Europa entendeu o significado de ser “gado” muito antes de o berrante de Marília Mendonça ganhar status de patrimônio nacional na live mais acessada da pandemia do coronavírus: apaixonou-se pelo deus dos deuses em forma de touro. Raptada pelo insaciável Zeus – o supremo Macho Branco Babaca ™ da mitologia - de sua terra natal (onde seu pai passaria o resto da vida clamando por “Europa”, nome que acabou pegando pelas redondezas), foi levada para a Ilha de Creta, onde deu à luz ao menino Minos. A sanha de perder a cabeça por um par de chifres – ainda que de formas nunca dantes concebidas pela poética sertaneja – passou de geração em geração, e Minos perdeu a esposa, Pasífae, para outro boi. Desta união, nasceria o Minotauro – e o resto é história.
Calisto, coitada, teve pior sorte: enganada pelo deus cafajeste, escondeu a gravidez o quanto pôde, até o nascimento do filho Arcas. Acabou transformada em urso pela própria Hera, a esposa ciumenta de Zeus (aqui eu tenho que dar o braço a torcer para quem acusa o sexismo – “ciumenta” é de doer, o maluco era o capiroto). Viveu vagando pelos bosques até ser encontrada pelo rebento, que se tornara caçador. Ao ataque do jovem incapaz de reconhecer a própria mãe, seguiu-se um lapso de misericórdia do pai ausente, que imortalizou filho e amante na constelação da Ursa Maior. “Fazer o mínimo”, naquela época, era desse jeito. Hoje a gente chama de pensão.
Por fim, Ganímedes. O rapazinho que, sem que lhe perguntassem qualquer coisa, foi promovido de pastor a copeiro dos deuses, depois de ser “arrebatado” ao Olimpo por uma “certa” águia – ah, as artimanhas do Macho ™ - que lhe “possuiu” no meio do caminho. Gostava do balacobaco, esse Zeus. A relação com Ganímedes, inclusive, foi das poucas que não terminou em tragédia (lembremos que entre os rebentos do deus está Helena de Troia): diz a mitologia que o menino era bem tratado e que o deus dos deuses em nada se envergonhava da paixão homossexual. Seria este apreço à diversidade suficiente para lhe garantir um passe livre nos tempos modernos? Ou seria Zeus o alvo – com razão – de uma nova campanha do #MeToo? Ou, ainda, teria permissão para continuar com seus desmandos com mulheres, depois de se comprometer em público com a causa vegana e a promoção da justiça social? Vai saber.
Todas essas histórias me vieram à mente diante da notícia de que a Nasa vai revisitar nomes de estrelas, satélites e galáxias que sejam potencialmente preconceituosos, com o apoio de um comitê especializado em diversidade e inclusão. A escolhida para inaugurar a revisão foi a nebulosa Esquimó, descoberta em 1787 pelo astrônomo William Herschel: será a primeira a ser destituída de seu apelido – um termo racista utilizado por tribos americanas para designar os povos do extremo norte – para atender exclusivamente pelo nome de batismo de NG2392.
Diga-se de passagem, o apelido é por conta de sua aparência nas fotos, similar a um capuz cheio de pelos, tal como os usados pelos inuítes – o nome correto do povo em questão. Pesquisando sobre a origem da celeuma, descobri que, conforme a justificativa dada pela Nasa, a palavra “esquimó” caiu mesmo em desuso na ciência. Diz-se que sua origem, por conta dos costumes locais, seria “comedor de carne” – daí o tom pejorativo. Pesquisas mais recentes dão conta de que a raiz etimológica talvez seja, na verdade, o “husky” (sim, o cachorro) utilizado pelos inuítes para puxar os trenós, ou o próprio trenó..
Considerando meu “lugar de fala” de quem nunca sequer vestiu um capuz de pelos, eu perguntaria genuinamente se os ditos povos, afinal, se incomodam com a pobre nebulosa. Pode ser que haja mesmo um ou outro inuíte profundamente ofendido com o apelido de comedor de carne ou puxador de trenó de husky eternizado no firmamento. Que seja feita, então, a mudança. Mas aí, qual é o limite? A esta altura do campeonato já é sabido que as mãos que revisam e “cancelam” o passado por justa causa raramente tem pudores para poupar todo o resto. Cancelaremos, então, as luas de Júpiter – muitas batizadas em homenagem às amantes de Zeus? Foi o próprio Galileu Galilei, aliás, quem descobriu e nomeou as quatro primeiras: Europa, Calisto, Ganímedes e Io.
Ofensa por ofensa, suponho que a ideia de ver um Macho ™ adúltero rodeado de luas inocentes incomode muito mais gente. Eu mesma, aliás, não tenho grande simpatia pela figura - o símbolo da civilização e da ordem que saía por aí a seduzir e, em alguns casos, abusar de mocinhas (e um mocinho), mas me disponho a extrair da mitologia, esta forma ancestral de acúmulo e transmissão de conhecimento, o que há, ali, de verdadeiramente eterno - nem que seja a lição de que sempre haverá planetões tentando fazer luazinhas de trouxa. Lidar com as idiossincrasias do passado me parece mais efetivo do que abandoná-lo nas mãos de quem começa “editando” aqui e acolá e termina pegando no pé de Zeus, dos gregos, da filosofia… E, bem, sabemos onde isso vai parar. A ver onde vão os trabalhos da “comissão de diversidade” contratada pela Nasa.
No mais, ressalte-se que o brasileiro carece de autoridade para entrar na discussão sobre nomes de corpos celestes. No ano passado, a União Astronômica Internacional (UAI) concedeu aos seus 79 países membros o direito de batizar um minissistema solar, composto por uma estrela e um planetinha. Todos foram submetidos a votação em suas respectivas nações, que anunciaram o resultado em dezembro. O conjunto designado para o Brasil fica a cerca de 100 anos luz da Terra e é visível entre os meses de dezembro e fevereiro com a ajuda de um telescópio. Passou perto de eternizar a devoção de um homem bom ao coração de uma mulher na forma da estrela Diadorim e o planeta Riobaldo - seguindo a regra da IAU, doravante, outros corpos descobertos no mesmo sistema receberiam nomes relacionados à obra de Guimarães Rosa. Capitu e Bentinho (meu voto), Ceci e Peri, Macunaíma e Muiraquitã também foram postos para jogo. No fim das contas, ficamos com Tupi e Guarani.
Ponto para a diversidade, a ser construída não através da edição do passado, mas da construção do futuro materializado nas dezenas de pequenos mundos nos quais a ciência se aventura a cada dia. Mesmo assim, confesso, lamentei o desperdício da oportunidade de contar nas estrelas algumas das nossas mais bonitas histórias de amor. As luas de Júpiter morreriam de inveja.
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