Às 5h30 entro no carro com destino à Faixa de Gaza. Ainda está escuro em Tel Aviv, nuvens pesadas ameaçando chuva pairam no céu. Apesar do vento frio desta manhã de inverno, abrimos as janelas para ouvir as sirenes caso haja alarme de míssil.
“O país está diferente”, disseram nossas filhas quando nos receberam no aeroporto, poucos dias antes. Não nos ficou claro se ouvíamos tristeza ou orgulho em suas vozes. Elas se mudaram para os estudos em Israel há uns anos, mas não quiseram abandonar o país nesse momento, então viemos apoiá-las no tempo de guerra. Logo percebemos que nossas filhas não necessitavam tanto do nosso apoio, “Há outras pessoas em Israel precisando de ajuda!”
Elas contam como elas ajudam a população que sofreu os atentados “Israel precisa urgente de voluntários, centenas de milhares de mulheres e homens são reservistas no exército, dezenas de milhares de trabalhadores da Tailândia e das Filipinas, que também foram vítimas do Hamas, fugiram para os seus países de origem após o ataque. E milhares de palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza não foram mais autorizados a entrar no país desde 7 de outubro por medo de ataques.”
Queremos escutar, como elas vivenciaram essa época, quando Ariela nos conta do enterro de seu professor que foi assassinado tentando salvar a filha e a mulher no kibutz. “Tinha muita gente conhecida da universidade nesse enterro. Lá encontrei meu amigo que bateu no meu ombro e me disse: parabéns! Agora você já pode ser israelense; vivenciou sua primeira guerra! Me abraçou e se desfez em choro.”
Cecília nos conta que foi chamada a ajudar em enterros. Durante duas semanas todos os dias ficou viajando de um enterro a outro. Ela vivenciou tantos funerais, que já planejou como seria o seu próprio enterro. Ela conta gesticulando muito em uma empolgação que eu não compreendo. Eu escuto minha filha, paciente, sentindo sua necessidade em falar sobre sua experiência, mas pensando no absurdo de uma jovem saudável de 22 anos em planejar seu enterro como se fosse uma coisa absolutamente normal...
Começamos então, eu e meu marido, auxiliado pelas nossas filhas a procurar um trabalho voluntário.
Nos inscrevemos no Kibutz Beeri, onde 10% da população foi assassinada de forma particularmente cruel, mais de 50 pessoas foram sequestradas e muitas casas queimadas. Dentro de meia hora recebemos a confirmação do trabalho com a seguinte mensagem: “Por favor, venha com sapatos resistentes, chapéu, água e sanduíches, pois o comércio próximo está fechado”.
Seguimos por Ashkelon, viramos à esquerda no kibutz Yad Mordechai, passando por Sderot e reconhecendo as placas com nomes dos lugares já familiares pelas notícias do jornal e da televisão. As estradas ficam cada vez menores conforme nos aproximamos de Gaza, o que deixa mais notável a forte presença do exército. Pelo caminho vemos muitos cartazes com os dizeres “Vamos vencer”, “Somos um povo” ou “Traga-os de volta”. Cartazes com fotos dos reféns sequestrados estão pendurados em cercas, em postes, em pontes. Bandeiras de Israel estão hasteadas em todo lugar, como se o país estivesse celebrando sua independência ou algum jogo importante de futebol.
Chegando em uma cidadezinha chamada Netivot, nos espera um ônibus com outros voluntários que nos leva até o campo do trabalho. Estacionamos o carro e subimos no ônibus já quase cheio. Somos cerca de 40 pessoas com idades entre 14 e 87 anos. Homens e mulheres de todas as profissões e nível econômico, estudantes, funcionários e alguns estrangeiros como nós. O barulho de artilharia pesada aumenta paulatinamente conforme nos aproximamos, mas nos acostumamos bem rápido com o “cantar” dos mísseis na natureza ao invés do cantar dos pássaros, que provavelmente fugiram junto com os trabalhadores estrangeiros.
“Isso é uma Pomelit”. Nos explica Michal, mostrando uma fruta cítrica grande e verde ao descermos do ônibus. “Mistura de Pomelo que é doce e Eshkolit (Grapefruit) que é amarga. Geralmente exportamos essa fruta ao Japão, mas após o ataque não fomos autorizados a entrar nos campos por três semanas, onde os terroristas se esconderam, o tempo da colheita passou. Agora as frutas estão tão maduras que só podem ser aproveitadas para suco. “
Michal nos dividiu em dois grupos, um que colhia as frutas em cima da árvore para jogá-los no chão, enquanto outros para recolherem as frutas do chão e despejarem em containers. Optamos por trabalhar em cima das árvores. Cada voluntário recebe uma escada de ferro, uma sacola de estopa e nos espalham pelo pomar. O trabalho é dinâmico, mas duro; as árvores estão repletas de Pomelits que pesam em torno de meio quilo cada, os galhos têm espinhos, a folhagem é densa, as escadas são tão pesadas para carregá-las que por vezes é mais fácil trepar nas árvores e andar pelos galhos do que usar a escada. Uma coisa impensável, para nós que trabalhamos sentados diante de um computador. Logo percebemos nossos braços arranhados e nos surpreendemos com a nossa eficácia!
Os tiros e explosões nos acompanham durante nossa aventura. A Faixa de Gaza está a menos de três quilômetros de distância, mas nos sentimos seguros. De repente, duas detonações mais fortes nos chacoalham em cima da árvore, seguidas por ondas de pressão do ar. Com o susto, descemos rapidamente pelos galhos e nos jogamos no chão, abraçando a cabeça com os braços. Esperamos quietos por uns segundos, mas a sirene não dispara. Observo os outros voluntários continuarem normalmente o trabalho e deduzo, após o choque, ter ouvido a artilharia israelense disparando sobre nós, para a Faixa de Gaza. O barulho é fortíssimo, ouvimos os canhões tão próximos que podemos até sentir o cheiro do queimado, mas não vemos nada.
Ao levantarmos do chão encontramos um folheto escrito em árabe que reconhecemos ser o aviso do ataque israelense na região norte de Gaza distribuído à população, indicando a fuga para a direção sul. O vento deve ter trazido até o pomar. Guardo o folheto de lembrança no meu bolso.
Depois desse dia, voltamos outras vezes para trabalhar no Kibutz Beeri. A artilharia já não nos assusta. Desta vez fomos levados à plantação dos abacates.
“Nós colhemos somente os abacates do tipo Hass”, explica Yarden, líder do grupo, referindo-se ao tipo de abacate pequeno com pele grossa e enrugada. “Tudo que recolhermos hoje das árvores estará na mesa de Natal em uma semana em toda Europa. Os europeus gostam do nosso abacate, mas não “querem” saber que vêm de Israel. Então não colocamos rótulos nossos nos abacates para não prejudicar as vendas.”
À primeira vista, os abacateiros parecem vazios de frutos. Mas penetrando no interior da árvore, se aproximando do seu tronco se consegue distinguir o abacate das folhas que têm exatamente a mesma cor, se percebe então a abundância da fruta distribuída pelos galhos. Algumas árvores carregam até cem quilos de frutas. Associamos instintivamente os abacates aos reféns na Faixa de Gaza: tão próximos a nós e, no entanto, invisíveis aos nossos olhos; escondidos em algum buraco debaixo dos nossos pés.
Após três horas de colheita, Yarden chama a todos para uma pausa. Enquanto os voluntários desembrulham seus sanduíches, ele relata os acontecimentos do dia 7 de outubro. Seu irmão mais velho, contador na gráfica do kibutz, lutou juntamente com outros membros contra os terroristas até acabar a munição, eliminando alguns terroristas e evitando uma tragédia maior. Quase todos foram brutalmente assassinados pouco antes dos militares israelenses chegarem.
Yarden é um homem robusto e musculoso, mas luta contra suas lágrimas como uma criança enquanto descreve detalhadamente a luta de seu irmão. Ele mesmo não se encontrava no kibutz naquele dia, caso contrário não estaria vivo.
O povo de Beeri viveu os piores horrores do inferno do “sábado negro”, como esse massacre foi denominado em Israel. “Até essa data, nosso kibutz era um paraíso!” A solidariedade de tantos voluntários é a melhor coisa que ele já experimentou desde então, principalmente aqueles vindos de fora do país. Quando termina de contar, ele nos agradece pelo nosso trabalho e por ouvi-lo. Percebemos que a necessidade dele de falar sobre o assunto é bem maior do que nossa curiosidade ou prontidão em ouvir.
Voltamos ao trabalho, que agora parece diferente. Os voluntários estão mais pensativos, mais concentrados e mais eficientes do que antes. Tento conversar com outras pessoas que também presenciaram o sábado negro e a ouvir suas histórias. Quando completamos o container gigantesco com quatro toneladas de abacate, finalizamos o dia de trabalho. Entramos no carro arranhados, cansados e uma mistura de outras sensações intensas. No caminho saímos da estrada e entramos em Nahal Oz, uma cidadezinha próxima para comprar água e abastecer. Rodamos alguns minutos pelas ruas sem avistar ninguém nesse lugar que mais parecia uma cidade fantasma: “ah, deve ser uma das cidades que foram evacuadas!”
Continuamos dirigindo devagar para observar a cidade sem vida em direção à estrada principal quando percebo um jovem falando alto no telefone procurando alguma coisa. A seu lado um amontoado gigante de ferro velho e uma enorme fila de carros. O país está realmente mudado, assim como disseram nossas filhas. Nossa curiosidade de entender o que estava acontecendo ali, nos fez aproximar: “Você está procurando um carro?” Perguntamos ao jovem descendo do carro.
Assim como Yarden, também ele tinha uma necessidade enorme de falar sobre o sábado negro. Recebemos sua história detalhada sobre as 20 horas de terror que passou com seus cachorros dentro do bunker, “meus cachorros sentiram que estava acontecendo alguma coisa estranha, que estava havendo um problema e simplesmente ficaram quietos durante essas 20 horas, não pediram comida nem fizeram suas necessidades. Se latissem, eu estaria morto!” Seu carro foi retirado do kibutz pelo exército juntamente com todos os outros. De acordo com as leis judaicas, esses carros tirados da região do massacre serão enterrados em breve, pois contêm sangue ou restos de corpo das pessoas assassinadas. Por isso esse jovem estava urgentemente procurando seu carro.
Depois de oferecer nossa ajuda, nos despedimos desejando boa sorte e admirando as pessoas que depois de um trauma, dão a volta por cima e tocam a vida para frente. Admirando todos os jovens que chegaram do mundo inteiro para ajudar a defender Israel. Que são pacifistas, mas que entendem que em certas horas a guerra é a única forma de trazer a paz. Jovens que confiam unicamente na sua própria força, desenvolvendo uma autoconfiança às vezes irritante, mas imprescindivelmente necessária.
O sol já estava se pondo na estrada desse dia intenso. O trabalho voluntário nos fazia sentir diferente. Passamos novamente por uma quantidade grande de tanques e equipamentos militares pesados com tipos estranhos de veículos que eu não saberia como denomina-los, mas que para mim agora já faziam parte da paisagem.
Daniel Targownik e Paula Zimerman Targowni são cineastas. Daniel foi produtor de notícias do Oriente Médio para a televisão ARD e Paula diretora de documentários de média e longa metragem. Suas filhas moram atualmente em Israel.
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