Vivemos a era na qual “crime de ódio” virou a reza progressista de toda manhã, os sacerdotes são os professores universitários, as catedrais são os meios midiáticos e os fiéis são todos aqueles que não se permitem um instante apenas de ateísmo ideológico.
Confesso, porém, como estudioso de filosofia política, que o conceito é interessantíssimo, já que define o que deve ou não ser dito em respeito a todos camaradas que podem se sentir ofendidos com quaisquer termos ou frases. Um ousado e previamente fracassado intento, mas que maquiavelicamente pretendo sondar até seu fim necessário.
Os defensores dos ofendidos definem um verdadeiro glossário dos conceitos permitidos, fazem-no em nome de uma esfarelada e contraditória “democracia” e “liberdade”; uma liberdade estranha e masoquista que se autoafirma na amputação de seu alcance. É uma situação tão contraditória que chega a dar náuseas naqueles que ainda guardam algum apreço pela lógica.
A liberdade para ofender e ser ofendido
Imagine que você é um palestrante de filosofia política ou ciência da religião, e que uma plateia com mais de 600 espectadores aguarda ansiosamente pela sua conferência; nesse grande grupo ― é bom pontuar ― existe a mais heterogênea composição de indivíduos com credos e ideologias diferentes. Imagine agora (vem comigo) que você terá que montar a sua gloriosa palestra pensando atomicamente em casa vírgula, em cada palavra e metáfora que será usada, tentará então encaixar cada termo e entonação vocal numa cadeia discursiva perfeita, lisa, inerrante, a fim de que ninguém ― absolutamente ninguém da plateia de 600 indivíduos ― se sinta pessoalmente ofendido.
Permita-me, por gentileza, adiantar a moral da história: É IMPOSSÍVEL, é insano e idiota imaginar algo do tipo!
Qualquer proibição de ofensa descambará, necessariamente, cedo ou tarde, em algum nível de totalitarismo social; e, por mais paradoxal que possa soar a minha afirmação agora, eu digo mais uma coisa consternadora: só há liberdade e democracia onde existe a possibilidade de ofender. Uma sociedade com certeza deve possuir dispositivos jurídicos que contenham a sanha de asco e humilhação, mas nunca a proibição compulsiva de ofender. Como faremos sátiras sem ofensa, como faremos verdadeiras críticas sem ofender o analisado?
Não ofender é o mesmo que não pensar ― em última instância ― não ser capaz de passar do substantivo num texto onde os adjetivos são vistos como potenciais demônios que, caso sejam conjurados incorretamente, alastrarão dores e ranger de dentes aos egos mais frágeis. Os adjetivos devem, imediatamente, ser aferrolhados pelo Index Librorum Prohibitorum do progressismo moderno.
Como ser um ditador fofo
Assim como na URSS os discursos eram controlados para caberem na ideologia do Estado, sendo terminantemente proibido fugir da semântica oficial, sob o custo de mortes e exílios na deliciosa e aconchegante Sibéria, hoje os discursos são controlados para caberem na ideologia da patota fofa do progressismo ― a ditadura de algodões doces.
A intenção é muito simples de compreender, somos seres de comunicação rebuscada, e nos fazemos homens enquanto somos capazes de articular pensamentos em palavras expressas e promessas em ações efetivas; uma extensão da metafísica de causa e efeito, Ser e ente, alma e corpo.
Somos seres que, literalmente, só somos (existimos) na medida em que conseguimos expressar o que pensamos, sentimos e percebemos; a partir disso, qualquer cerceamento da livre expressão deveria ser visto como uma agressão à própria humanidade.
Eis duas sentenças verdadeiras para encurtarmos a explicação: quem controla o discurso controla o próprio homem(!); quem não expressa de alguma maneira aquilo que pensa, logo deixa de pensar aquilo que queria antes expressar! Não à toa Alexander Soljenítsin, Eginald Schlattner e Reinaldo Arenas ansiavam tanto por escrever suas experiências, lamúrias, denúncias, revoltas e sonhos.
O medo desses delatores de ideologias e homens era de esquecer as injustiças sofridas, as lições apreendidas, as lágrimas ressecadas na face e o motivo de amarem tanto a liberdade; o medo, por fim, era de se conformarem com as tiranias aturadas sem contar ― em minúcias ― até onde a maldade humana pôde chegar.
Em suma, o indivíduo é um ser que se constrói quando se expressa; e, ao se expressar constantemente se atualiza enquanto homem (e mulher também, calma).
Logo devemos concordar que, caso você tenha inclinações centralizadoras e tirânicas, seria um ótimo negócio controlar os discursos permitidos, assim como definir termos e determinar o que deve ser dito. Quem faz as regras do jogo define como ele deve ser jogado. É o que o progressismo faz ao estabelecer o que você deve falar, como e quando falar; nem é preciso afirmar que a próxima etapa é controlar o que você deve pensar, como e quando pensar. Meu Deus, vocês não leram 'Nós', de Yevgeny Zamyatin; '1984', de George Orwell; ou 'O amor de olhos fechados', de Michel Henry?
Controlar os termos que “ofendem”, determinar o que não deve ser dito em nome de uma pureza politicamente correta, não passa de uma forma “fofa” de ser um ditador.
Ofenda e seja ofendido
A ofensa é inerente ao ato da expressão; desde o momento que passamos a livremente falar o que pensamos, estamos num risco constante de causar desconfortos e até agredir simbolicamente quem nos ouve. É o preço de não estarmos sozinhos no mundo; num mundo, aliás, onde não temos absolutamente nenhuma obrigação natural e moral de concordarmos com todos ― é sempre bom lembrar, não é mesmo?
Desta maneira, cercear o DIREITO de ofender é o mesmo que amputar a essência comunicativa e interativa de cada indivíduo; ou seja: aquilo que faz com que estejamos inseridos num contexto de comunidade humana, aquilo que faz com que as nossas liberdades sejam realmente efetivas e praticáveis.
O “ministério da verdade” que Orwell magnificamente definiu no livro '1984', é real; Winston excluía dos jornais as sentenças que iam contra o Grande Irmão. Hoje os ideólogos excluem os discursos e termos que supostamente ofendem grupos determinados.
Óbvio que a liberdade não está num vácuo amoral, onde tudo é permitido em nome de uma autonomia que leva um alvará ao abjeto. Para naturalmente controlarmos isso temos o sentido de moralidade incutido em nossas almas, para isso temos também a educação, o forjamento do caráter e do discernimento; e, em última instância, caso tudo falhe, temos a coerção jurídica para aqueles que se ofendem honras.
O problema é que estão fazendo da coerção jurídica o único meio; e se já não bastasse, os ditadores fofos são os que definem o que é ofensivo e digno de processo.
O que resta a um discurso quando há um glossário jurídico, duro, despótico e pronto para punir, senão falar somente o que querem que falamos? Desta maneira, não existe liberdade praticável, existe apenas um estado de sítio semântico, existe somente a ditadura do códex; temos, por fim, a ditadura dos ofendidos.
O crime de óbvio
O problema maior desse conceito é o fato de que a própria realidade pode ser ofensiva e que, pelo bem da sanidade humana e social, a verdade não deve ser sublimada por egos feridos.
Quando estamos em posse de uma verdade, ou de uma realidade crua, não podemos e nem devemos reservá-la ao calabouço do silêncio porque alguém com ego mais sensível pode se sentir ofendido pela revelação ou confirmação de um fato ou descoberta. Não podemos deixar de ofender se o ônus da ofensa é ser verdadeiro.
Neste sentido, sim, Tifany ― o jogador de vôlei do Bauru ― é homem. E me desculpe, mas nem todas as vontades LGBT’s do mundo poderiam mudar isso; pois o sexo está em cada minúscula célula de nosso corpo, antes de estar em nossas vontades, sentidos, ideologias, gostos, trejeitos e discursos. E isto não é transfobia: é biologia, é genética, é percepção mínima da ordem da realidade; e se isso de alguma forma ofende, apenas podemos ficar internamente amargurados, mas jamais sermos impedidos ou obrigados a não registrar os fatos porque grupos ou indivíduos se sentem ofendidos por eles.
O sexo não é performativo, como queria Judith Butler, a sexualidade é genética sim, e a genética é ditatorial, é soberana e imperiosa, e não adianta me processar por isso, pois nem isso poderá fazer com que um homem se torne mulher.
Para Judith Butler os sexos não passam de efeitos discursivos. Ela ainda faz uma diferenciação forçada e inexistente entre sexo e gênero, como se fossem eles independentes e a natureza humana uma senhora burra que uniu a metade de uma laranja à metade de uma jaca, pedindo posteriormente para que a estranha fruta se “performasse” naquilo que ela desejasse ser.
“Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo” (BUTLER, 2016, p. 25-26).
Para a atual maior teorizadora dos problemas de gênero ― e aquilo que ela denomina de geração queer ― a biologia age num unicismo constrangedor. O fato é duro demais e é preciso achar um escape pseudofilosófico para tal aporia. Deduz ela, então, por meio de várias inferências que não encontram par algum na realidade científica, que o gênero é totalmente desassociado do sexo biológico – tese que depois ela parece contestar também. Para fazer isso, Judith Butler dará a explicação central de como age a mentalidade progressista de gênero. Peço atenção dobrada do leitor.
“Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo”. O que ela começa a delinear nesse início de parágrafo, localizado em seu livro 'Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade', é que não basta apenas separar “gênero” de “sexo”, é preciso antes aprofundar o gênero no próprio sexo para que a realidade não seja mais aquele fator duro do ser biológico; deve ser ante o gênero, que é um fator discursivo e cultural, a definir o que é a realidade enquanto tal.
Em suma, num discurso tão insano quanto doentio e empolado, Butler fala que, a fim de que a teoria de gênero faça sentido, devemos abandonar a realidade enquanto tal, e abraçar as definições discursivo/culturais como mantenedoras da própria realidade. Ao invés de a realidade informar à cultura, teremos a cultura definindo o que é realidade; o fato, então, perde para a ficção.
Poderão até contestar minha interpretação do texto de Judith Butler ― muito mais por sua empolação do que por minha incapacidade de entendê-la, imagino ―, realmente estou pronto para ser contestado. Mas sinceramente pergunto: poderão também contestar a minha explicação sobre como a ideologia de gênero age hoje? Isto é: sendo ela mesma a pré-realidade, a definidora de como a existência deve ser lida e discursada, a despeito de leituras pragmáticas e científicas?
“O gênero não deve ser meramente concebido como inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem que designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual ‘a natureza sexuada’ ou ‘um sexo natural’ é produzido e estabelecido como ‘pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura” (BUTLER, 2016. p. 27).
Em suma, a teoria de gênero pretende ser uma categoria “discursivo/cultural” que precede a própria realidade biológica e científica, ao ponto de definir com antecedência o que é ser homem, mulher, homossexual, et. Al. Se eu pudesse resumir o cerne essente dessa teoria que recusa a essência mesma das coisas, o definiria como: “o assassinato da realidade em nome de um discurso político; a criminalização do óbvio frente ao fantasioso”. Tal desconstrução da realidade e antecipação do discurso à própria constituição dos fatos findará num absoluto relativismo ― perdoem, por favor, minha sanha por jogos de palavras ―, onde ninguém é nada a não ser uma performance que durará somente até começar o próximo ato.
O historiador francês Alain Besançon afirmou em 'A infelicidade do século' ― comentando sobre o modus operandi das ideologias comunista e nazista ―, que sob a mentalidade totalitária o discurso assume o papel de criador da realidade. Não sendo mais o fato o princípio das impressões, investigações e opiniões, mas sim o próprio discurso ideológico:
“A linguagem transforma-se. […] Assume o papel mágico de sujeitar a realidade à visão do mundo; é uma linguagem litúrgica, em que cada fórmula indica a adesão do locutor ao sistema e intimida o interlocutor a aderir. As palavras reveladoras são, então, ameaças e figuras de um poder” (BESANÇON, 2000, p. 36-37).
Desta maneira, não somos mais nada além de um espectro discursal, o ser humano é tão somente uma massa borrada e cinzenta, informe e sem alma; o indivíduo nada mais é do que aquilo que ele representa num instante, depois disso ele passa a ser outra performance, passa a existir em outros mil gêneros discursivos sem nunca ser verdadeiramente nada e nem ninguém. É um mero borrão malfeito de uma existência que sequer existe, apenas performa.
“Todo mundo repetia que o indivíduo não era nada, que era preciso ‘retirá-lo da problemática’ e outras bobagens. E então eu fiz uma perguntinha: por que todo mundo, e insisto que é todo mundo mesmo, aceita essas ideias antes de virar porta-voz delas”? (HENRY, 2015, p. 166).
A modernidade já começou a alienar a verdade em nome de uma teoria que quer ensinar que a realidade é opressora e desigual, e por isso ela não deve ser levada em conta; as pessoas pararam de questionar com medo das pechas e insultos que virão. Acovardaram-se e fecharam os olhos para acreditar naquilo que lhes contam sem jamais contestar o discurso através dos fatos. Bom, se ser opressor e “fascista” significa não me dobrar ante uma ideologia totalitária e mentirosa; ok, eu posso suportar o título.
Por fim
Certo que não pretendemos esgotar a problemática de gênero aqui, e nem fazer um estudo sistemático da teoria queer de Judith Butler. Antes recomendo efusivamente a leitura dos livros e artigos dela; não há critica melhor à teoria de gênero do que ler Judith Butler.
Por fim, banhos de hormônios, rasgos de bisturis, e todos discursos lacradores possíveis da terra não podem desconstruir um indivíduo e a realidade. Sinto muito, não podemos aderir a tal teoria sem antes abrir mão de nossas capacidades mínimas de compreensão da realidade; a questão é muito fácil: para perceber o que eu falo sequer é necessário ler o que eu escrevo, basta olhar para realidade.
Reconheço que a disforia de gênero causa sofrimento, e não quero ser insensível ao ponto de tratar a temática como “coisa boba” ou “falta de surra”; há de se investigar isenta e cientificamente a questão, e oferecer tratamentos e ajudas sociais despolitizados aos que assim se sentem. Mas não podemos negar a realidade em nome de uma caridade mentirosa e danosa ao próprio sujeito.
O problema da mentira é esse, precisamos sempre encaixar mil engrenagens para ver se a coisa funciona, enquanto a verdade já vem funcionando per se.
O homem não é um pote de Lego, e nem um reservatório de quereres, o indivíduo deve crescer percebendo que as regras da natureza humana são impositivas e que elas não pedem nossas permissões para colocarem seus pressupostos. Podemos apenas acatar ou negar a realidade. Todaviadevemos estar cientes de que negá-la não significa ter poder de reconstruí-la, ou pior, desconstruí-la segundo sua ideologia e vontade. Certas coisas são moldáveis, outras ainda são modificáveis; mas o sexo não é uma delas.
Somos a única era da história humana na qual a realidade virou crime de ódio, na qual falar que um homem é homem – a despeito de suas vontades e em favor da realidade –, virou crime de “óbvio”. O reino da vontade dura até quando a realidade permite, eis um fato que deveríamos urgentemente aprender.
Assim como porcos não voam, homens também não mudam de gênero porque querem!
É duro?
É ofensivo?
É até mesmo abjeto para alguns leitores?
Tenho certeza que sim, mas a questão aqui é outra: minha afirmação é mentirosa? Se sim, prove-me!
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