e repetindo o mesmo trecho da música.
A impostura assume o controle da mente e reduz sua capacidade de considerar outros pontos de vista, assimilar provas em contrário ou demonstrar empatia pelos outros em casos em que não há concordância total e incondicional. Ela é, por tanto, em essência intolerante. Ela promove a monotonia e extingue a sutileza, a nuance e a ironia; ela não reconhece a dimensão trágica da vida. Ela é inerentemente utópica porque pressupõe que a perfeição, sobretudo a perfeição moral, pode ser alcançada. Ela é entediante. Ela triunfa sobre os outros usando o que Napoleão considerava a única técnica retórica eficiente — a repetição (ainda que a veemência assustadora também exerça seu papel). Ela intimida por meio da multidão, pelo anátema, pela excomunhão. Ela é desprovida de humor, uma das salvações da existência humana; na verdade, o humor é seu inimigo, talvez o maior inimigo. Por isso é que as piadas são um dos alvos específicos de seu furor.
Ao contrário da hipocrisia, então, não se pode dizer nada em favor da impostura; mas nos lugares onde a ideia de expressar opiniões supostamente corretas se transformou em virtude – e se tornou mais importante do que o comportamento no mundo real – a impostura não tem adversários e está sendo estimulada.
Corrupção da juventude
A impostura corrói as instituições por dentro. O caso de Sir Timothy Hunt, pesquisador vencedor do Prêmio Nobel, é esclarecedor nesse sentido. Em 2015, pediram que ele fizesse um brinde de improviso num almoço para jornalistas, em sua maioria mulheres, na Coreia do Sul. Ao longo do brinde rápido, ele disse:
“Vou falar sobre os meus problemas com as mulheres [na pesquisa científica]. Três coisas acontecem quando elas estão num laboratório: você se apaixona por elas, elas se apaixonam por você e, quando você as critica, elas choram. Será que vamos ter que fazer laboratórios separados para meninos e meninas?”
Uma das presentes, Connie St Louis, não uma jornalista, e sim uma professora universitária de Londres, reproduziu a fala no Twitter, dizendo que aquilo tinha estragado o evento, de tão sexista que era. O tuíte viralizou; em pouco tempo, todo mundo estava repetindo xingamentos contra Hunt, e a indignação contra ele foi tão grande que Hunt se sentiu obrigado a renunciar a seus cargos honorários (ele tinha 72 anos na época) na University College, de Londres, na Royal Society (uma das mais antigas e respeitáveis sociedades científicas do mundo) e no European Research Council, que ele tinha ajudado a criar. A University College exigiu que ele pedisse demissão – e a esposa dele era professora na instituição -, do contrário seria demitido.
Os pedidos de desculpas de Hunt, de acordo com a Royal Society, não foram enfáticos o bastante. O fato é que, depois de uma investigaçãozinha pela qual seus detratores não esperavam, descobriu-se que a mulher que deu início à confusão era conhecida por seus exageros e por se autopromover sem ter conquistado quase nada de real – um tipo facilmente encontrado ultimamente na academia. De acordo com algumas testemunhas, as palavras horríveis de Hunt foram precedidas pelo seguinte:
“Quero dizer algo sobre a importância das mulheres na ciência. Também quero homenagear as cientistas capazes que conheço, dizendo umas coisinhas sobre elas. E agora também quero reconhecer a colaboração dada pelas jornalistas. É estranho que um monstro chauvinista como eu tenha sido convidado para falar para cientistas mulheres”.
Não existe uma transcrição do discurso, mas é provável que Hunt tenha dito algo indicando para qualquer pessoa normalmente inteligente – e não uma oportunista esperando pela vez de se mostrar indignada – que suas malfadadas palavras eram irônicas. O que está provado em suas palavras finais, das quais existe registro: “Então parabéns a todas. E espero, realmente espero, que nada as detenha, nem mesmo um monstro como eu”. Connie St Louis, professora de futuros jornalistas especializados em ciência, omitiu isso, ainda que deva ter ouvido. Que bela corruptora da juventude!
Várias importantes cientistas que haviam estudado com Hunt se apresentaram para defendê-lo, dizendo que ele nunca se comportou mal com elas, mas nem sua conduta real nem sua relevância como cientistas foram o bastante para salvá-lo. A University College, demonstrando que presta atenção aos ensinamentos de Uriah Heep, divulgou um comunicado: “A UCL foi a primeira universidade inglesa a admitir mulheres em condições de igualdade com os homens, e a universidade acredita que o ocorrido [o pedido de demissão de Hunt] é compatível com nosso compromisso com a igualdade de gênero”. Com toda a coragem dos impostores covardes, a instituição reafirmou sua decisão mesmo depois que mais provas surgiram. A universidade disse que a recontratação de Hunt seria “inapropriada” – a palavra mais próxima que eles encontraram de “errada”.
Hunt e sua esposa se mudaram para o Japão. Portanto, na vida acadêmica inglesa há lugar para inescrupulosos grupelhos de impostores, mas não para vencedores do Prêmio Nobel que disseram bobagens que não são nem mesmo merecedoras de atenção. Coitado de Tim Hunt — que todos dizem ser uma pessoa decente. A revolta autoimpulsionada por uma mediocridade evidente foi o bastante para derrubar um homem distinto.
Conversas privadas
Uma andorinha só não faz verão, mas infelizmente as andorinhas são muitas. Pense nos casos de Germaine Greer e J. K. Rowling, hoje dignas de escárnio e excomunhão por terem ousado dizer uma verdade tão óbvia que há algum tempo seria considerada clichê — que homens que viraram mulheres não são mulheres. A riqueza e fama delas as protegeram, em certa medida, das consequências de suas palavras, ainda que Rowling, por exemplo, tivesse de passar pelo processo de ser admoestada por atores e atrizes que devem suas fortunas à criação dela.
Para aqueles que não são famosos nem estão em posição de ignorar as consequências econômicas de suas opiniões, e que não querem se tornar mártires de uma revolta de tuiteiros impostores, o medo da repercussão agora está incluído em tudo o que eles dizem sobre vários assuntos. Até mesmo conversas privadas estão sujeitas à autocensura, por medo de uma denúncia às autoridades competentes. Como descobriram os soviéticos e os nazistas, a acusação privada era um dos prazeres do autoritarismo.
Um professor de engenharia de 73 anos em Southampton conversava com uma colega na cantina da universidade. Uma conversa particular que levou à demissão dele, posteriormente apoiada por um juizinho covarde. Stephen Lamonby tinha se encontrado com sua superiora, Janet Bonar, na cantina. Durante a conversa, ele disse que os judeus eram o povo mais inteligente do mundo, embora tenham sido vilanizados por isso, e que os alemães eram bons em engenharia, o que ele justificava pelo fato de a sociedade alemã há muito tempo valorizar e promover a engenharia. Bonar se sentiu tão ofendida por aquilo que, ainda que não estivesse numa arena pública, de acordo com Lamonby ela começou a gritar. Numa atitude digna da KGB, ela então o denunciou às autoridades.
No julgamento realizado pela universidade, a vice-reitora Julie Hall disse que Lamonby não via suas palavras como ofensivas e que ele foi demitido por “mau comportamento”. Bonar disse que estava preocupada com o fato de os alunos aprenderem com alguém com “opiniões racistas enrustidas”. Ninguém, contudo, alegou que ele fosse incompetente ou antissemita: ele não era um daqueles conspiracionistas que dizem que os judeus são inteligentes e usam sua inteligência para controlar o mundo.
Estereótipo positivo
Ao recusar a apelação de Lamonby, um juiz mais tarde disse: “Sem dúvida, considero ao menos potencialmente racista em relação a nacionalidades, raças, etnias ou religiões conferir certas habilidades ou talentos (ou o contrário) a elas, quando, claro, como acontece em qualquer grupo, talentos e habilidades variam imensamente de indivíduo para indivíduo”. Ele rejeitou o argumento de Lamonby segundo o qual estava mencionando um estereótipo positivo. Sem qualquer lógica e sem dar atenção ao sentido das palavras, o juiz decidiu que um físico judeu talvez se ofenda ao ouvir de alguém que seu sucesso se devia ao fato de ele ser judeu, e não ao seu trabalho ou capacidade individual. Mas, como ser judeu e trabalhar duro não são coisas excludentes — na verdade, a relevância em certos campos é inconcebível sem trabalho duro, tanto que Mozart, um gênio absoluto, trabalhava e estudada muito —ninguém se deu ao trabalho de relacionar a inteligência na física simplesmente ao fato de alguém ser judeu. O juiz disse que o estereótipo positivo – ele não negou que era positivo – ainda assim era “potencialmente ofensivo a quem ouvisse”.
Note aqui o uso, pela segunda vez, da palavra “potencialmente” na justificativa do juiz para considerar que Lamonby foi justamente demitido. Potencialmente, esse uso da palavra “potencialmente” é capaz de dar vazão a um totalitarismo explícito, já que implica que não é preciso haver prejuízo a uma pessoa para que outra seja punida, e sim apenas o potencial de causar prejuízo. Como escreveu Kafka: “Alguém deve ter traído Josef K. porque, sem ter feito nada de errado, ele foi preso numa manhã qualquer”. E, na opinião do juiz, qual o prejuízo que Lamonby potencialmente causou? Além das ofensas aos judeus, os não-judeus talvez também se sentissem ofendidos, ainda que “por alto”, porque talvez eles sintam que algumas características – supostamente indesejada, ainda que o juiz não tenha especificado isso – estão sendo atribuídas a eles.
O juiz estava expondo o que pode ser chamado de “teoria da casca de ovo da psique humana”. Se alguém se ofende com algo que outra pessoa diz, isso basta para configurar um prejuízo digno de reparação. É o fim do “homem sensato” da jurisprudência inglesa tradicional na avaliação quanto ao potencial de ameaça ou insulto para constituir atenuante para a perda do controle emocional: a pessoa se considera ameaçada, perseguida, insultada e ofendida por si só, e isso basta para que o caso vá à Justiça. Os sentimentos se tornaram legisladores.
Em seu último atentado contra a liberdade de expressão, o maior juiz desde Pôncio Pilatos disse, sobre as opiniões de Lamonby, que qualquer pessoa poderia se sentir ofendida porque ele falou sobre coisas que “não são de sua conta”. O juiz parece não perceber que, se as pessoas não pudessem trabalhar por dizerem algo que “não é da sua cona”, a taxa de desemprego mundial chegaria próxima aos 100%, exceto, talvez, na Coreia do Norte. Ele também diferenciou o que é dito em público do que é dito em particular.
Num mundo controlado por gente como o juiz, nenhuma generalização seria possível. Não daria nem para dizer que os holandeses são o povo mais alto do mundo. Para ele, o fato de as generalizações serem ou não verdadeiras é irrelevante. A ideia de que os judeus são inteligentes, por exemplo, parece ter surgida diante do número desproporcional de prêmios Nobel entre eles. A ideia de que os alemães são bons engenheiros parece ter nascido do fato de que seus principais produtos, como carros e equipamentos, exigirem habilidades em engenharia. Mas meros fatos, por mais óbvios que eles sejam, não devem interferir na expressão dos sentimentos certos e na supressão dos sentimentos errados.
A mulher que acusou Lamonby, a vice-reitora da universidade, o tribunal trabalhista que disse que a universidade tinha um dever para com seu corpo discente de “protege-lo de atos de racismo em potencial” e o juiz que rejeitou a apelação de Lamonby — todos confundiram impostura e embuste com raciocínio. É natural especular por quê. Acho, ironicamente, que a resposta pode ser encontrada numa palavra: racismo. Eles ficaram com raiva de Lamonby porque, se o que ele disse é verdade (por qualquer motivo), isto é, que os judeus são inteligentes e os alemães são bons em engenharia, deve ser verdade também que os outros povos são menos inteligentes e “menos bons” em engenharia – um pensamento proibido. Por que proibido? Porque, no âmago, essas pessoas temem que haja explicações para a desigualdade de resultado. Por isso elas não querem uma sociedade sem impedimentos legais e onde cabe a todos encontrar seu lugar.
Pensamentos indesejados
A impostura é, entre outras coisas, uma defesa contra pensamentos indesejados. “Limpe sua mente da impostura”, dizia Samuel Johnson. “É uma forma de dialogar em sociedade: mas não pense errado”. O que é mais fácil dizer do que fazer, sobretudo hoje em dia, quando o estímulo à impostura e a censura a tudo o mais são os principais objetivos da educação.
Theodore Dalrymple é colaborador do City Journal, membro do Manhattan Institute e escritor.
© 2020 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês
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