Foi golpe: em 1º de abril de 1964, um grupo de militares tomou o poder no Brasil — a população só voltaria a participar de eleições diretas para presidente em 1989. Não há nenhuma dúvida disso, apesar do que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli afirmou nesta segunda-feira (01).
Durante um evento realizado pela Faculdade de Direito na Universidade de São Paulo (USP), Dias Toffoli afirmou: “Os militares foram instrumento de intervenção. E se algum erro cometeu (sic), foi de, ao invés de ser o moderador que em outros momentos da história, interveio (sic) e saiu (sic), eles acabaram optando por ficar. E o desgaste da legitimidade em todo esse período acabou recaindo sobre essa importante instituição nacional que são as Forças Armadas. Por isso que hoje eu não me refiro mais nem a golpe nem a revolução de 1964. Eu me refiro a movimento de 1964”.
Nossas convicções: O valor da democracia
Esse é um debate antigo. Quem defende que houve a necessidade de derrubar o presidente João Goulart, em geral, assegura que esta foi uma ação revolucionária visando a manutenção da democracia. O então presidente João Goulart foi deposto, com o aval do Congresso Nacional. Depois, também o Congresso foi fechado, em diferentes ocasiões, e os congressistas não alinhados ao novo regime tiveram seus mandatos cassados.
Confira abaixo cinco fatos que confirmam: Dias Toffoli erra ao relativizar o início da ditadura militar de 1964.
1. A ameaça comunista não era tão grande
Em 1937, Getúlio Vargas transformou seu governo numa ditadura ao divulgar o Plano Cohen, um documento forjado que comprovaria supostos planos de comunistas brasileiros e estrangeiros para transformar o Brasil num país socialista. Em 31 de março de 1964, o general Olímpio Mourão Filho levou suas tropas de Juiz de Fora (MG) para o Rio de Janeiro com o mesmo argumento: precisava impedir os comunistas que estavam prestes a tomar o poder. Aliás, curiosamente, o autor do Plano Cohen, elaborado para dar o pretexto de que Vargas precisava, era o mesmo Olímpio Mourão Filho — que, em 1937, era capitão do exército e chefe do Serviço Secreto da Ação Integralista Brasileira (AIB). Entre 1967 e 1969, Mourão seria agraciado com o cargo de presidente do Superior Tribunal Militar.
Em 1964, porém, o contexto era de Guerra Fria e havia aspirações golpistas à direita e à esquerda. O então presidente João Goulart vinha liderando manifestações públicas a seu próprio favor. Na mais alarmante delas, um comício realizado no dia 13 de março de 1964 na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, ele anunciou a nacionalização das refinarias privadas de petróleo e a desapropriação de propriedades localizadas às margens de rodovias, ferrovias e área de irrigação de açudes públicos. Ele vinha pedindo apoio para realizar alterações na Constituição, promovendo oficiais alinhados às altas patentes do Exército e aparelhando sindicatos.
“Sem reforma constitucional, trabalhadores, não há reforma agrária. Sem emendar a Constituição, que tem acima de dela o povo e os interesses da nação, que a ela cabe assegurar, poderemos ter leis agrárias honestas e bem-intencionadas, mas nenhuma delas capaz de modificações estruturais profundas”, ele declarou, para algo entre 80 e 300 mil de pessoas – as estimativas variam muito.
Além disso, no início da década de 1960 já havia um ensaio de insurgência armada de esquerda no Brasil, principalmente por obra de Francisco Julião e Luís Carlos Prestes, que recebiam apoio da Cuba de Fidel Castro. Ainda pouco se sabe sobre o grau de envolvimento da União Soviética no país, porque os arquivos permanecem quase todos fechados ou com acesso dificultado, mas um livro recente, escrito a partir da análise dos arquivos do serviço secreto tcheco, mostra como operaram, desde 1952, agentes da Polônia, da Alemanha Oriental, de Cuba e da Tchecoslováquia que moraram no Brasil.
2. O sucessor do presidente não pôde assumir
João Goulart era o vice de Jânio Quadros, que havia renunciado em 1961. O presidente foi retirado do poder, fugiu e buscou asilo no Uruguai. Antes mesmo de ele deixar o país, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou, incorretamente, que o posto de presidente da República estava vago.
Nossas convicções: Cultura democrática
Havia um sucessor imediato ao cargo: Pascoal Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados em 1964. Ele chegou a ocupar a presidência, a partir de 2 de abril. Mas o Comando Supremo da Revolução é que ocupou o poder, de imediato – o grupo era formado pelos chefes do Exército (o general Artur da Costa e Silva), Marinha (o vice-almirante Augusto Rademaker Grünewald) e Aeronáutica (o tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo). Uma eleição indireta para presidente foi realizada no dia 11 de abril, e no dia 15 assumiu a presidência o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco.
Em 1969, um civil poderia ter se tornado presidente. Era Pedro Aleixo, vice da chapa do presidente Artur da Costa e Silva, que foi afastado no dia 31 de agosto, em decorrência de um derrame que lhe tiraria a vida no dia 17 de dezembro. A ditadura vetou a posse de Aleixo e instaurou uma Junta Governativa Provisória, que manteve o controle sobre o país até dia 30 de outubro, quando o posto de presidente foi assumido por outro militar, Emílio Garrastazu Médici.
3. Os direitos civis foram imediatamente cassados
Com frequência, os defensores do regime militar alegam que a retirada dos direitos civis e o uso de tortura visava eliminar as ameaças dos grupos guerrilheiros que visavam tomar o poder. Mas a verdade é que, muito antes de grupos organizados de esquerda começarem a agir, o novo governo já havia agido de maneira a reprimir todo tipo de expressão política.
O Ato Institucional Número 1, de 9 de abril de 1964, já determinava, em seu artigo 7º: "Ficam suspensas, por seis (6) meses, as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade". E, no 8º, definia: "Os inquéritos e processos visando à apuração da responsabilidade pela prática de crime contra o Estado ou seu patrimônio e a ordem política e social ou de atos de guerra revolucionária poderão ser instaurados individual ou coletivamente".
Nossas convicções: Liberdade de expressão
Logo nos primeiros dias de abril de 1964, mais de 5 mil de pessoas foram presas, simplesmente por serem ligadas a grupos como a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e as Ligas Camponesas. Centenas de Inquéritos Policiais-Militares (IPMs), chefiados na maioria dos casos por militares que processaram civis suspeitos de questionar o novo governo. Mais de 3700 funcionários públicos, civis e militares, foram demitidos ou forçados a se aposentar.
4. As eleições presidenciais foram canceladas
Haveria eleições para presidente em 1965. Os principais favoritos eram o ex-presidente Juscelino Kubitschek, de Minas Gerais, e os líderes políticos Carlos Lacerda (da Guanabara), Adhemar de Barros (de São Paulo) e Miguel Arraes (de Pernambuco). O próprio Jango pensava em se candidatar. Nada disso aconteceu.
A ditadura proibiu eleições diretas para presidente, governador, capitais de estado e cidades com mais de 200 mil habitantes. Também proibiu manifestações públicas, como passeatas e greves. Perderam os direitos políticos 513 senadores deputados e vereadores. Entre os 41 deputados federais cassados em 10 de abril de 1964 estavam Almino Afonso (PTB-AM), Francisco Julião (PSB-PE), Leonel Brizola (PTB-GB), Plínio Arruda Sampaio (PDC-SP) e Rubens Paiva (PTB-SP). Rubens Paiva seria torturado e assassinado em 1971.
Juscelino morreria em agosto de 1976. Jango, em dezembro do mesmo ano, Carlos Lacerda, em maio de 1977. Na época, estavam articulando uma Frente Ampla, que propunha restaurar a democracia.
5. O governo instituiu censura prévia
Se fosse revolução ou um movimento para salvar o Brasil do suposto caos, por que então instituir censura prévia para a imprensa e todo tipo de produção cultural? Foi o que aconteceu, assim que os militares chegaram ao poder. O controle sobre o noticiário e o cenário cultural brasileiros aumentou com a promulgação do Ato Institucional Número 5, que ainda eliminou a figura jurídica do habeas corpus, que garante que um acusado possa aguardar o julgamento em liberdade. A prática de tortura, iniciada logo no início do regime, se intensificou depois de 1968, e até o fim da década de 1970.