Um homem sábio sabe que tem de pôr as coisas em perspectiva, mas um homem mais sábio ainda sabe em que perspectiva pôr as coisas. Um médico que diz à viúva de um paciente que acabou de morrer que, no final das contas, a morte do marido dela foi apenas uma entre as 2,8 milhões de morte anuais nos Estados Unidos (ou 56 milhões de mortes no mundo todo) é um monstro insensível. Mas um epidemiologista que tenta expressar sua compaixão por toda morte que tabula jamais irá além da sua primeira planilha estatística. A perspectiva mais adequada muda de acordo com o contexto.
Sob que perspectiva correta o cidadão médio deveria ver a pandemia atual de coronavírus, supondo que haja uma única perspectiva correta para isso? A maioria das pessoas, suponho, oscila entre a complacência e o pânico. Elas são como pequenos investidores que acompanham as flutuações do mercado acionário com uma atenção febril. Um gráfico mostrando o crescimento exponencial nos casos leva a um estado de ansiedade; um gráfico mostrando uma queda no número de mortes no dia anterior leva à sensação de alívio, de que o pior já passou.
Ouça o que dizem os cientistas, você talvez pense. Este é o caminho para você se tornar um ser humano totalmente racional. Sobre isso, a ciência se manifesta com uma única voz, ex cathedra. Ela expõe uma doutrina que a Humanidade, composta na maior parte por pessoas alheias à ciência, deve aceitar com humildade. Mas claro que nem o mundo nem a ciência são assim.
Preso em meu apartamento de Paris (como um verdadeiro prisioneiro, tenho permissão para uma hora de exercício por dia), acabei de ler dois livros extremamente relevantes para a situação atual: The Rules of Contagion [As regras de contágio], de Adam Kucharski, epidemiologista da London School of Hygiene & Tropical Medicine, e Épidémies: vrais dangers et fausses alertes [Epidemias: perigos reais e alarmes falsos], de Didier Raoult, um dos mais importantes médicos especialistas em doenças infecciosas do mundo e que mora em Marseille.
Ninguém duvida da importância dos dois cientistas, embora suas ideias sejam tão discordantes quanto as de um secularista militante e um teocrata. O leigo que está fazendo o seu melhor para ser racional está à mercê do último especialista cuja opinião ele leu ou ouviu falar. Raoult talvez arruíne sua reputação por conta de sua barulhenta e nada científica defesa do tratamento com a hidroxicloroquina, enquanto Kucharski não reconhece os limites da epidemiologia, que às vezes é uma ciência inexata e, pior, às vezes pode ser um instrumento poderoso para o controle da população por parte de burocratas.
Ilusão de controle
Raoult despreza os modelos epidemiológicos cujos históricos de acertos são duvidosos, para dizer o mínimo. Ele lista epidemias recentes, incluindo duas gripes aviárias, a doença da vaca louca, ebola, chicungunha, zika, SARS e MERS, a partir das quais os epidemiologistas criaram ousados modelos de progressão, e diz:
Foram feitos modelos matemáticos e previsões para todas essas doenças, prevendo a morte de milhões de pessoas. Nada disso aconteceu, exceto por uma epidemia de gripe que foi tão fatal quanto qualquer gripe normal.
Erros como o que ele descreve não têm apenas importância intelectual. Eles têm consequências práticas graves naquele que podemos chamar de mundo real. Eles desorientam os esforços de saúde, tirando o foco de problemas muito maiores. Raoult calcula que, para cada uma das doenças mencionadas, existem 61 artigos científicos nos melhores periódicos médicos para cada morte causada por elas. O pânico é geralmente mais perigoso do que aquilo que o causou.
Entre as doenças que Raoult considera as de pouco impacto, em termos estatísticos, está a Covid-19. (O livro dele foi publicado em março). Ele está certo ou está sendo insensível? Como o pobre leitor leigo é capaz de decidir? Confesso-me num estado de dissonância cognitiva – e claro que não estou sozinho nessa — quando leio que a mortalidade na população como um todo não foi afetada pela pandemia, mas ainda assim há matérias confiáveis em todos os cantos que mostram cenas apocalípticas em hospitais como nunca se viu antes. Claro que as piores cenas são localizadas: nenhuma epidemia atinge todos os lugares com a mesma força. Mas a Covid-19 claramente não é a Peste Negra, que matou algo entre 1/3 e metade da população europeia e que ninguém na época podia dizer que não se tratava de uma ameaça à espécie, porque ela realmente foi.
O pânico mundial em torno da Covid-19 nos diz algo sobre nós mesmos e sobre o mundo contemporâneo? Em 1957, a gripe asiática teria matado até 2 milhões de pessoas, enquanto a gripe de Hong Kong de 1968 teria sido responsável por mais de um milhão de mortes, e ainda assim elas desapareceram completamente da memória coletiva, talvez sem jamais ter entrado nela. De acordo com Raoult, pânicos quanto a epidemias em potencial são ainda mais frequentes. Por que isso acontece, já que a expectativa de vida média mundial é a mais alta na história da Humanidade? Será que esses pânicos são um sintoma da nossa falta de contato cada vez maior com a morte como o fim natural da vida?
Um dos problemas é que o medo não é exatamente proporcional ao risco, nem mesmo quando se sabe disso. Por mais que saibamos que as viagens aéreas são o meio de transporte mais seguro que existe, será que existe alguém que não sente um medo momentâneo quando o tubo de metal no qual ele se encontra se aproxima do solo a mais de 200 km/h? As estatísticas de mortos em acidentes aéreos não servem de nada para acalmá-lo.
O pânico em torno da Covid-19, supondo que ela continue sendo uma epidemia de consequência relativamente menor na mortalidade geral da população mundial, se deve em parte ao caráter apocalíptico da morte causada pela doença. Se em vez de um sofrimento tão horrível o doente simplesmente morresse dormindo, a epidemia mal seria notada, muito menos por nossa imprensa, e ainda mais sendo que as mortes ocorrem predominantemente entre os mais velhos. Apegado à vida como sou, não posso ignorar que a morte, na minha idade, não seria tão trágica quanto a morte de uma pessoa de vinte anos.
A Covid-19 sem dúvida será controlada em breve. Haverá uma vacina, talvez um tratamento. Mas ela terá feito um estrago na crença, ou ilusão, da Humanidade de que tudo está sob controle, exceto por um bipe aqui e ali no caminho de uma vida sem sofrimento, inconvenientes ou imprevistos. Para nós que sobrevivermos à pandemia, a ciência terá ganhado força, mas terá perdido alcance.
Eu me lembro de um tempo antes do colapso do Lehman Brothers (o epidemiologista Adam Kucharski menciona isso), quando matemáticos diziam ter elaborado um modelo que eliminava o risco de um calote epidêmico nas hipotecas. Isso, claro, provou ser uma ilusão, e é sempre uma tolice. Mas se a comparação é válida, também sugiro que a ilusão de controle retornará em breve, depois que a epidemia passar. A ilusão é eterna.
A sedução da catástrofe
O catastrofismo é o contrário da sensação de controle total. Podemos passar de uma coisa a outra sem recorrermos ao realismo, assim como somos capazes de mudar a forma de ver as coisas quando nos deparamos com um desenho que pode ser um pato ou um coelho, mas não conseguimos ver as duas coisas ao mesmo tempo. O utópico de hoje é o distópico de amanhã.
Cenários catastróficos sempre atraem a mente humana, ainda mais em tempos de segurança. (Eu cheguei aos 70 anos sem passar por guerra, sem sofrer opressão e sem qualquer ameaça séria à minha saúde, provavelmente algo inédito na história humana). A literatura e o cinema demonstram nosso amor pelas catástrofes imaginadas. O realismo, por outro lado, é chato, desinteressante. As pessoas no conforto de seus lares gostam do perigo, desde que ele não as ameace.
Não posso provar, claro, mas sinto um quê de deleite nas matérias sobre os números de mortos por Covid-19. As Cassandras profissionais (e acho que, num contexto diferente, sou uma delas) se satisfazem ao dizerem “eu lhe disse”. Há mais prazer em se ter razão quanto a um desastre futuro do que em se ter razão quanto à melhora geral da Humanidade. Possivelmente haverá uma ligeira decepção em alguns segmentos quando tudo voltar ao normal. Como ocuparemos nossas mentes então?
*Theodore Dalrymple é médico e escritor.