Toda utopia é um conjunto de ideias perigosas cercadas de emoções baratas e boas intenções por todos os lados. Ou, numa variante “geoideológica”, é a definição genérica para qualquer ilha de loucura cercada por todos os lados de atos insanos e seguidores ingênuos. Já da Utopia, país fictício que consagrou seu autor e transformou um topônimo em substantivo comum, pode-se dizer que é uma ilha de sabedoria, cercada infelizmente de ignorância e falsificação por todos os lados.
Na cartografia da aventura humana sobre a terra, utopias ocupam territórios extensos, infelizmente em constante expansão — e, perdoem-me o clichê, costumam estar ocupadas por mares de sangue e montanhas de cadáveres. Porque a loucura, já disse um recente vilão de cinema, é como a gravidade: só precisa de um pequeno empurrão…
De antemão: este não é um artigo sobre a incompreensão e intolerância dos homens — mas “apenas” a saga de um dos homens mais injustiçados de seu tempo, e um dos mais incompreendidos da história contemporânea: Thomas More, aliás, Thomas Morus — ou melhor, S. Tomás More, santo da Igreja Católica. Um fiel servidor do Rei, “mas de Deus primeiro”.
Um homem de família, um servo da Justiça
Conta-se que S. Tomás More (1478-1535) costumava se apresentar como um homem “de família honrada, sem ser célebre”, e “um razoável conhecedor das letras”. Era filho de Sir John More, juiz investido cavaleiro por Eduardo IV, e de Agnes Graunger More, mas coube a ele tornar ilustre o sobrenome — tarefa que desempenhou com o talento de poucos e a modéstia de raríssimos homens.
Educado na St Anthony School, uma das melhores escolas inglesas de seu tempo, desde cedo More se preparou para a vida pública, mas sem descuidar da lapidação interna, quer dizer, da construção discreta e silenciosa de um espírito forte, lúcido e sem afetação — tão em dissonância com a postura empolada dos pares que conheceu, com quem dialogou, e que precisou enfrentar. O também ilustre renascentista Erasmo de Roterdam registrou em cartas e diários que era um prazer conviver com More e sua família — um tópico que por sinal renderia outro longo artigo. Mas este quer falar sobretudo do homem público e do grande escritor.
As datas de sua formação são prodigiosas. Numa época em que não parecia existir a mitologia social da juventude, nem regulações contra “o trabalho infantil”, More começou a servir o Arcebispo de Canterbury e Lord Chanceler da Inglaterra John Morton com apenas 12 anos. Vendo no moço Tomás um potencial enorme, Morton o recomendou para uma vaga na Universidade de Oxford, onde iniciou seus estudos, tornando-se hábil em grego e latim. Mas, dois anos depois, More teve que abandonar Oxford por decisão do pai — católico fervoroso, que desejava fazer dele seu herdeiro profissional e espiritual. O bom filho e aluno brilhante iniciou assim a formação jurídica em Londres, onde permaneceu até 1502. Tinha “apenas” 24 anos.
Mas, já disseram os poetas, ninguém atravessa a vida com a exatidão certeira de uma flecha. No meio dessa trajetória, More se sentiu atraído pela vida contemplativa. E para refletir e meditar sobre sua vocação, ingressou como hóspede no mosteiro da Cartuxa que ficava nos arredores de Londres e se destacava como um dos mais importantes centros religiosos da Inglaterra. Desse período de penitência e oração, do qual abriu mão para cumprir sua vocação de “homem de família e servo de Deus”, More guardou para o resto da vida a convicção da importância de ser um homem fiel e contrito, e a certeza de que sua missão era atuar na sociedade como leigo — mas sempre vivendo “na amizade de Deus, longe das distrações mundanas”.
More se casou aos 27 anos com Jane Colt, dez anos mais jovem do que ele, e tiveram três filhas (Margarete, Isabel, Cecília) e um filho (João). Após seis anos de casamento, Jane faleceu de uma das doenças fatais da época (as mais prováveis são tifo, gripe disenteria). More, que já tinha assumido a guarda de duas outras meninas (Ana Cresacre e Margarete Griggs), viu revelada ali uma de suas educações de pai e educador. E, para desempenhá-la à altura, resolveu se casar novamente; dessa vez, com Alice Middleton, também viúva com uma filha (consta que também chamada Alice). O novo casal assumiu a educação de todas aquelas crianças, num ambiente familiar que era ao mesmo tempo religioso e alegre, abundante e espiritualmente modesto. Anos mais tarde, More escreveria que não sabia distinguir qual das duas esposas eles tinha amado mais.
Para espanto dos historiadores e biógrafos, surpreende que em meio a tantas atribuições familiares Tomás More tenha encontrado tempo e talento para consolidar sua carreira de homem público. E é fato que ele conseguiu: além de advogado e jurista, foi diplomata atuante, ajudando a resolver grandes querelas de estado, e ainda se elegeu para o Parlamento. E ainda encontrou tempo para construir uma obra filosófica e literária que somam cerca de duas dezenas de livros. Mas a inveja (que é inimiga dos justos) e a ignorância (a detratora dos sábios) fez com que More padecesse dupla incompreensão — uma em vida, outra posterior.
Um rei, seis esposas e um grande amigo desconsiderado
O mundo foi sempre um território de conflitos, políticos e eventualmente religiosos. Para fazer frente aos confrontos de época, a Inglaterra precisou de um lorde chanceler da envergadura de Tomás More — que logo se notabilizou pela defesa da Fé (numa Europa conturbada, que em breve seria atingida pela cisão da Reforma protestante), mas sobretudo pelas iniciativas voltadas para a melhoria da educação, da infraestrutura e da relação da Inglaterra com os países vizinhos.
O posto de Chancelaria que More ocupava era o mais alto da Inglaterra, só abaixo do próprio rei. E se dependesse apenas dele mesmo, de seu talento e sua boa fé, tudo conduziria a um desfecho feliz. Ocorre que o monarca da ocasião era Henrique VIII, famoso principalmente pelo caráter atrabiliário e pela vida conjugal infiel e inconstante. E coube a More ser chanceler justamente quando o monarca lutava para anular seu casamento com Catarina de Aragão para se unir à lendária dama da corte Ana Bolena, que poderia afinal lhe dar o herdeiro masculino que ainda não tinha conseguido. Disposto a impor sua vontade, Henrique VIII apresentava a alternativa de aprovação de uma Lei do Divórcio. Mas no meio do caminho havia uma pedra: o leal servidor Tomás More — contrário às duas pretensões do monarca.
A querela tomou enormes proporções, e boa parte dela está devidamente registrada nos livros de História. Do conflito irredutível entre o Henrique VIII e o Papa da época (Leão X), surgiu a Igreja Anglicana, separada de Roma e chefiada pelo próprio monarca, auto proclamado Chefe Supremo da nova Igreja. Mas do conflito com o lorde chanceler (e até então seu grande amigo) Tomás More nasceu a tragédia que iria marcar o destino da história das amizades — mas também engrandeceria a legião dos santos católicos.
More renunciou ao cargo — e ainda hoje é avaliado como um de seus melhores ocupantes. Pretendia se recolher à vida privada e se manter em silêncio. Mas o irascível monarca tinha outros planos.
A morte na (e pela) fé da Igreja Católica
Para Henrique VIII, More representava mais do que um chanceler competente e leal: era também um amigo querido. Mas por sua elevadíssima autoridade moral, sempre em alta conta no país e no exterior, representava circunstancialmente uma “pedra no sapato real”. O rei então deduziu que não tinha outra saída: se More não aceitasse nem apoiasse publicamente suas decisões, precisaria tomar medidas enérgicas contra seu velho conselheiro e camarada.
Resumo da tragédia: Tomás More permaneceu longamente detido (por um ano e alguns meses) na Torre de Londres. E, diante de sua resistência, de homem “fiel ao rei, mas a Deus primeiro”, acabou sendo decapitado a 6 de julho de 1535.
O julgamento de Tomás More foi presidido pela Suprema Corte da Inglaterra. O próprio acusado optou por se defender sozinho das diversas imputações — e durante todo o processo tratou de deixar claro que não reconhecia a legitimidade de Henrique VIII como “Chefe Supremo da Igreja” na Inglaterra. Afinal, isso equivaleria a admitir algo essencialmente “contrário não apenas aos desígnios de Cristo, mas também à própria Carta Magna”, então consagrada como a Lei maior do país. Consta que vários amigos (católicos devotos, mas igualmente afeiçoados a More) chegaram a lhe implorar que assinasse o Ato de Supremacia, legitimando a proposta heterodoxa do monarca — um documento que já tinha sido referendado por longa lista de homens eminentes do Reino. Mas a História também registra que o futuro santo objetou (com fleuma e sábia ironia): “E quando vocês forem para o Paraíso, por ter seguido sua consciência, e eu para o Inferno, por não ter seguido a minha, vocês me acompanharão por camaradagem?”
Impotente diante da vontade férrea de More, mas tendo na mão o martelo da Lei, a Suprema Corte decretou a sentença de execução em breves 15 minutos. A execução aconteceu cinco dias depois — e durante este período More ficou sem comer, mortificando-se e dando os “retoques necessários" em seu testamento e em sua obra (outro grande legado que deixou).
Aqui, mais uma vez, História e lenda se confundem. Fiquemos com a versão de que, no dia da execução, More acordou às cinco horas e recebeu o último sacramento de confissão; fez uma pequena e rápida refeição matinal; às 9 horas, foi levado de carroça ao local da execução, onde o aguardavam o carrasco e uma pequena multidão comovida, que repetia, antecipando o julgamento futuro da Igreja: “Deus abençoe São Tomás More”. Ã beira da execução, contam que ele teria perdoado o carrasco (também consternado) e dirigido ao povo suas últimas famosas palavras: “Morro um fiel servo do Rei, mas de Deus primeiro”. O resto foi a decapitação — e a glória.
Ao ser notificado do cumprimento da sentença, consta ainda que Henrique VIII reconheceu: “Dói saber que matei o homem mais honesto da Inglaterra”.
A segunda morte, por incompreensão (e uma grande injustiça)
A História tanto condena quanto absolve — e não necessariamente nessa ordem. Às vezes, penalidade e remissão acontecem juntas, ao longo dos séculos.
Pois, passados alguns séculos, o governo inglês e a própria Igreja Anglicana admitiram que More tinha sido vítima “dos desmandos daqueles tempos”. Em 1886, o Papa Leão XIII o beatificou — e Pio XI finalmente o canonizou em 1935. Desde 1970, sua data é comemorada em 22 de junho. Por fim, numa combinação de justiça e ironia, em 1980 a Igreja Anglicana o incluiu em seu calendário litúrgico.
Atualmente, São Tomás More é festejado e aclamado como: padroeiro das crianças adotivas e dos casamentos difíceis; como profissional da justiça zeloso e dedicado, passou a ser também padroeiro dos advogados, promotores e juízes. Mas não apenas isso: no ano 2000 São João Paulo II o proclamou patrono também dos políticos e governantes. Mas todo esse reconhecimento não o livrou da incompreensão póstuma — e de uma segunda injustiça.
Injusto é, sobretudo, o esquecimento de sua vasta obra, composta de mais de 20 volumes mas “reduzida” na memória dos homens a um único livro: sua famosa Utopia, publicada em 1516. Fora dos círculos acadêmicos e especializados, poucos parecem ter ciência de escritos importantes e notáveis como Diálogo contra as Heresias, Réplica a Martinho Lutero ou Um homem Só (Cartas da torre), que trata de seu confinamento final. A bem da verdade, até mesmo seu livro renomado padece de um doloroso desvirtuamento: mais citada e copiada da que efetivamente lida, sua fábula pioneira sobre uma sociedade planificada, e situada cá pelos lados do Novo Mundo, descreve uma sociedade insular onde as cidades são simetricamente semelhantes, onde todas as religiões estão previstas, e onde a riqueza é planejadamente distribuída, não havendo ricos e pobres — não havendo, a rigor, nem mesmo o dinheiro.
(Quem não terá ouvido, ou sentido na pele, os efeitos da ação de implementar tal sociedade?…)
Quando entrou para os dicionários como substantivo comum, a palavra utopia ganhou autoridade de ideal sagrado e indiscutível — embora sempre com um contraponto advertindo para certos “perigos e exageros”:
“UTOPIA
substantivo feminino
1. Qualquer concepção ou descrição de uma sociedade justa, sem desequilíbrios sociais e econômicos, em que todo o povo usufrui de boas condições de vida;
2. Ideal impossível de ser realizado; fantasia; quimera”.
Ao longo do tempo, as duas definições têm contribuído para empilhar cadáveres e acumular mares de sangue, suor e lágrimas (para repetirmos a expressão tão inglesa): a primeira lança o convite tentador para a construção de um mundo justo, enquanto a segunda adverte para o caráter quimérico desse ideal, que mesmo assim (ou talvez justamente por isso) tem sido teimosamente replicado. Neste diálogo de surdos, neste verdadeiro prontuário de equívocos, poucos se dão conta do engano maior — cujo esclarecimento aos menos faria jus à grandeza e à boa fé de São Tomás More.
Por citarem o livro principalmente “de ouvido ou de internet”, o fato é que a maioria de seus leitores (os que o defendem e os que o detratam) não tem a noção verdadeira dos propósitos do livro — ou mesmo de sua própria estrutura narrativa. E tais “detalhes” fazem toda a diferença.
Antes de mais nada: o testemunho entusiasmado da visita à Ilha de Utopia, que constitui a (quase) totalidade do livro, não é do autor Tomás More, mas de um amigo, o “notável Rafael Hitlodeu”, sobre cuja existência real os historiadores e demais especialistas tendem a divergir. Mas o principal é que o registro sobre as finanças, a estrutura política planejada, os costumes um tanto artificiais — tudo faz parte do depoimento de Rafael. Na verdade, More só assume a primeira pessoa narrativa nos últimos parágrafos do livro — e, ao contrário do que se supõe, sua intenção é criticar. Confiram:
“Quando Rafael terminou sua história, várias das leis e costumes dos utopienses descritos por ele me pareceram um tanto absurdos. Seus métodos de fazer guerra, suas cerimônias religiosas e seus costumes sociais são alguns deles. Mas minha principal objeção referia-se à base de todo o sistema, ou seja, sua vida comunal e sua economia sem moeda”. (Os grifos sãos meus)
Em consideração misericordiosa ao cansaço do amigo, que terminava de falar por longas horas, o fato é que Tomás More apenas comenta que se absteve de refutar, aguardando uma ocasião mais propícia — que ele, cautelosamente, delega à imaginação dos leitores. Todos nós.
Crescem os enganos, renova-se a lenda
Na cartografia dos erros de interpretação dos homens, a utopia efetivamente delineada por São Tomás More (com o intuito de ajudar a corrigir “o caráter dos homens”) ocupa um lugar acanhado, cercada por continentes imensos de enganos. Mas consola saber que sua verdadeira história está registrada em edições bem cuidadas de suas 'Obras Completas', que o leitor pode encontrar em qualquer pesquisa rápida na internet. Mencione-se aqui ao menos uma edição, da Yale University Press (The Complete Works of St. Thomas More).
Mas vale também recordar as palavras de More, após decretarem sua sentença fatal. Não se sabe se fiéis e verídicas, mas elas estão numa das cenas finais do filme O Homem que Não Vendeu Sua Alma (A Man for All Seasons), de Fred Zinnemann (1966), proferidas por Paul Scofield, em performance emocionante, literalmente dignas de um Oscar (que lhe foi outorgado, como Melhor Ator):
“Não pratico mal algum, não digo mal algum, não penso mal algum. E, se isso não basta para manter um homem vivo, então de boa fé não desejo viver”.
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