Num evento promovido pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes na terça-feira (25), o presidente Jair Bolsonaro voltou a defender o trabalho infantil, prática proibida pelo Estatuto da Criança e Adolescente.
Em 2019, o presidente tinha feito algo semelhante, com efeitos semelhantes. Na ocasião, ele cometeu o "disparate" de dizer que, quando criança, trabalhava – e isso não o prejudicou em nada. Para piorar, Bolsonaro sugeriu que, por serem impedidas de trabalhar hoje em dia, as crianças ficam na rua fumando “um paralelepípedo de crack” - imagem que repetiu durante o evento da Abrasel.
Na época da primeira fala, de nada adiantou a Bolsonaro confessar derrota logo em seguida, dizendo que não ia apresentar projeto nenhum neste sentido, “porque vou ser massacrado”. O massacre veio de qualquer jeito. E são grandes as chances de ele se repetir agora.
Arautos do Apocalipse
Como costuma ocorrer sempre que Bolsonaro fala alguma coisa do gênero, imediatamente surgiram os arautos do Apocalipse para dizer que o trabalho infantil vai voltar, que as crianças serão tiradas à força da escola - onde a muito custo aprendem a escrever “paralelepípedo”, quando aprendem - para serem usadas como mão-de-obra fácil nas minas de nióbio. Ou qualquer coisa assim. A contrarreação não é menos apelativa. De repente, todo adulto tem uma história piegas para deixar claro que o trabalho na infância dignifica, enobrece e ensina valores os mais elevados – valores dos quais essas pessoas são expoentes, claro.
O erro está justamente nesta dicotomia, neste maniqueísmo muito próprio do nosso tempo, neste binarismo incapaz de enxergar as nuances que as leis antitrabalho infantil consagradas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) acabaram por exterminar. Assinado em 1990, no governo Fernando Collor, o ECA proíbe terminantemente o trabalho de crianças com menos de 14 anos. Terminantemente, mas nem tanto. Ao contrário do que reza o mito, trabalho infantil ainda não é considerado crime no Brasil, apesar de tramitar no Congresso um projeto de lei que estipula até oito anos de prisão para quem ousar contratar um office boy de doze anos.
A partir dos 14 anos, o adolescente pode trabalhar como “menor aprendiz” – com carteira assinada e todos os encargos dela decorrentes. Agora, se a função estiver na lista TIP (piores formas de trabalho infantil), proposta pela Organização Internacional do Trabalho, só depois dos 18 anos mesmo. O detalhe é que a tal lista TIP inclui funções que vão desde a confecção de chapéus até o serviço de office boy, passando pelo atendimento a idosos e serviços domésticos.
Segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2015, 2,7 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos estão em situação de trabalho no Brasil.
Ócio infantil obrigatório
Em The Progressive Era [A Era progressista], Murray Rothbard ensina que as leis contra o trabalho infantil surgiram na Europa, em meados do século XIX. Ao contrário do que querem fazer crer os progressistas, contudo, elas não surgiram para proteger as crianças maltrapilhas exploradas pelos malvados capitalistas de cartola. As leis foram criadas por sindicalistas como uma forma de restringir o acesso de crianças ao mercado de trabalho e, assim, garantir emprego e salários mais altos para os adultos.
No Brasil do século XXI, as leis antitrabalho infantil ainda são cercadas por uma aura de boas intenções – e ai de quem duvidar disso! Apelando sempre para o sentimentalismo mais ralo (e, só por hoje, não vou citar aqui aquele necessário livro de Theodore Dalrymple sobre o assunto), essas leis são evocadas como uma forma de impedir que crianças peçam dinheiro no sinaleiro, cortem cana, fiquem todas sujas de fuligem nas carvoarias, caminhem quilômetros recolhendo lixo reciclável e, claro, deixem de frequentar a escola. Mas, justamente por terem uma base tão frágil e nada racional, essas leis acabam por ter o efeito colateral de aniquilar com qualquer efeito benéfico que o trabalho (digno, seguro e salubre) possa ter para as crianças.
Se por um lado Jair Bolsonaro está errado ao pressupor que a alternativa ao trabalho na infância é o envolvimento das crianças com as drogas e a sexualização precoce, por outro a ampla rede progressista que faz pressão para que haja mais fiscalização e penas ainda mais severas para quem comete o terrível crime de pôr o filho de onze anos para trabalhar na sorveteria da família está errada ao pressupor que o ócio infantil é um caminho certo e seguro para uma infância idilicamente feliz – e, pior, que cabe ao Estado garantir essa felicidade.
Mais do que a letra fria da lei (que, vale repetir, não exatamente criminaliza o trabalho infantil), o discurso progressista é o que incomoda por sua pieguice mentirosa. Ao som de John Lennon tocando Imagine num xilofone multicolorido, os defensores do ócio infantil obrigatório como uma forma de garantir a educação plena das crianças acreditam que basta uma compilação de diretrizes estatais como o ECA para que todo o mal seja extirpado da face da Terra. Para que as crianças que antes vendiam balas no semáforo se tornem engenheiras nucleares. Para que o pequeno cortador de cana um dia venha a administrar a usina de moagem.
Mas os fatos não estão nem aí para os seus sentimentos, como diz Ben Shapiro. E a prova disso é que, quase trinta anos depois de assinado o ECA e a despeito das campanhas bem-intencionadas de ricos culpados por suas infâncias privilegiadas, ainda é possível ver crianças trabalhando em situações degradantes nos semáforos de qualquer grande cidade (e também crianças fumando crack em ruas de paralelepípedos), enquanto os trabalhos dignos, que antes eram usados por pequenos comerciantes e profissionais autônomos para ensinar valores nobres aos filhos ou àquele sobrinho desocupado, desapareceram.