No dia 7 de maio de 2021, o governo britânico suspendeu para menores de 40 anos a recomendação da vacina produzida pelo país, feita pela Universidade de Oxford em parceria com a farmacêutica AstraZeneca, por risco de trombose (coágulos sanguíneos) com trombocitopenia (uma contagem anormalmente baixa de plaquetas no sangue). No Brasil, o Ministério da Saúde demorou até 27 de dezembro de 2022 para fazer a mesma restrição ao imunizante da AstraZeneca. A guinada de política de recomendação foi tão discreta -- o Ministério da Saúde publicou o documento sem dar publicidade -- que somente chegou à imprensa na última semana. Por aqui, a contraindicação para menores de 40 anos é condicionada, no entanto, à disponibilidade de outras vacinas, como a da Pfizer.
A iniciativa britânica, replicada em outros países na época, veio na esteira de um alerta de risco emitido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) dois meses antes. O Ministério da Saúde publicou duas notas técnicas a respeito em 2021, uma em abril (nº 441) e outra em agosto (nº 933). Apesar das diferenças entre elas no que se refere a orientações de identificação, investigação e manejo da síndrome sanguínea associada a casos de inoculados com a AstraZeneca, ambas contraindicam uma segunda dose desse tipo de vacina apenas para quem desenvolveu sintomas de trombose e baixa de plaquetas após a primeira dose. A recomendação nesse caso era de continuidade do programa de vacinação com doses de outro tipo.
Enquanto a nota de abril afirma que “ainda não há confirmação de uma relação causal” e que “os benefícios superam em muito os potenciais riscos, reiterando a importância da vacinação”, a de agosto reforça que “há que se destacar que as vacinas de vetor viral não são contraindicadas em indivíduos com histórico de outras tromboses”. A contraindicação só especificamente para os sintomas trombóticos pós-vacina ignora estudos que mostram que indivíduos que tiveram um episódio de trombose têm o risco aumentado de ter de novo.
Enquanto Dinamarca, Noruega, Islândia, Áustria, Estônia, Lituânia, Luxemburgo, Itália e Letônia suspenderam imediatamente, já em março de 2021, o uso da vacina AstraZeneca, o Brasil continuou indicando e aplicando a vacina, sem restrição de idade ou sexo para a primeira dose, e sem contraindicação até mesmo para quem teve trombose não-vacinal, até dezembro de 2022.
Somente no fim do ano passado, com a nota 393, a indicação da vacina tornou-se similar à decisão dos britânicos, 600 dias depois: “pertinente atualizar as recomendações de uso das vacinas de vetor viral (AstraZeneca e Janssen) para que, na população abaixo de 40 anos de idade, sejam administradas preferencialmente vacinas Covid-19 de plataformas que não sejam de vetor viral”. Ou seja, a contraindicação é condicionada à disponibilidade de outras vacinas, como a da Pfizer.
Um mês antes, a Fiocruz, que estava fabricando o imunizante no Brasil, comprou insumos para produzir até seis milhões de doses, e entregou ao Ministério da Saúde mais 2,5 milhões de doses da AstraZeneca. Ao todo, foram aplicadas mais de 153 milhões de doses da AstraZeneca e mais de 30 milhões da Janssen. A nota informa que, de 98 casos de trombose pós-vacinação no Brasil coletados pelo sistema de vigilância e-SUS Notifica até setembro de 2022, 34 foram confirmados. Somados os casos confirmados e prováveis, mais da metade das suspeitas podem ser verdadeiras.
Procurada pela Gazeta do Povo, a Anvisa “reafirma que todas as vacinas contra a Covid-19 aprovadas estão válidas e os benefícios das vacinas superam os possíveis riscos” e que nenhuma das vacinas contra a Covid-19 aprovadas pela agência sanitária foram proibidas ou desautorizadas. O órgão esclarece que solicitou em abril de 2021 a alteração da bula da vacina da AstraZeneca para incluir trombose com trombocitopenia no item “Advertência e Precauções”.
A seção da Fiocruz responsável pela produção da vacina e os representantes da farmacêutica AstraZeneca no Brasil não responderam até o fechamento da reportagem.
Vítima brasileira
Uma das vítimas da complicação sanguínea causada pela vacina AstraZeneca no Brasil foi Bruno Graf, um jovem de 28 anos de Blumenau, Santa Catarina. Ele iniciou com os sintomas em 23 de agosto de 2021 e morreu três dias depois. Um relatório da Diretoria de Vigilância Epidemiológica de Santa Catarina, de novembro daquele ano, disse que Graf teve “um quadro de trombose no sistema nervoso central”.
A mãe dele, Arlene Ferrari Graf, teve a conta suspensa no Twitter por fazer alertas contra a vacina após a morte do filho. Ela chegou a acionar a justiça contra a rede social. Com a compra do Twitter por Elon Musk, documentos internos do site foram liberados para jornalistas selecionados. As reportagens revelaram que o Twitter, junto a outras redes sociais, era parte de um grande esquema de censura iniciado pela Universidade Stanford, com participação de agências do governo americano e ONGs, muitas delas com financiamento de impostos: o “Projeto Viralidade”. A iniciativa recomendava a supressão de casos verdadeiros de vítimas de efeitos colaterais das vacinas contra Covid para combater a “hesitação vacinal”.
É inegável que muitas vidas foram salvas pelas vacinas contra Covid, inclusive pelo imunizante AstraZeneca-Oxford. Recentemente, um vazamento de conversas de WhatsApp mostrou que o ministro da saúde britânico Matt Hancock fez pressão para o desenvolvimento rápido dessa vacina, e que ele tinha planos de vacinar toda a população britânica com ela, independentemente da vulnerabilidade de cada grupo à Covid e a potenciais efeitos colaterais do produto. Seus planos foram interrompidos pela mudança de recomendação do próprio governo, ainda cedo no programa de vacinação, algo que o Brasil demorou quase dois anos para fazer.
Custo-benefício e relação causal
No mês passado, um estudo britânico publicado na revista Nature Communications propôs que, na relação de custo-benefício da vacina AstraZeneca para as mulheres jovens, o custo supera os benefícios. Estudando mortes por problemas cardíacos, os autores concluíram que a vacina aumentava o risco desse tipo de morte em 252% no grupo. Em comparação, o mesmo risco era aumentando em 135% pela Covid entre não vacinados na população em geral. Os pesquisadores não sabem ao certo se esses resultados são generalizáveis. Se forem, será o segundo caso em que as evidências pendem a balança para o lado dos custos, após o caso do risco de inflamação do coração em adolescentes e jovens do sexo masculino depois da inoculação com as vacinas de mRNA da Pfizer e da Moderna.
Em dezembro de 2021, um ano antes da mudança da recomendação da vacina no Brasil, um artigo na revista Science Advances propôs um mecanismo causal pelo qual a vacina AstraZeneca poderia provocar trombose com trombocitopenia. O estudo pede por mais investigação, mas mostra que há plausibilidade no mecanismo, já tendo sido citado por mais de 80 artigos científicos.