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Três argumentos pró-vida ruins (mas nem tanto)

É essencial na ética da sacralidade da vida: é sempre, em qualquer lugar, moralmente errado matar intencionalmente uma pessoa humana inocente | Pixabay
É essencial na ética da sacralidade da vida: é sempre, em qualquer lugar, moralmente errado matar intencionalmente uma pessoa humana inocente (Foto: )

Na Suma Teológica, São Tomás de Aquino alerta seus companheiros cristãos: “Pois quando qualquer um, no esforço de provar a fé, suscita razões que não são convincentes, é ridicularizado pelos não crentes, uma vez que eles supõem que nós nos sustentamos nessas razões e que acreditamos com base nesses fundamentos”. Isto é válido tanto para argumentos teológicos e filosóficos quanto para os políticos e morais.

Para aqueles de nós que acreditam na sacralidade da vida humana e procuram convencer aqueles de quem discordamos, é essencial que os motivos que damos consigam realmente fundamentar nossa posição. Infelizmente, alguns bem-intencionados militantes pró-vida apresentam argumentos que são até comoventes, mas tiram o foco do que é essencial na ética da sacralidade da vida: é sempre, em qualquer lugar, moralmente errado matar intencionalmente uma pessoa humana inocente. Qualquer desvio desse foco não só passa a nossos críticos uma impressão errônea sobre a força de nossa posição, mas também os engana acerca do que realmente acreditamos sobre a natureza da vida humana não-nascida.

A seguir, você confere alguns desses argumentos pró-vida ruins – e a explicação do motivo pelo qual o movimento pró-vida não os deveriam utilizar.

O argumento do assassinato de Beethoven

Existem variações deste argumento. Geralmente, aparecem em forma de diálogo, como este, citado por Garrett Hardin:

Dois médicos estão jogando conversa fora. “Doutor”, diz um deles, “Eu gostaria de sua opinião profissional. A pergunta é se a gravidez deveria ou não ser interrompida. O pai era sifilítico. A mãe, tuberculosa. Eles já haviam tido quatro filhos: o primeiro era surdo, o segundo morreu, o terceiro era surdo-mudo e o quarto era tuberculoso. A mulher estava grávida pela quinta vez. Como médico responsável, o que você teria feito?” – “Eu teria interrompido a gravidez.” –“Então você acabou de matar Beethoven.” 

Imagine, contudo, que todos os fatos sobre os pais, irmãos e vida familiar de Beethoven também sejam verdadeiros na vida de Adolf Hitler. Neste caso, um defensor do aborto poderia muito bem terminar o diálogo desta forma: “Como médico responsável, o que você teria feito?” –“Eu teria interrompido a gravidez.” –“Parabéns, você acabou de salvar as vidas de seis milhões de judeus”.

Para aqueles que defendem a sacralidade da vida, o erro de se matar intencionalmente uma pessoa inocente independe se essa pessoa se tornará um compositor de renome mundial ou uma aberração moral.

O feto Ludwig e o feto Adolf são igualmente humanos e igualmente inocentes, assim como uma pessoa sem-teto desconhecida, um imigrante que busca asilo e Jeff Bezos. Cada um deles possui o mesmo direito inviolável à vida. A dignidade de cada membro da família humana não é afetada por aquilo que imaginamos que possa ser a sua contribuição.

É por isso que o argumento sobre Beethoven é, no mínimo, dispensável e, na pior das hipóteses, enganoso.

O argumento sobre os terríveis procedimentos de aborto

Como o objetivo do aborto é encerrar a gravidez de uma maneira que garanta que o feto morra, que a mulher não seja ferida e que todas as partes do feto sejam retiradas do útero, os procedimentos abortivos implicam intencionalmente em desmembrar, envenenar, esmagar e/ou apunhalar um feto humano vivo.

Por esta razão, filmes como “O Grito Silencioso” e fotografias de bebês abortados são, algumas vezes, efetivamente usados por grupos pró-vida em suas apresentações públicas.

A organização Priests for Life, por exemplo, publica as seguintes palavras em seu site junto a uma galeria de imagens que inclui bebês abortados: “As imagens de abortos abaixo mostram algumas das realidades sinistras desse ato. Somente olhar estas imagens de abortos já nos traz o tipo de indignação necessária para sustentar os sacrifícios que serão indispensáveis para, finalmente, dar fim a essa injustiça”.

Mas como é que isso mostra, de fato, que o aborto é gravemente errado? Afinal de contas, se alguém acredita – como a maior parte dos defensores do aborto fazem – que o status moral de qualquer ser depende de que ele tenha um certo nível de consciência de si mesmo e de sua existência – e um feto, durante a maior parte da gestação, não atingiu tal nível – então o aborto, teoricamente, não seria injusto, independentemente do quão terríveis suas sequelas possam parecer nas fotos.

Além do mais, existem muitos eventos e atividades que são fotografados e que algumas pessoas achariam terríveis, mas não são gravemente errados, como a autópsia do presidente John F. Kennedy, os corpos dos soldados nazistas cheios de balas, a evisceração de um cervo ou uma cirurgia de coração de um paciente idoso.

Por outro lado, suponha que uma nova tecnologia permita que um médico desmaterialize instantaneamente um feto, como um phaser de Jornada nas Estrelas ajustado para matar. Sendo uma tecnologia barata, eficiente e segura para a mulher grávida, não seriam realizados mais nenhum aborto de maneira cruel. Agora, se você acha que o aborto é gravemente errado, esta ausência de crueldade faria alguma diferença neste julgamento moral? O feto deixaria de ser membro da comunidade humana por causa disso?

Pode ser que imagens pós-aborto estejam sendo usadas por defensores da vida para refutar a declaração de alguns defensores pró-aborto de que o feto é meramente um “amontoado de células” ou ainda de que não é um organismo humano individual. Mas praticamente nenhum pensador pró-escolha mais refinado alega tal coisa. Eles reconhecem a humanidade do feto, mas eles negam que ela tenha algum status moral.

Eles argumentam, como comentei acima, que devido à falta da possibilidade de exercer algumas faculdades como, por exemplo, algum nível de autoconsciência ou conhecimento de sua existência, falta-lhe status moral. Essa distinção tem sido defendida de maneiras diferentes por alguns acadêmicos notáveis, incluindo Ronald Dworkin, Michael Tooley e Peter Singer; nenhum deles nega a humanidade do feto.

É claro que muitos de nós criticam essa posição, afirmando que o status moral do feto não depende do que ele faz, mas, na verdade, do que ele é. Pois se as capacidades (ou realizações) humanas são a condição essencial para o direito à vida de um indivíduo, então é difícil explicar por que não deveríamos abandonar a ideia de igualdade entre os seres humanos, uma vez que todas nossas capacidades se manifestam em graus diferentes durante cada estágio do desenvolvimento humano.

Assim como o filósofo pró-escolha Jeff McMahan escreveu: “É difícil evitar a sensação de que nossos compromissos igualitários se fundamentam em bases angustiantemente inseguras” se “as propriedades das quais parece sobrevir o nosso status moral são todas uma questão de gradação”. Contudo, é necessário construir o argumento. Imagens terríveis por si só não o farão.

O argumento do arrependimento e do sofrimento emocional decorrentes do aborto

A partir do fim da década de 1990, alguns segmentos do movimento pró-vida começaram, em sua oposição ao aborto, a tirar o foco da injustiça em se tirar uma vida humana inocente e direcioná-lo para os danos físicos e emocionais que, segundo eles, as mulheres sofrem como consequência de recorrer ao aborto. É claro que não há nada errado em chamar a atenção das pessoas para os danos colaterais que possam surgir de um aborto induzido. Mas até mesmo um militante pró-escolha pode admitir isso sem precisar concordar com a visão pró-vida da vida no nascituro.

Danos físicos e emocionais, por si sós, não podem estabelecer a qualidade moral do ato que se acredita ser seu causador. Suponha que você se aliste no exército e é enviado para lutar em uma guerra justa. Durante o combate, você mata cinco soldados inimigos, sabendo que seus atos têm uma justificativa moral. Contudo, quando você volta para casa, você começa a se arrepender de ter se alistado, uma vez que agora você sofre de depressão, síndrome do estresse pós-traumático e ansiedade. Seu terapeuta atribui esta batalha mental diretamente à violência com a qual você se deparou enquanto estava combatendo, apesar de você saber que a guerra e os homicídios eram justos.

Por outro lado, a ação de alguém não se torna correta ou boa somente porque esta pessoa não está arrependida ou não enfrenta nenhum sofrimento emocional como resultado. Se um abusador sexual não demonstra nenhum remorso por suas ações e de fato acredita que suas “realizações” são conquistas românticas que reforçam seu valor-próprio, ninguém diria que suas ações são, por isso, moralmente justas.

Ao enfatizar exaustivamente histórias de arrependimento pelo aborto, os militantes pró-vida preparam o campo para a óbvia contra-argumentação de seus críticos pró-escolha. Eles podem simplesmente recolher e divulgar suas próprias histórias de mulheres que ou não se arrependem ou até mesmo estão satisfeitas por terem realizado o procedimento — que é exatamente o que aconteceu.

Defensores da sacralidade da vida devem tomar ações concretas para cuidar do bem-estar tanto do bebê como da mãe. Mas ligar tão intimamente a causa pró-vida às vicissitudes das ciências sociais — insinuando que o mal do aborto depende em alguma medida, mesmo que modesta, dos efeitos psicológicos maléficos de se realizar um — ensina a lição errada.

Um fundo de verdade não é suficiente

Em cada um desses argumentos pró-vida ruins, existe um fundo de verdade. O argumento do assassinato de Beethoven recorre à nossa profunda intuição de que o valor intrínseco de um ser humano não depende da condição de seus pais ou das circunstâncias de seu nascimento, mas ele falha em reconhecer que este valor não depende, tampouco, de suas perspectivas futuras.

O argumento dos terríveis procedimentos de aborto nos mostra que um bebê não nascido é um ser humano, mas não é capaz de mostrar, por si só, que o aborto é uma matança injusta de uma pessoa humana inocente. O argumento do arrependimento e sofrimento emocional decorrentes do aborto pode nos dizer que algumas mulheres que fizeram aborto sofrem danos psicológicos, mas essas consequências não podem nos dizer se o aborto é ou não moralmente errado.

Como têm um fundo de verdade, esses argumentos podem muito bem funcionar como um catalizador para uma reflexão mais profunda que direciona o interessado para verdadeiramente ver a criança nascitura como um de nós. Por esta razão, eles não são inteiramente ruins. Entretanto, militantes pró-vida deveriam se lembrar de que estes argumentos isolados não conseguem demonstrar a veracidade de nossa posição e princípios, não importa quão poderosos eles possam parecer retoricamente.

Francis J. Beckwith é professor de Filosofia da Baylor University.

Tradução de Giovani Domiciano Formenton. 

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