Todo mundo mente, mas a política norte-americana há muito se baseia em um entendimento comum de aceitabilidade sobre o quê, como e a quem se mente.
Uma das muitas normas que Donald Trump violou desde que assumiu o poder foi essa tradição de hipocrisia referencial, de se conseguir, pelo menos teoricamente, agir de acordo com valores morais, de ser melhor. Esse costume define o padrão de comportamento dos membros do governo e a compreensão dos norte-americanos para o que sua liderança e seu país representam.
Trump reclamou de todas as críticas contra suas atitudes porque, como nunca se cansa de observar, “Nós ganhamos”. Entretanto, ao pedir a demissão de seu assessor de segurança nacional, Michael T. Flynn, fez sua primeira concessão pública às expectativas políticas. A hipocrisia conquistou uma vitória, ainda que pequena, nos EUA, o que é muito bom.
Essa palavra, aliás, foi muito utilizada na campanha presidencial de 2016. Tanto Trump como Bernie Sanders acusaram seus respectivos partidos e as elites de serem hipócritas. Conforme a votação foi se aproximando, alguns jornalistas tentaram virar a acusação contra Trump, pedindo para esclarecer, por exemplo, sua posição em relação à imigração. Se era a favor de tamanha linha-dura, não teria então que concordar com a deportação da mulher, Melania, que supostamente teria trabalhado enquanto estava nos EUA com visto de turista?
A acusação não colou, nem tanto porque colocou aqueles que a fizeram, sem querer, na posição desagradável de defender a deportação de alguém por uma transgressão comum e cometida há muito tempo, mas porque Trump não estava só rompendo com as regras de conduta política; ele as destruiu, afirmando abertamente que abusou do sistema para dele se beneficiar. Não pagava impostos e se safou, ou seja, era um homem de negócios competente. O fato de conseguir se impor sobre a mulherada então o fazia mais homem. Agia como se essa lógica primitiva fosse óbvia e compartilhada por todos.
“Whataboutism”
Fascistas do mundo todo ganham popularidade trabalhando a ideia de que o mundo está podre. Em “As Origens do Totalitarismo”, Hannah Arendt descreveu como a ideologia convida as pessoas a “abandonar a máscara da hipocrisia” e adotar uma visão de mundo em que não há certo ou errado, apenas vencedores e perdedores. A hipocrisia pode ser uma meta: atores/políticos alegam que são motivados por ideais em uma escala maior do que realmente são; derrubar a máscara da hipocrisia implica em dizer que a ganância, a vingança e a crueldade gratuita não são erradas, mas sim motivações legítimas para o comportamento político.
“A hipocrisia pode ser uma meta: atores/políticos alegam que são motivados por ideais em uma escala maior do que realmente são; derrubar a máscara da hipocrisia implica em dizer que a ganância, a vingança e a crueldade gratuita não são erradas, mas sim motivações legítimas para o comportamento político.”
Nos últimos anos, autocratas pós-comunismo como Vladimir Putin e Viktor Orban adotaram essa postura cínica. Parecem convencidos de que o mundo inteiro é movido apenas a ambição e fome de poder e que apenas as democracias ocidentais continuam a insistir, hipocritamente, em dizer que sua política é baseada em valores e princípios. Essa atitude deu vida nova a um velho instrumento de doutrinação soviética, o “whataboutism”, ou o truque de voltar qualquer argumento contra o oponente. Quando acusados de adulterar eleições, os russos respondem que o pleito norte-americano é cheio de problemas; quando confrontados com denúncias de corrupção, dizem que o mundo inteiro é corrupto.
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Em fevereiro de 2017, Trump usou a mesma técnica quando foi questionado sobre sua admiração por Putin, a quem o âncora Bill O’Reilly chamou de “assassino”. “Há muitos por aí. O quê, por acaso você acha que nosso país é inocente?”, respondeu o presidente. Aos ouvidos norte-americanos, o comentário é, no mínimo, perturbador, não por acreditarem que a nação seja mesmo “inocente”, mas porque sempre se basearam em um tipo de “hipocrisia de ideal” para entendê-la. Nenhum político dos EUA jamais adiantou a ideia de que o mundo inteiro, inclusive o próprio país, fosse podre até o âmago.
Máscaras
Uma atitude bem diferente, mas igualmente perturbadora, partiu da primeira-dama, que entrou na justiça porque alega que o jornal Daily Mail prejudicou suas chances de estabelecer “relações de negócios multimilionárias” durante o período em que estará entre “as mulheres mais fotografadas do mundo”. Melania Trump parece estar deixando clara sua intenção de lucrar com a posição que ocupa. Mais ou menos no mesmo momento, Donald Trump usava o Twitter para atacar a Nordstrom por não mais vender os acessórios e as roupas de sua filha, Ivanka, enquanto sua assessora, Kellyanne Conway, durante entrevista para a TV, sugeria ao público que comprasse os produtos da marca da primeira-filha.
Foi uma atitude hipócrita, sem dúvida, considerando-se que ela vem seguindo ordens do presidente, mas um gesto de hipocrisia em nome da decência é melhor do que o destroçamento explícito da compostura que o precedeu.
O fim de semana seguinte trouxe uma sucessão de cair de máscaras de outro tipo, na forma das postagens do Facebook dos hóspedes do resort Mar-a-Lago, de Trump. Havia uma foto do que parecia ser uma discussão de emergência de questões de segurança nacional, à mesa de jantar, na frente do público; havia a selfie de um homem que o fotógrafo disse se chamar Rick, que serviu de guardião da “bola de futebol nuclear”. Foi o governo não só desmistificando, mas desnudando, trivializando. Foi o oposto vulgar da hipocrisia.
Tudo isso vem provando ser um pouco demais, não só para o público, chocado, mas, pelo que parece, pelo menos para alguns membros na nova administração: Kellyanne Conway passou por “aconselhamento”, após o comercial espontâneo que fez para a marca da filha do patrão, segundo o secretário de imprensa da presidência, Sean Spicer. Foi uma atitude hipócrita, sem dúvida, considerando-se que ela vem seguindo ordens do presidente, mas um gesto de hipocrisia em nome da decência é melhor do que o destroçamento explícito da compostura que o precedeu.
Concessão às normas
Flynn finalmente foi demitido do cargo de assessor de segurança nacional. Em sua primeira coletiva solo como presidente, na quinta passada, Trump confessou não achar a conversa do ex-conselheiro com o embaixador russo, em dezembro, errada; na verdade ele foi dispensado por ter mentido ao vice-presidente.
Por mais difícil que seja discernir entre as críticas à imprensa e a campanha recorrente contra Hillary Clinton, essa explicação representou um passo para trás no modelo nós-ganhamos-portanto-podemos-fazer-o-que-bem-entendermos. Se Trump tivesse mantido a posição vamos-nos-livrar-das-máscaras para lidar com as polêmicas, poderia ter alegado que, na época do diálogo de Flynn com o embaixador russo, Obama era um presidente em fim de mandato e todo mundo sabia que assim que tomasse posse, revisitaria a questão das sanções, o que teria sido verdade.
Poderia também ter recorrido à sua maneira tão peculiar de racionalizar a política, com um belo “E daí?” – afinal, Flynn não foi acusado de divulgar nenhum segredo (ao contrário do incidente de 2010, no qual foi acusado de divulgar detalhes secretos). Em vez de usar qualquer um desses argumentos, o que equivaleria a dizer, mais uma vez, que o mundo é podre, Trump optou pela hipocrisia transparente e tradicional: afirmou desaprovar mentiras.
Essa talvez tenha sido a primeira vez que o novo governo fez uma concessão às normas, ou pelo menos às aparências, de decência. E como acontece em qualquer vitória da hipocrisia, essa também teve um sabor amargo.
*(Masha Gessen, autora de “The Man Without a Face: The Unlikely Rise of Vladimir Putin”, entre outros livros, contribui com a coluna de opinião.)
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