Com o lançamento de Trama Fantasma (Phantom Thread, 2017), seu sétimo longa que teve seis indicações ao Oscar (entre eles, melhor filme e melhor diretor), Paul Thomas Anderson chegou a um nível de excelência cinematográfica difícil de ser superado. Surgido na década de 1990, no meio do boom do cinema americano independente, com talentos estelares como Quentin Tarantino, David Fincher, James Gray, Hal Hartley e outros, PTA (como os fãs gostam de chamá-lo) conseguiu, com apenas 48 anos de idade, alcançar o pódio conquistado somente por cineastas veteranos como Terrence Malick, Clint Eastwood, Martin Scorsese, Michael Mann e Stanley Kubrick.
A comparação com Kubrick não é aleatória. Apesar dos três primeiros filmes de Anderson – Hard Eight (1996), Boogie Nights (1997) e Magnolia (1999) – terem um vigor próximo de um Scorsese, percebe-se neles a mesma capacidade de querer provar a todos que um jovem de menos de 30 anos poderia fazer cinema como os velhos mestres que o inspiraram. No caso do diretor de 2001 – Uma odisseia no espaço (1968), isto é notado nos longas que o colocaram no circuito de Hollywood, como O Grande Golpe (The Killing, 1957) e Glória Feita de Sangue (Paths of Glory, 1958), nos quais o uso magistral dos planos-sequências, dos travellings velozes e da montagem paralela prova que Kubrick não tinha medo de se ombrear com gente do calibre de um Orson Welles ou de um Max Ophuls.
No início de sua filmografia, Anderson também misturou outras influências que o marcaram, como Robert Altman e Jonathan Demme (além de, claro, do Scorsese de Os Bons Companheiros [Goodfellas, 1993], algo evidente quando comparamos o famoso plano-sequência deste último filme – Ray Liotta e Lorraine Bracco caminhando nos bastidores da boate Copacabana –, com o plano de abertura de Boogie Nights, feito sem nenhum corte, capaz de apresentar todos os personagens principais da trama em alucinantes três minutos). Altman está presente na forma como Anderson consegue organizar o caos da sua história, dentro de um determinado grupo de pessoas, extraindo sua coesão igual a um organismo que é tratado por suas lentes com carinho e distanciamento, similar ao que foi feito em Nashville (1974); e Demme, com Totalmente Selvagem (1988) e O Silêncio dos Inocentes (1991), tornou-se um modelo na direção de atores, algo que o cineasta aprendiz viu que era fundamental para manter o prumo artístico das suas histórias.
Contudo, assim como aconteceu com Kubrick, PTA foi alterando o modo e o ritmo dos seus filmes. Da grandiloquência talentosa, porém adolescente, de Boogie Nights e Magnolia, ele ficou mais concentrado nos seus modos de expressão e mais ciente do que poderia fazer com a câmera, os atores e o som da gramática cinematográfica. A partir de Embriagado de Amor (Punch-Drunk Love, 2002) – uma comédia romântica aparentemente despretensiosa –, notamos que Anderson não está mais preocupado em narrar uma história por si mesma, e sim criar climas, percepções e situações que não são necessariamente lógicas e que confundam a mente do espectador.
Isso seria levado ao extremo com o épico Sangue Negro (There Will Be Blood, 2007), o filme que seria a reviravolta definitiva na sua obra. É também a película que assume plenamente a presença de Kubrick na visão de Anderson. Apesar de 2001 ou Laranja Mecânica serem ambientados no futuro, e Sangue Negro acontecer no passado, os dois cineastas começam a se assemelhar pela cadência gélida da montagem, o uso dissonante da trilha sonora clássica (cortesia de Jonny Greenwood, guitarrista da banda de rock Radiohead) e, sobretudo, pela acumulação de detalhes visuais e narrativos que faz unir uma história que parece ocorrer em um determinado período histórico e, simultaneamente, numa perspectiva cósmica muito além das nossas limitações humanas.
A linha da sombra
A partir daí, PTA se aprofunda naquilo que o escritor Joseph Conrad chamava de “linha da sombra”. Trata-se da experiência-limite que separa a juventude da vida adulta ao ter a plena consciência de que o mundo é contingente e que o ser humano é fadado à morte. Parece algo banal de ser escrito (e é), mas é extremamente difícil fazer isso em termos cinematográficos. Como transformar essa “linha da sombra” em imagens? E o mais importante: se o diretor não for um Kubrick – que fez isso com rigor implacável em sua filmografia após 2001 – ou um Conrad, como tornar esse dilema em um drama concreto, sobre o qual o espectador pode se relacionar emocionalmente?
Paul Thomas Anderson resolveu esse impasse com O Mestre (The Master, 2012). Na aparência, parece ser mais um filme-denúncia sobre um culto religioso alternativo, mas na verdade é algo muito mais ambicioso – e igualmente enigmático. Ao contar o encontro do guru Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffmann, inspirado em L. Ron Hubbard, o criador da Cientologia) e do seu discípulo favorito, o atormentado Freddie Quell (um perturbador Joaquin Phoenix), PTA nos envolve no choque entre a ordem e a desordem, entre a harmonia e o caos que existem dentro da alma humana, exteriorizando-os em personagens que nenhuma psicologia fácil pode explicar. Em termos narrativos, o mesmo diretor que resolveu o clímax de Magnolia com uma surpreendente chuva de sapos, agora se permite deixar tudo em aberto, sem solução, usando e abusando de elipses narrativas, dos tracking shots que focam no ambiente e depois no rosto do ator, deixando que o tempo de uma cena domine a mente do espectador, alongando-o num desconforto psíquico permanente após a exibição do filme.
Tudo isso parece ser sério e pretensioso, mas Anderson salpica essa mistura que pode levar à indigestão com sutis toques de humor negro – muitas vezes, negríssimo. Em Sangue Negro e O Mestre, ele cria bordões dignos de aforismos, como acontece com o titã do petróleo Daniel Plainview (um Daniel Day-Lewis digno dos gigantes do cinema mudo) gritando com o pastor Eli Sunday que, ao roubar a água da sua propriedade valiosa, estaria apenas “bebendo seu milk-shake”; ou então o interrogatório sufocante que Lancaster Dodd faz em Freddie Quell para descobrir o seu trauma espiritual – e este último apenas reclama que “eu não fiz nada, eu não fiz nada”.
Este tipo peculiar de humor é levado a proporções monumentais com Vício Inerente (Inherent Vice, 2014), ambiciosa adaptação do romance psicodélico de Thomas Pynchon. Quando lançado, vários fãs de PTA acharam que ele finalmente sucumbira ao hermetismo – ou, pelo menos, à demência absoluta, obviamente induzida pelo consumo excessivo de drogas (um dos temas constantes do filme). Sem dúvida, a trama é intrincadíssima, mas isso é uma característica não só dos livros de Pynchon (um escritor com fama de recluso e que tem uma visão do progresso histórico similar à do Unabomber) como do próprio gênero do film noir que Anderson homenageia ou parodia. O importante aqui é acompanhar a jornada de Doc Sportello (um Joaquim Phoenix que supera o Jeff Bridges de O Grande Lebowski, no quesito “personagem-mais-chapado-do-cinema”) em um mundo onde a ordem e a desordem parecem ser semelhantes e onde o aparente descontrole da trama é inversamente proporcional ao absoluto controle que o cineasta tem sobre seus próprios meios narrativos.
Essa sublime obsessão pelo controle da técnica e da arte é o tema que consome Trama Fantasma, a segunda parceria de Anderson com Daniel Day-Lewis, outro ator sempre preocupado com a perfeição do seu trabalho. Juntos, fizeram também uma meditação dilacerante sobre o que acontece no relacionamento entre um homem e uma mulher, num filme que tem nítidos paralelos com De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut, 1999), de Stanley Kubrick, Amor (Amour, 2014), de Michael Haneke, e Garota Exemplar (Gone Girl, 2014), de David Fincher.
O fio condutor das obras
Na sutil arquitetura cinematográfica de Trama Fantasma, o controle é analisado de maneira microscópica pela forma como a gentil Alma passa a ditar as emoções do sempre dominador Reynolds Woodcock. Mas não é apenas a garçonete que consegue fazer isso. Woodcock é igualmente controlado por sua irmã, Cyril (uma Leslie Manning digna de ser incluída nos manuais maquiavélicos de dissimulação), que aparentemente facilita tudo para que a criação artística do seu irmão não seja interrompida; contudo, essa é também a estratégia dela para tê-lo em suas mãos. E há um outro mundo que domina os pensamentos do costureiro – o dos mortos, simbolizado por sua falecida mãe, que aparece em uma cena assustadora do filme, quando Woodcock perde completamente a noção de sua própria personalidade.
Contudo, por mais paradoxal que isso pareça, conforme se torna mais evidente o tema do controle em seus filmes, Paul Thomas Anderson deixa que a forma narrativa de se contar uma história por meio de imagens e sons fique mais solta e mais flexível, dando a impressão de que o descontrole tem um ritmo claro e fluído. O resultado é que, assim como acontece em O Mestre e Vício Inerente, Trama Fantasma parece ser um filme do qual não se consegue entender o seu sentido por completo porque, ironicamente, o espectador fica paralisado ao não conseguir controlar a película que acabou de assistir.
Assim, PTA chegou ao ápice daquele artifício que os pintores renascentistas chamavam de sprezzatura – ou seja, a aparente facilidade de realizar algo muito simples quando, na verdade, é extremamente difícil de ser feito. Ninguém duvida que ele tem total controle do processo de realização dos seus filmes, obviamente aliado a um intenso processo de colaboração com a sua equipe – chegando ao ponto de ser o próprio diretor de fotografia de Trama Fantasma, da mesma maneira que Stanley Kubrick praticava no passado. Contudo, ao contrário de Kubrick – que, na verdade, não tinha nada de perfeccionista e era mais um artista que trabalhava com as necessidades do acaso e da incerteza –, Anderson mergulha na área cinzenta da “linha da sombra” com uma doçura que o cineasta de Barry Lyndon se negava a ter, talvez porque este ainda via o ser humano como alguém obrigado a lidar com a indiferença do universo. Já PTA se permite um pouco de amor e de esperança, mesmo que seja temperado com um delicioso humor negro (e que fará você ver cogumelos numa nova perspectiva, sem dúvida).
Afinal de contas, na loucura de ter o controle da arte, como bem disse Henry James, sempre se faz o que se pode e sempre se dá o que se tem – e, no caso da obra de Paul Thomas Anderson, conforme percebemos na estranha perfeição de Trama Fantasma, o que ele já nos deu é mais do que necessário e mais do que o suficiente para ser considerado um dos gigantes do cinema.
Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pós-doutorando pela FGV-EAESP.
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