É da natureza humana usar ferramentas como maneira de estender habilidades além dos limites do próprio corpo; primatas, por exemplo, valem-se de gravetos e pequenos pedaços de madeira para buscar alimentos em lugares estreitos, que as mãos não acessam. Os seres humanos, é claro, foram ainda mais longe; desenvolveram tecnologias para percorrer grandes distâncias, produzir em uma escala que apenas o trabalho manual não permitia, transplantar órgãos e, consequentemente, prolongar a vida.
Agora, cada vez mais pessoas têm acreditado na ideia de incorporar tecnologia ao corpo humano como maneira de buscar a vida eterna: é a era do chamado transumanismo, que busca romper barreiras religiosas e vem ganhando adeptos ao redor do mundo com o argumento de que adotar a ciência para prolongar a vida deve ser o objetivo primordial da nossa espécie.
“Muitas pessoas acreditam que isso será uma possibilidade. Nem todos os transumanistas acreditam que a vida eterna vai ser possível nas próximas décadas, mas a maioria entende que ela será alcançada algum dia”, diz Mark O’Connell, autor do livro To Be a Machine (“Ser uma máquina”, em tradução livre), que se debruça sobre os diferentes cientistas, bilionários e sonhadores que vêm tentando resolver o “modesto problema da morte”.
Excentricidade e realidade
O’Connell percorreu o Vale do Silício, uma das áreas mais tecnológicas – e ricas – do mundo, investigando as diferentes experiências que vêm sendo realizadas para levar o corpo e a vida humana além dos limites. Encontrou, claro, argumentos inesperados, como o caso de Roen Horn, fundador do Fã Clube da Vida Eterna, que diz evitar calorias ao máximo e continua virgem para evitar doenças sexualmente transmissíveis; Horn estaria guardando sua primeira experiência sexual para o momento em que avançarmos o bastante para ter robôs capazes de substituir outros seres humanos na cama.
Além das bizarrices, o livro de O’Connell trata também de exemplos já consagrados, como as empresas que congelam os corpos de clientes em cabines criogênicas até que (assim esperam) a ciência seja capaz de trazê-los de volta à vida, até estratégias de rejuvenescimento por meio de transfusões sanguíneas, recuperação de células ou o uso de inteligência artificial como forma de encontrar novas respostas – se prolongar a existência do corpo se provar mais difícil do que os teóricos mais otimistas acreditam agora, outros apontam na direção de fazer o “upload” de nossa memória e consciência em algum sistema capaz de absorver nossa mente. Clássicas questões da filosofia ganham, assim, novas dimensões.
Alguns casos citados no livro, como o de Peter Thiel – co-fundador do PayPal e um dos investidores do Facebook –, seguem a linha de que o desenvolvimento da tecnologia vai permitir igualar o corpo humano a um computador, e as suas imperfeições a um “bug”: “a morte vai eventualmente deixar de ser um mistério e se tornar um problema com solução”, diz Thiel.
De qualquer forma, uma das grandes dificuldades dos transumanistas é serem vistos com seriedade – como algo mais do que sonhadores ou lunáticos – afinal, nem todos são Roen Horn: há muito dinheiro sendo investido na tentativa de fazer os projetos mais utópicos saírem do papel, em uma clara tentativa de compreender o movimento em seus próprios termos. “Há muita discussão sobre religião, arte e mitologia, porque sinto que o transumanismo é parte de um contínuo dessas outras áreas do esforço humano. Espero ter sido bem-sucedido em demonstrar a humanidade dos transumanistas, mesmo que o leitor não se identifique com eles”, pondera.
Para o autor, há uma certa dicotomia moral entre as possibilidades que a tecnologia proporciona. “Não creio se tratar de um caminho que nos conduzirá à imortalidade ou mesmo que destruirá a humanidade. Mas muitas pessoas são capazes de sustentar essas duas crenças ao mesmo tempo. São ideias extremas, mas interessantes como ilustração de uma forma de racionalismo que costumo chamar de “racionalismo mágico”: é aqui que a fé extrema na tecnologia se aproxima da contradição céu-inferno presente na maioria das religiões”, reflete.
Enquanto muitos ainda se questionam o quão éticos ou factíveis são os planos do movimento, suas iniciativas prosseguem: os transumanistas mais otimistas pensam que antes de 2050 o limite da morte poderá ter sido superado. “Essas pessoas são excêntricas e algumas vezes agem de maneiras reprováveis, mas elas não são monstros e há lógica na maneira com que elas pensam”, afirma. “O medo da morte é parte da natureza humana, a inabilidade de aceitarmos a nós mesmos como criaturas mortais em meio a outras criaturas mortais. Em geral, não é tanto um caso sobre querermos viver para sempre, mas de que não queremos morrer. E essa fantasia de fugir da morte é o que levou aos mais estranhos e belos esforços humanos – da religião à mitologia, e ao transumanismo”.