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O quadro “O Triunfo da Morte”, de Pieter Bruegel, é uma obra assustadora, uma espécie de “Onde Está o Wally?” do apocalipse do século XIV. Não se trata do triunfo da Humanidade sobre a morte, e sim do triunfo da Morte sobre a humanidade. Um exército de esqueletos que impiedosa e indiscriminadamente destroem a terra, poluem e derrubam as florestas, e perseguem e matam os aldeões.
“O Triunfo da Morte”, de Bruegel, é uma Dança Macabra, estilo artístico da Baixa Idade Média e uma forma de expressar a fragilidade da vida e a quase certeza de uma morte precoce em nome de uma ordem natural irremediável. A Dança Macabra reflete a realidade da época, isto é, a de que a condição do homem pré-industrial era “solitária, pobre, violenta e curta” — uma realidade expressa com precisão na obra de Bruegel.
Mas o quadro mostra algo maior do que as vicissitudes intermináveis e o padrão de vida insuportável da civilização pré-industrial. “O Triunfo da Morte” mostra aquele que talvez tenha sido o maior evento de sofrimento em massa na história da civilização, a Peste Negra (1346–1353).
Surtos da Peste assolaram a Europa intermitentemente de 430 a 1750. Mas o período da Peste Negra foi o que causou o maior sofrimento e mais mortes, e criou as bases para a transformação dos sistemas econômico e social.
Na assustadora obra de Bruegel, à medida que os esqueletos avançam, eles destroem a paisagem e matam as pessoas. Os aldeões são incapazes de resistir. À medida que o massacre se consuma, uma mãe cai, deixando a filha indefesa para lutar contra o esqueleto do cão que lhe puxa o cobertor. Um esqueleto bate tambor enquanto dois outros tocam sinos sobre as árvores. No centro, esqueletos tomam de assalto uma igreja. Não há Deus ali e as orações e gritos dos fiéis desesperados caem no vazio. No apocalipse de Bruegel, a fúria da morte rouba as riquezas do reino e derruba o rei, cujo tempo expirou. O exército de destruição leva homens, mulheres e crianças e, no cenário onde eles vivem, nada nem ninguém é poupado.
“O Triunfo da Morte” retrata e foi pintado numa época em que a Humanidade entendia superficialmente o que era uma doença, o que a causava e o que podia ser feito para preveni-la, tratá-la ou mitigar sua transmissão e impacto. É tentador supor que um cenário como esse seja um retrato embelezado, mas a pintura de Bruegel evoca certa realidade da peste. Esqueletos como agentes da morte eram obviamente uma fantasia, mas a escala e alcance do apocalipse é retratado de uma forma que dá ao espectador a sensação do que era viver naquele tempo.
Ian Mortimer contextualiza a escala da cena em seu livro Centuries of Change [Séculos de mudança].
“A Peste Negra matou aproximadamente 45% da população da Inglaterra num período de sete meses e assolou o país como uma onda: a taxa anual de mortalidade chegou a 77%”, escreve Mortimer.
Em outras palavras, a taxa de mortalidade no fim dos anos 1340 era aproximadamente 200 vezes maior do que a da Primeira Guerra Mundial, de acordo com Mortimer. Ele também compara a peste com a Segunda Guerra Mundial.
“Para replicar a intensidade da peste você teria de jogar não duas bombas atômicas sobre o Japão (cada qual matando cerca de 70 mil pessoas, ou 0,1% da população), e sim 450 delas”, escreve ele. São duas bombas atômicas por dia, em cidades diferentes, ao longo de sete meses”.
É difícil avaliar as consequências sociais e econômicas de tanta morte e ruptura. Muitas cidades e vilas não perderam apenas umas poucas famílias, e sim toda a população.
A doença bacteriana que causou a Peste Bubônica, a Yersinia pestis, tinha uma taxa de mortalidade perigosamente alta e, sem os tratamentos contemporâneos, algo entre 30% e 90% dos infectados perdiam a vida.
A peste acabaria por exterminar entre 30% e 50% da população da Europa entre 1347 e1352, causando um sofrimento humano incalculável, assim como danos econômicos. Para que houvesse uma pandemia semelhante hoje em dia, ela teria de matar 2 bilhões de pessoas. Numa população sem qualquer conhecimento sobre germes, sem higiene ou práticas seguras de sepultamento, os corpos eram deixados nas ruas ou jogados ao mar, onde apodreciam ou acabam nas praias, para servirem de alimento dos pássaros e animais carniceiros. Por fim os corpos eram transportados em carroças ou cavalos pelos que ainda tinham saúde para trabalhar, o que aumentava a transmissão da doença e o sofrimento.
A Peste Negra resultou numa queda no padrão de vida, expectativa de vida, comércio e produção. A calamidade reduziu o ritmo já lento do progresso humano.
É quase impensável contemplar as condições do surte pré-industrial da peste. A morte, a miséria, o medo, o isolamento, a sujeira e o sofrimento eram tamanhos que assustariam e paralisariam qualquer observador contemporâneo.
Coloque-se no lugar de um agricultor quando do surgimento da doença. Seu filho mais velho, ainda não um homem, foi o primeiro a sucumbir à doença. A ele se seguiu logo depois o mais novo dos dois filhos. Nove dias mais tarde, a esposa, ainda fraca por ter dado à luz dois meses antes e ainda se recuperando, adoece e morre. Sua filha de dois meses para de chorar e morre nos braços dele dois dias mais tarde, de fome, sede e cansaço. Na noite seguinte, o senhor feudal local queima a casa dele, como uma medida de esterilização aprovada pelo conselho. Fome, frio e miséria — você olha em volta e há corpos nas ruas e carroças cheias de mortos; é impossível ignorar o fedor dos cadáveres. Pássaros, cães e ratos vasculham os mortos expostos; é o que basta para lhe revirar o estômago.
Você começa a tossir e, de repente, percebe que não está se sentindo muito bem. Qualquer tratamento médico que você receba provavelmente lhe fará mais mal do que bem, além de ser extremamente caro e limitado. A comida se tornou escassa e a fome estava sempre presente. Roubo e violência eram agora mais comuns do que o normal, já que os sobreviventes lutavam para alimentar a si mesmos e a suas famílias.
Histórias assim eram a regra, não a exceção, e o destino de milhões que viveram na Europa no século XIV.
O mundo pré-industrial de “O Triunfo da Morte” era uma existência sem excedente e, para mais de 99% da população, a vida era um dia após o outro, sem segurança de qualquer tipo. As grandes pestes da era pré-industrial — e é preciso lembrar que eram pestes, no plural, já que elas foram muitas — não contavam com “pacotes de estímulo”, equipes de cientistas trabalhando incansavelmente em tratamentos e vacinas, saúde pública, reservas de alimento e energia, equipamentos de proteção, comunicação, informação, remédios, antibióticos ou leitos de UTI. Era um mundo onde se rezava para não contrair a doença e onde você sabia que, se a contraísse, teria uma morte horrível nas mãos dela.
À medida que as ondas assolaram a Europa finalmente começaram a perder força, já no início da Revolução Industrial, a civilização começou o processo de conter as pestes para valer. O crescimento econômico e as melhores condições de vida ajudaram a criar os instrumentos para se lutar contra a doença, reduzindo a pobreza que havia permitido que ela se espalhasse com tamanha rapidez.
O impacto econômico da Peste Negra sobre a civilização foi dramático. A enorme perda de vidas reestruturou a força de trabalho e criou as condições que ajudaram, ao menos temporariamente, a transferir o poder e o controle dos meios de produção da hierarquia feudal para o povo.
A escassez de força de trabalho resultante das pestes deu aos agricultores, operários e comerciantes mais liberdade e incentivo para inovar e gerar mais produção a partir de seu trabalho. De certa forma, a restruturação econômica da Europa depois da Peste Negra favoreceu o surgimento do capitalismo e da prosperidade que propiciaria às gerações futuras.
Hoje, temos à nossa disposição todo um arsenal de conhecimento científico, tecnologia, equipamentos médicos, vacinas, remédios, energia, alimento e riqueza. Nunca na história da civilização nossa espécie teve a capacidade de desenvolver com tanta rapidez vacinas e remédios ou a capacidade de mobilizar quantidades enormes de energia, alimento, matérias-primas, recursos, ciência, tecnologia, equipamento e pessoas para vencer uma doença.
Quando Pieter Bruegel começou a pintar “O Triunfo da Morte', em 1562, a Europa sofria com surtos regulares de peste. As pessoas não entendiam o que estavam enfrentando e não havia uma forma prática ou eficiente de conter a doença. Não havia muita esperança de um futuro melhor.
“O Triunfo da Morte” é uma janela para a história de nossa batalha contínua contra doenças transmissíveis, e um lembrete de a que ponto chegamos enquanto civilização.
Tony Morley é escritor, pesquisador, pensador e proponente do projeto #HumanProgress.