“Evangelizar é dizer verdades ao poder.
Fazer política é conquistar o poder para defender a verdade”
Mark Lilla, ‘O progressista de ontem e o do amanhã: Desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias’
“Agora há reação”.
Paulo Eduardo Arantes, ‘O Novo Tempo do Mundo’
O problema do impasse da esquerda mundial e, em particular, a brasileira, que tem recebido expressões diversas em diferentes correntes doutrinárias – do suposto liberalismo clássico de Mark Lilla, com seu ‘O Progressista de Ontem e o do Amanhã’ (2017), à transfiguração prometeica de Paulo Eduardo Arantes, em seu volumoso ‘O Novo Tempo do Mundo’ (2014), e da erudição enciclopédica de ‘Melancolia de Esquerda’ (2015), de Enzo Traverso, à crítica interna feita por Ruy Fausto em ‘O Ciclo do Totalitarismo’ (2017), sem deixar de lado, é claro, a ousadia técnica de Marcos Nobre no críptico ‘Como Nasce o Novo’ (2017) –, surgiu explicitamente com as eleições de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, além da surpresa que foi o acontecimento do Brexit.
Podemos admitir que, nessas infinitas variações que tomaram de assalto a esquerda radical e a progressista nos últimos anos, onde a realidade é apenas um sonho sem nenhuma conexão com o mundo do dia-a-dia, a especulação filosófica estava em um impasse trágico, típico da modernidade – conforme escrevi no primeiro artigo desta série –, e isso tornou-se cada vez mais evidente, especialmente porque, para esses pensadores, ela passa a ser a tentativa de uma ciência integral, de saber completo e universalmente válido, desde que, claro, seus alicerces estivessem fundamentados ora na ilusão do progresso histórico, ora na alucinação coletiva que foi o materialismo histórico.
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No ensaio “A Superação da Filosofia”, Benedito Nunes explica que este tipo de desenvolvimento (e de meta final) foi justamente a intenção do pai direto (e indireto) de todos esses autores, Hegel, para quem “chegara o tempo de elevar a filosofia à forma de ciência, obedecendo a necessidade interna do conhecimento. O sistema de todos os conceitos, equivalente à verdade, que a ciência tem por objetivo, pondo um termo à inquietude da especulação, atingia o alvo da busca filosófica. Superava-se, então, a filosofia, no saber sistemático por ela mesma engendrado”.
Contudo, para eles, o sentido de um sistema foi destruído por dois eventos: a queda do Império Soviético, em 1989, e o impacto da crise econômica de 2008 (é interessante notar que, para a esquerda – com a exceção de Ruy Fausto –, os atentados do 11 de setembro não têm o mesmo impacto). Desses dois epicentros, as vitórias de Trump, Bolsonaro e do Brexit são apenas ramos de uma mesma árvore: a da impossibilidade de se construir um sistema objetivo de conhecimento, devido aos eventos extremos do curso histórico, o que nos leva à própria impossibilidade de se conhecer o que chamaríamos de “verdade objetiva”. Uma vez que não há mais a episteme das coisas, a verdade passa a ser substituída por eufemismos, subterfúgios e truques retóricos, nos quais os diferentes nomes – “pós-verdade”, “relativismo”, “pluralismo”, “tolerância”, “lugar de fala” – são apenas disfarces para um determinado tipo de experiência que pode ser articulada na seguinte questão: Como se ganha ou como se mantém o poder político?
A contaminação de Mark Lilla
Este é precisamente o dilema de Mark Lilla em seu livro mais recente, publicado nos EUA logo após o pleito entre Donald Trump e Hillary Clinton, e depois divulgado no Brasil para coincidir com a subida de Jair Messias Bolsonaro ao Palácio do Planalto. Apesar do sucesso a curto prazo, não foi uma boa estratégia para quem tinha uma obra fundamentada no longo.
No passado, Lilla era um renomado scholar, autor dos notáveis ‘A Mente Imprudente’ (2001) e ‘A Mente Naufragada’ (2016), além do sublime ‘The Stillborn God’ (2007), cuja tradução brasileira precisa ser feita com urgência no Brasil; apesar de ser um progressista confesso, ele se alinhava muito mais ao liberalismo clássico de um Tocqueville ou de um Burckhardt do que propriamente ao radicalismo de quem é militante do Partido Democrata comandado pela trupe Clinton & Obama. Entretanto, agora, com o apocalipse de Trump se avizinhando no seu quintal, ele resolveu escrever um livro que não só paga pedágio ideológico aos seus colegas da academia, como também revelou que o seu verniz liberal escondia um grande jacobino, em especial a respeito do mais candente dos assuntos – o do aborto.
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Nas palavras do próprio Lilla, ele é um “absolutista” em relação a este tópico – e, segundo seu ponto de vista, “é a questão social a que dou mais importância, e acredito que o aborto deva ser seguro e legalizado, praticamente sem qualquer precondição em cada centímetro quadrado do solo americano”.
No século em que a filosofia precisa se autodestruir para se superar, é nítido o modo como o sujeito que diagnosticou as doenças da mente naufragada e da mente imprudente foi também contaminado por estas moléstias de estimação. É verdade que tal declaração de princípios é articulada em poucas linhas no decorrer do livro, mas é também verdade que ela revela todo o impasse da esquerda progressista – e já indica a solução que será alcançada para resolvê-lo.
Em ‘O Progressista de Ontem e o de Amanhã’, Lilla age como qualquer esquerdista – ou seja: como um intelectual de gabinete. O “aborto”, para ele, é uma questão abstrata, conceitual, um mero problema político que exige persuasão e convencimento para então depois ser imposto – sempre com sutileza, é claro – ao restante da sociedade política e o qual não envolve, por incrível que pareça, a existência de um ser humano concreto, de carne, osso e alma.
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Sua tese parece ser inusitada porque vem com o disfarce hipócrita da autocrítica, mas, na verdade, é a ponta do iceberg da nova estratégia que a esquerda progressista usará (ou sempre usou?) para recuperar o poder que antes supunha ter. Ela consiste em querer ensinar o eleitor por meio da “educação do imaginário” – uma frase que sempre encheu a boca dos conservadores e dos republicanos inspirados em T.S. Eliot e Russell Kirk –, criando assim a sua participação na sociedade de tal forma que, ao conquistar novamente os cargos legislativos e executivos do governo americano, possa recuperar a verdadeira política que combata a “pseudopolítica” das ações afirmativas, do politicamente correto e das palavras de ordem identitárias.
Porém, para combater adequadamente essa pseudopolítica e chegar enfim ao que acredita ser a política ideal, Lilla exige que devemos entender as consequências históricas da “antipolítica”. Aqui, ele faz uma distinção entre a Dispensação Roosevelt, uma narrativa histórica que moldou a maioria das mentes liberais do século XX, com a criação de um Estado assistencialista que tirou os EUA da maior depressão econômica de todos os tempos; e a Dispensação Reagan, que seria uma resposta à de Roosevelt, e a qual consistiria em reforçar o papel do indivíduo diante das engrenagens burocráticas do poder estatal, formatando a mente republicana-conservadora que, na perspectiva de Lilla, seria ressuscitada por Donald Trump em 2016, desta vez com um tempero a mais de populismo e protecionismo comercial.
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Em ambos os casos, a “educação do imaginário” foi fundamental para a sociedade americana perceber que a política identitária era um beco sem saída. Apesar de ter sido apropriada como lema pelos integrantes mais radicais do Partido Democrata – e imposta nas regras aparentemente objetivas e técnicas das universidades –, esta atitude os levou à derrota estrondosa de Hillary Clinton.
Lilla entende que os americanos médios tinham preocupações que não se encaixavam nas exigências da classe intelectual e acadêmica do país, mas, ao mesmo tempo, cai na armadilha de não acreditar que eles poderiam fazer escolhas racionais, morais e prudentes. Este é o verdadeiro preconceito do intelectual que mora no coração do autor de ‘A Mente Imprudente’: achar que suas ideias podem moldar a sociedade, de cima para baixo, naquela pleonexia que é o desejo de poder de qualquer homem de cultura sem nenhum controle das suas paixões, cujo único intento é permanecer na sua torre de marfim, custe o que custar.
Todo esse raciocínio aparentemente lúcido só vale se entendermos o subtexto que envolve uma publicação deste tipo – o de que estamos lendo o livro de um autor que crê piamente que se trata de um perdedor. Sem a derrota nas eleições de 2016 (e também no Brasil em 2018), a esquerda progressista jamais precisaria reaprender e reajustar suas múltiplas visões de mundo que, no fundo, surgem da raiz da superação da filosofia em um sistema pleno e acabado.
Porém, como esse mesmo sistema é absorvido em uma cultura que, aparentemente, se fundamenta no improvável sucesso de qualquer empreendimento humano, é evidente que essa tensão só será cada vez mais acentuada conforme o intelectual de esquerda se aprofundar na experiência do fracasso. E é por causa disso que temos o crescimento exponencial da força do pensamento esquerdista, possibilitando o seu retorno – ou a sua ressurreição definitiva – quando menos se espera.
Melancolia de esquerda
É esta mesma experiência do fracasso que motiva o sociólogo italiano Enzo Traverso a escrever ‘Melancolia de Esquerda’, um livro que faz um interessante complemento às angústias imediatas de Mark Lilla. Seu foco não é analisar o imaginário tanto da esquerda progressista como da esquerda radical em seus aspectos puramente topográficos (ou seja, os partidos à esquerda na arena política e institucional em contraposição aos partidos da direita), “conforme o ponto de vista convencional da ciência política, mas sobretudo em termos ontológicos: os movimentos que lutaram para mudar o mundo ao colocar o princípio da igualdade no centro de sua agenda. Sua cultura é heterogênea e aberta, na medida em que inclui não só diferentes correntes políticas, mas também uma pluralidade de tendências estéticas e intelectuais”.
As palavras de Traverso tentam fazer uma autodefinição elogiosa do que é ser de esquerda, por meio do uso retórico de termos como “heterogêneo” e “aberto”, mas logo depois elas se traem ao afirmarem que o marxismo se tornou “a expressão dominante dos movimentos mais revolucionários no século XX”. Claramente, há uma contradição aqui: como uma expressão dominante pode ter uma cultura “heterogênea e aberta”?
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Contudo, aí está, sem dúvida, a sua essência ontológica, articulada precisamente na “11ª tese de Feuerbach”, escrita por Karl Marx – a de que “os filósofos se limitavam a interpretar o mundo. Cabe-lhes agora transformá-lo” –, na qual, por causa do inevitável fracasso inerente à empreitada, cria-se assim a famosa “melancolia de esquerda”. Segundo a conceituação de Traverso, ela seria “um enorme e prismático continente feito de conquistas e derrotas, enquanto a melancolia [em geral] é um sentimento, um estado de ânimo, um emaranhado de emoções” e que, para decifrá-la corretamente, o pesquisador precisaria “necessariamente ir além de ideias e conceitos”.
Assim, estamos no mesmo território descrito por Mark Lilla – o da “educação do imaginário”. Mas há um elemento que Traverso acrescenta na discussão sobre o impasse da esquerda: o do tempo. Para que ela tenha a sua redefinição plena, precisa-se aceitar que faz parte de uma “tradição” que, ironicamente, vai contra todas as outras tradições as quais não consigam dialogar com este “enorme continente”.
Por isso, a característica básica da melancolia de esquerda é que ela “não significa retirar-se para um universo fechado de sofrimento e lembrança; trata-se mais de uma constelação de emoções e sentimentos que envolvem uma transição histórica, a única maneira que a busca por novas ideias e projetos pode coexistir com o pesar e o luto após o fim das experiências revolucionárias. Nem regressiva nem impotente, é a melancolia de uma esquerda que não foge do fardo do passado.
É a melancolia de uma esquerda que, mesmo aberta às lutas no presente, não foge à autocrítica em relação a seus fracassos do passado; que não se resigna à ordem mundial estabelecida pelo neoliberalismo, mas não pode renovar seu arsenal crítico sem antes se identificar e se irmanar com os derrotados da história, uma multidão à qual fatalmente se juntou, ao final do século XX, uma geração inteira – ou o que dela restou – de esquerdistas derrotados. No entanto, para que essa melancolia seja fecunda, ela precisa se tornar reconhecível, após ter sido excluída nas últimas décadas, quando tomar o céu de assalto parecia ser a melhor forma de demonstrar o luto pelos camaradas que pereceram em combate”.
A metáfora do “tomar o céu de assalto” faz parte da essência prometeica da esquerda, da sua constante revolta não só contra os fundamentos metafísicos da realidade, mas sobretudo contra a própria realidade. Não à toa, a esquerda precisa transfigurar o fluxo implacável do tempo, por meio de uma permanente reelaboração do passado, sempre tendo como meta a alteração efetiva do futuro (que ninguém sabe se se tornará algo concreto), e também por meio da criação de um papel dramático fundamental nesta performance: o da vítima.
Esta obsessão é o ponto de contato entre dois fatores que, somados a um terceiro – o eterno eclipse das utopias – molda o fluxo do tempo de tal maneira que passa a ser “inevitável” viver em um “mundo sem utopias”, onde a única coisa a se fazer é “olhar para trás”.
Traverso explica que esses dois fatores que surgem, em primeiro lugar, com “a emergência da memória no espaço público das sociedades ocidentais [que] é consequência dessa mudança. Entramos no século XXI sem nenhuma revolução, sem a tomada da Bastilha ou do Palácio de Inverno, mas tivemos um choque, um horrendo ersatz no Onze de Setembro, com os ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono, disseminando o horror, não a esperança. Desprovido de seu horizonte de expectativa, o século XX nos aparece em retrospecto como um período de guerras e genocídios.
Uma figura outrora discreta e modesta agora está sob os holofotes: a vítima. Na maioria das vezes de forma anônima e silenciosa, as vítimas invadem o pódio e dominam nossa visão da história. Graças à influência e à qualidade de suas obras literárias, as vítimas dos campos de concentração nazistas e dos gulags stalinistas se transformaram nos grandes ícones deste século de vítimas”.
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Em segundo lugar, temos com a vitimização coletiva da esquerda – que julga se equiparar às tremendas perdas ocorridas com o gênero humano durante as revoluções comunistas e as duas guerras mundiais – uma deformação da passagem do tempo, que ocorre de tal maneira que a memória, segundo Traverso, se transforma em um “amontoado de ruínas que cresce até o céu”, onde não existe mais um “tempo-agora” o qual ressoa no passado para enfim “realizar as esperanças dos derrotados e garantir sua redenção”. A partir deste espectro do “tempo-agora”, “a memória do gulag apagou a da revolução; a memória do Holocausto suplantou a do antifascismo; a memória da escravidão eclipsou a do anticolonialismo: a recordação das vítimas parece não poder coexistir com a lembrança de suas esperanças, de suas lutas passadas, de suas conquistas e derrotas”.
Desse modo, a esquerda em geral sempre se vê como se estivesse imersa em uma longa “meia-noite do século” – e os esquerdistas, por não desejarem ser vistos pelo prisma dessa palavra grotesca em termos intelectuais – vítima –, começam a se autodenominarem “exilados”. Quando um deles toma o papel de historiador – como aconteceu, por exemplo, com o célebre Eric Hobsbawn –, logo
“se encontra dividido entre dois mundos: aquele em que vive e aquele que tenta explorar. Isso porque, apesar de seus esforços para ter acesso ao universo mental dos atores do passado, suas ferramentas analíticas e categorias hermenêuticas são formuladas em seu próprio tempo. Esse hiato temporal possibilita tanto armadilhas – em primeiro lugar, o anacronismo – quanto vantagens, uma vez que permite uma explicação retrospectiva livre das amarras culturais, políticas e também psicológicas pertencentes ao contexto em que os sujeitos da história agem. É justo desse hiato que as narrativas e representações históricas do passado se originam. A metáfora do exílio é sem sombra de dúvida frutífera – o exílio continua sendo uma das experiências mais fascinantes da história intelectual moderna –, porém, hoje é preciso que seja nuançada. Historiadores do século XX – em especial, os historiadores de esquerda que investigam a história do comunismo e da revolução – são ‘exilados’ e ‘testemunhas’, uma vez que é profundo seu envolvimento com o objeto de seus estudos. Eles não exploram um passado remoto e desconhecido, e o desafio está justo em se distanciar dos eventos recentes de seu passado, uma experiência que muitos deles viveram e que ainda lhes assombra a vida. Sua relação empática com os atores do passado corre o permanente risco de ser perturbada por inesperados momentos de ‘transferência’ – no sentido psicanalítico do termo – que extrapolam os limites do trabalho, despertando experiências e a subjetividade do pesquisador. Em outras palavras, vivemos num tempo em que os historiadores escrevem a história da memória, enquanto as sociedades civis seguem com a memória ainda viva de um passado histórico”.
Contudo, essa “história da memória” escrita pelos esquerdistas que se travestem de historiadores só pode dar certo na “educação do imaginário” das pessoas comuns se houver uma aposta tremendamente arriscada – e, ao mesmo tempo, certeira – naquilo que o grande santo comunista dos nossos tempos, Antonio Gramsci, definiu como, no processo revolucionário, a única previsão “científica”: a da luta, ocorrida sempre na tensão entre a derrota e a vitória. Este novo “sistema de conhecimento”, que refuta a episteme e prefere a ação, criaria também uma filosofia subliminar que, entre outras características, fará de tudo para negar o fato indiscutivelmente histórico de que “as revoluções sempre tendem a negar sua dimensão trágica”.
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Inspirado nas reflexões de Raymond Williams, Traverso comenta que “a realidade [das revoluções] é eminentemente trágica, feita de movimentos de massa, confrontações violentas entre forças sociais e visões de mundo que muitas vezes descambam para confrontos físicos e fatais entre seres humanos. As revoluções, porém, nunca se concebem como eventos trágicos; seus atores [e autores] sempre enfatizaram sua dimensão redentora, liberadora, emancipatória, para não dizer eletrizante e perigosa.
A visão trágica do mundo deriva de um sentimento de desespero. A tragédia surge quando não se logra vislumbrar nenhum horizonte, quando as pessoas se sentem perdidas em definitivo. [Por isso] a tragédia e as revoluções [se excluem] reciprocamente. Como visão teleológica da história, o socialismo não admitia a tragédia. Ele historicizou e ‘metabolizou’ derrotas, diminuindo ou removendo seu caráter doloroso e, por vezes, devastador. A dialética marxista da derrota se transforma numa teodiceia secular: o bem poderia ser extraído do mal; a vitória final resultaria de uma série de derrotas”.
Nesta nova teodiceia, é fundamental que se tenha uma outra maneira de perceber o fluxo do tempo para que assim se mantenha o desejo de poder prometeico de modificar a realidade. E foi justamente o que o filósofo brasileiro Paulo Eduardo Arantes fez, com sua obra incendiária, para fortalecer ainda mais a reconstrução da esquerda.
“Apocalipse político”
Em ‘O Novo Tempo do Mundo’, Arantes parece criar um manifesto ideológico daquele movimento pseudo-estudantil que resolveu tocar fogo nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro em Junho de 2013: o MPL (Movimento Passe Livre). Mas é muito mais do que isso. Trata-se de um verdadeiro tratado de como a esquerda tomará o poder quando esta expectativa finalmente se tornar uma realidade. E aqui temos um detalhe extremamente engraçado no seu propósito: Arantes alega que ajudará a realizar tal intento destruindo justamente qualquer tipo de expectativa.
Influenciado sobre as reflexões em torno da filosofia da história feitas pelo alemão Reinhart Kosseleck – especialmente no livro ‘Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos’ –, Arantes dá uma cambalhota teórica típica de quem muito estudou Hegel (mesmo que seja pelo prisma da esquerda) ao afirmar, como se fosse um credo, que o Ocidente se encontra, neste início do século XXI, em um “novo tempo do mundo”, radicalmente distinto daquela “longa duração” com a qual o fluxo histórico se desenvolvia, segundo o historiador Ferdinand Braudel – e que permitia ao estudioso a chance de contemplar os eventos com uma lentidão que o ajudava a compreender corretamente o rumo final da Civilização.
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Só que agora, segundo Arantes, não há mais nenhuma brecha para uma contemplação do mundo ou para entender a lentidão do tempo histórico. Os esquerdistas precisam dizer “adeus” à tal da longa duração de Braudel. A palavra-chave, a partir desses anos iniciais do século XXI, será “aceleração” – e o que teremos então é o deslocamento de um “horizonte de expectativa” (o conceito é de Kosseleck) enquanto parâmetro de um “tempo do mundo” (a expressão sempre foi de Braudel) para nada mais, nada menos que a súbita insurgência de uma “grande Revolução”.
É nítido que Arantes defende com fervor este “curso precipitado da História” porque, de maneira paralela, ele se regozija com o fato de que o globo terrestre inteiro se encontra em um “estado de crise permanente” – uma ideia emprestada de Giorgio Agamben –, enquanto analisa, em seu gabinete com ar-condicionado, “o abismo, que desde então não deixou de se aprofundar, entre o Espaço de Experiência e o Horizonte de Expectativa”, já que, “a certa altura do curso contemporâneo do mundo, a distância entre expectativa e experiência passou a encurtar cada vez mais e numa direção surpreendente, como se a brecha do tempo novo fosse reabsorvida, e se fechasse em nova chave, inaugurando uma nova era que se poderia denominar das expectativas decrescentes, algo ‘vivido’ em qualquer que seja o registro, alto ou baixo, e vivido em regime de urgência”, quando finalmente o próprio Arantes, com sua obra, identificará “o advento do instante histórico em que o horizonte contemporâneo do mundo começa de vez a encurtar e a turvar”.
Ora, segundo a perspectiva deste “apocalipse político” esculpida por Paulo Eduardo Arantes – e demarcada a partir da longa duração histórica que começou com a Primeira Guerra Mundial –, a data exata do novo tempo do mundo é Junho de 2013, quando o MPL resolveu encher a paciência do brasileiro médio criando manifestações de rua que, segundo esses moleques barbudos, não eram somente por causa dos “vinte centavos”, mas sim por uma causa maior.
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Pelo menos, eles foram mais diretos e sinceros nas suas intenções. O mesmo não se pode dizer de Arantes em seu tratado. Por meio do seu estilo de escrita deveras túrgido, ele afirma que, já que a “aceleração social do tempo” se tornou uma “evidência que se alastra pelo conjunto de sociedades cada vez mais antagônicas, embora governada pela fabricação de consensos, a maré punitiva [das zonas de tempo prisionais e burocráticas que transformam os cidadãos comuns em meros prisioneiros] que a acompanha se abate necessariamente sob a forma de imobilizações, daí o real sentimento de tempo morto que essa onda de choque [da diminuição de expectativas] dissemina em sua passagem”, a ser traduzido “por uma inédita e massiva experiência negativa da espera”.
Estas zonas de espera – que são tanto temporais como espaciais – criam um vácuo no qual, em uma homenagem irônica que Arantes faz a Umberto Eco, os integrados os quais estão nas elites políticos são transmutados em apocalípticos, pois passam a viver permanentemente em uma eterna sociedade de risco calculado, onde, é claro, o maldoso sistema capitalista será o responsável pela elaboração de um comércio sujo desta necessidade tão premente. O Acidente, a Queda – enfim, a Catástrofe – não passam de um grande negócio corporativo.
Para o discípulo tupiniquim de Hegel, “onde o perigo se torna uma ameaça corrente, faz sentido que ele acabe assumindo uma forma institucional, conforme vá se cristalizando e adensando a ‘política intervencionista’ exigida pelo estado de emergência a que se resume uma gestão de riscos que por sua vez se revela como uma incubadora ela mesma de novos riscos desconhecidos. A literatura especializada costuma a se referir a essas catástrofes maiores que rondam as infraestruturas críticas como crises sem inimigo, mas que nem por isso deixam de ser socialmente desestabilizadoras e sobretudo responsáveis pela ressurreição recorrente, porém sob roupagem administrativa neutra, do poder soberano como poder de definir o estado de exceção”.
Arantes amplia o conceito de Giorgio Agamben sobre o que significa o “estado de exceção”, exagerando-o, por certo, mas faz isso também porque sua intenção é mostrar aos seus militantes que não há nenhuma tragédia envolvida quando se faz uma revolução – confirmando assim a intuição desenvolvida por Enzo Traverso em Melancolia da Esquerda.
A Exceção, aqui, não passa de uma outra palavra para “êxtase”, em que “a Revolução, uma vez acionado o alarme de incêndio que a máquina infernal do capitalismo não deixa de trazer instalado no seu sistema de válvulas de escape, é a única Saída de Emergência, e por mais assombroso que pareça, pela porta estreita e altamente ambivalente da Exceção.
Há razões para essa bifurcação trágica, e elas não são banais nem filosoficamente neutras, pois a Exceção tanto anuncia a redenção quanto o fundo que uma parcela da humanidade tocou. Assim, não está excluído que a saída abra para o abismo. Ou para o círculo vicioso do colapso sem fim: basta imaginar o mundo como um único campo de refugiados de catástrofes humanitárias, ou a famigerada sociedade global finalmente alcançando seu ideal, isto é, exclusivamente composta de médicos socorristas e vítimas, sendo o capitalismo do desastre enfim apenas a última palavra nos negócios da fronteira”.
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Entre os apocalípticos e os integrados, e os apocalípticos que se metamorfosearam em integrados, Paulo Eduardo Arantes – e, por consequência, todo um espectro da esquerda radical brasileira que assume ser influenciada por seus escritos, como o MPL, o PSOL e o PC do B, além do capo di tutti capi, o PT – se apresentam como se fossem, juntos, os próprios e os mais puros cavaleiros do apocalipse.
O ambiente histórico nacional permite esse tipo de atitude; afinal, segundo Arantes, ainda estamos vivendo no clima repressivo de 1964, sem tirar, nem pôr, com a sutil diferença de que o governo social-democrata obscurantista de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva (segundo a brilhante acepção de Paulo Mercadante) apenas administrou o golpe, sufocando a população comum em uma burocracia que nos oprime sem hesitar, com a intensificação das “zonas de espera” de tal maneira que o tempo morto do novo século não tem outra meta exceto explodir em uma revolta.
Se aceitarmos essa perspectiva sem nenhum questionamento, essa revolta foi justamente o que aconteceu em Junho de 2013. E aqui Arantes começa a manobrar a linguagem como poucos – aliás, um hábito na maioria dos intelectuais de esquerda. De acordo com seu idiossincrático dicionário, quando ele resume o ímpeto de um manifestante de que “agora há reação” ou quando apropria o termo “profanação” dos textos de Agamben para defender as depredações contra bancos e monumentos públicos, os choques com a Polícia Militar e os coquetéis-molotovs sendo jogados nas pessoas que apenas transitavam normalmente nas ruas – tudo isso (e muito mais) é motivo para que a Revolução chegue à sociedade brasileira com tal impacto e assim todos admitam, sem exceção, que “depois de junho a paz será total”.
O problema é que, como sabemos, não houve qualquer espécie de paz. O que aconteceu depois das movimentações promovidas pelo MPL em Junho de 2013 foi uma reviravolta sem precedentes e de tal magnitude que, a partir deste instante do “novo tempo do mundo”, a Nova República começou a cair.
Com seu figurino a lá Carlos Drummond de Andrade e seu bigodinho pintado de preto, junto com os óculos que lhe dão a impressão de ser um Fernando Pessoa redivivo, Paulo Eduardo Arantes termina o seu tratado teratológico como se estivesse em uma das aulas públicas que deu para os jovens do MPL, ao fazer, via megafone, o seguinte comentário sobre essa “morte trágica de um jornalista” – que tinha um nome, chamava-se Santiago Andrade e faleceu por causa de um rojão atirado por dois manifestantes na parte de trás da sua cabeça no dia 10 de fevereiro de 2014 –, cujo evento foi “a gota d´água na qual nos afogaremos todos”:
“[...] Os demônios de agora – exorcizados por toda uma nova era de paz civil – abandonaram o corpo da nação para se refugiar numa outra manada de porcos, a que tomou conta das ruas de Junho, ao invés de cumprirem à risca seu destino evangélico, atirando-se de um precipício urbano qualquer para se afogar nas águas de algum jardim pantanal. Para que o exorcismo surta efeito, é preciso que o demônio diga o seu nome. Na parábola bem conhecida do Novo Testamento, o Possesso de Gerasa teria respondido: ‘Legião é o meu nome, porque somos inumeráveis’. [...] Daqui para frente, haverá muita morte acidental de um anarquista, e não será comédia. Embora sem saber se o que nos espera varrerá tudo o que foi escrito até aqui para a lata do lixo dos ornamentos filosóficos, continuemos. Não se trata de uma questão metafísica a ser disputada entre doutrinários qualificados, um diálogo platônico sobre o Uno e o Múltiplo, por exemplo, ou um capítulo da Ciência da Lógica sobre o lugar da particularidade entre o universal abstrato e as singularidades avulsas, mas não é menos verdade que o turbilhão terminológico dos dois autores incriminados nos arrasta para estas altas paragens da especulação. Por outro lado, por mais que os autores insistam que o conceito de Multidão é um conceito de classe, e que esta é determinada pela luta, ninguém acredita. Tanto melhor, no fundo a teoria não importa, no sentido de representação ou cópia conforme do mundo. Ou por outra, o que aparece aqui travestido na roupagem de um conceito teórico seria melhor descrito como expressão de uma prática antagonista de insubordinação diante de um poder soberano, a que nos habituamos chamar governo. Não importa o recheio ontológico ou sociólogo com que levamos o conceito de Multidão ao forno, o que de fato está chocando e enfurecendo é o poder coletivo exibido por muitos corpos juntos na rua, demonstrando ser o mais efetivo instrumento de oposição, e pior ainda, sem clamar por um chefe – e não só aqui, essa praga está se alastrando pelo mundo. Capaz de agir em comum sem ser governada, desafia não só o Estado que necessita agora de um povo unido em torno da pátria de chuteiras, mas igualmente os partidos que precisam da massa de eleitores-consumidores organizados por nichos de demanda, bem como os movimentos e organizações sociais cujos cadastros definham se o público-alvo fica muito arisco, e o Capital, enfim, por tudo o que se disse, somado ao zelo indispensável aos envolvidos na procura de um bem escasso chamado emprego. Pois essa legião sem nome começou a mostrar a cara em Junho. Mas por que demoníaca?”
Porque, meu caro professor, é o que a “legião” de qualquer espectro político faz: destruir, destruir e destruir – sem construir nem para o passado, muito menos para o futuro. A Revolução é trágica – e pouco importa o modo como Arantes usa e abusa da citação bíblica, o fato é que adjetivar a revolta como “demoníaca” é o mesmo que glamorizá-la como se fosse algo essencial para a sociedade – um comportamento que foi posteriormente seguido por outros luminares da esquerda, como os notáveis Eduardo Viveiros de Castro e João Cézar de Castro Rocha.
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Na verdade, estamos falando de assassinato, puro e simples, sem eufemismos ou metáforas. E Arantes ameniza exatamente isso, sob o nome de “profanação” ou “reação”. A nossa sorte é que ninguém tem controle do processo histórico e, portanto, não fomos obrigados a suportar o que aconteceria se houvesse realmente a revolta prevista pelo exegeta do “novo tempo do mundo”. Contudo, a experiência do fracasso é o que motiva e sustenta este tipo de pensamento da esquerda. E é o suficiente para ela renascer das cinzas, já que, dentro do seu próprio empreendimento especulativo, encontra-se a semente da derrota da qual surge a mais pura melancolia.
Êxtase da destruição
Este é o sentimento que Ruy Fausto tenta explicar para si mesmo ao escrever o livro que serviu como uma resposta aparentemente equilibrada ao tratado hiper-apocalíptico de Paulo Eduardo Arantes – ‘O Ciclo do Totalitarismo’. A sua verdadeira pergunta, entretanto, é talvez mais pessoal, já que Fausto não consegue se libertar dos seus grilhões marxistas e não consegue escapar da “sedução diabólica” que ainda emana das páginas de Karl Marx: Por que o Comunismo fracassou? E mais: Como uma ideologia que deveria fazer somente o bem se deixou corromper, até se tornar mais uma variante do totalitarismo?
Em primeiro lugar, temos de saber qual é o conceito de totalitarismo usado por Ruy Fausto. Para ele, existem dois tipos deste fenômeno político – o da esquerda (que ele chama de “totalitarismo igualitarista”) e o da direita (cujo bode expiatório sempre é o nazismo e cuja versão mais recente, de acordo com essa classificação, também pode ser o fundamentalismo islâmico). Fausto afirma que, por causa dos acontecimentos trágicos do século XX, “nos deparamos com uma realidade que tem de ser repensada”.
Para isso, faz um malabarismo técnico tão virtuosístico quanto o de Paulo Eduardo Arantes, ao explicar que o “ciclo” do título consiste em analisar o fato de que “os poderes comunistas – o russo, por exemplo – começam com formas que são autoritárias (pré-totalitárias, se se quiser) e depois evoluem (involuem) para formas totalitárias. Essas formas, por sua vez, envelhecem ou se rompem e dão origem a um pós-totalitarismo que tem alguma coisa em comum com o pré-totalitarismo (ou autoritarismo) de que partiu. [...] Há também um [outro] ciclo no sentido de que se parte de sociedades se não capitalistas, pelo menos com presença capitalista (as sociedades russa e chinesa do ancien régime), e se volta ao capitalismo, agora pleno ou suficientemente desenvolvido”.
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Reparem em um detalhe desse sinuoso raciocínio: o grande problema, para Fausto, não são os mais de 100 milhões de mortos que ambos os totalitarismos provocaram, mas sim se o autoritarismo ou o totalitarismo dessas sociedades aceitaram ou recusaram o tão famigerado sistema capitalista.
É o reino da abstração em seu esplendor. Não adianta nada afirmar logo depois que sua intenção é delimitar uma autocrítica para a esquerda, assim como não adianta nada escrever em seguida que
“se examinarmos os partidos de esquerda dominantes no cenário brasileiro de hoje, creio que lá encontraremos, entre militantes e simpatizantes, três tipos de individualidades: socialistas democratas, que querem uma evolução no sentido de uma radicalização não autoritária; ativistas, que, pelo contrário, continuam acreditando mais ou menos firmemente se não no totalitarismo pelo menos no pós-totalitarismo autoritário (em particular, que comungam com um poder do tipo do dos irmãos Castro); e, finalmente, oportunistas e carreiristas de toda sorte. É a segunda categoria a que mais nos interessa aqui, mas as observações podem servir de uma forma mais geral. A primeira coisa a ressaltar é a ignorância por parte dessa massa de membros ou simpatizantes de partidos da melhor literatura política, aquela que é indispensável para quem quiser entender a nossa época, incluindo os cem anos que nos precederam. É impressionante como grande parte da literatura crítica internacional de esquerda, como da literatura que não é propriamente de esquerda, mas que é indispensável para entender o nosso mundo, fica fora do alcance do público intelectual de esquerda. Em parte, esses livros, jornais e revistas [...] não chegam ao Brasil. Quando chegam, mais precisamente quando estão traduzidos para o português, têm duas características: quem os publica não são geralmente as editoras que editam os livros considerados de esquerda (às vezes, até frequentemente, é a própria direita que se encarrega da publicação deles) e, ainda, o público de esquerda não os lê. Provavelmente, são os próprios editores simpáticos à esquerda que, conhecendo os preconceitos dominantes da esquerda, evitam publicá-los. E assim se constitui um círculo vicioso, círculo vicioso paradigmático, que não vale só para a questão das publicações. O resultado – ou isso é a causa? – é uma esquerda que não deu quase nenhum passo no sentido de repensar a fundo a questão da democracia, que continua mistificando o papel da violência, que não abandona suas ilusões com os governos ‘socialistas’ ou ‘anti-imperialistas’”.
Nada disso é válido porque não passa dos resmungos de um intelectual que, no fim, só está chateado porque a “esquerda não lê”. Tirando uma referência passageira ao “papel da violência”, Ruy Fausto não fala do principal – o fato de que o totalitarismo de esquerda matou mais seres humanos do que o totalitarismo de direita, se é que se pode fazer tal distinção no meio de tanto horror.
Pois é justamente isto o que falta no seu conceito do que seria totalitarismo: ele não consegue perceber que pouco importa pertencer a uma ideologia, a um partido, a uma seita ou a um sistema político e econômico. Importa aqui compartilhar de um mesmo tipo de imaginação, uma “imaginação totalitária” (segundo o termo de Francisco Razzo), no qual a pessoa é reduzida como se fosse um inseto, denegrindo-a em toda a sua dignidade, simplesmente porque os integrantes deste tipo de comportamento desejam nada além do que alterar completamente a natureza humana.
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O erro fatal de Ruy Fausto é o mesmo de Mark Lilla – e também é o de Enzo Traverso e Paulo Eduardo Tavares: destroem o homem em função de uma humanidade em abstrato que jamais existiu, exceto em suas mentes descoladas da realidade. O mesmo acontece com Marcos Nobre que, com seu ‘Como Nasce o Novo’, completa o ciclo iniciado por Arantes e Fausto de substituir os alicerces filosóficos da melancolia de esquerda – no caso, a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt – por uma reelaboração da ação revolucionária. Resultado da sua tese de livre-docência e uma leitura cerrada da introdução da Fenomenologia do Espírito (traduzida pelo próprio Nobre), de ninguém menos que Hegel – este demiurgo da superação da filosofia –, o livro é um dos melhores exemplos do método batizado pelo mesmo Paulo Arantes em outra publicação sua de “um departamento francês de ultramar”.
Apesar de ser impecável em termos técnicos, não há algo tão novo assim em seu argumento filosófico, como acontece com qualquer esquerdista de renome. Ele se pergunta se o prisma pelo qual o escrito de Hegel deveria ser analisado nos nossos dias – no caso, a Teoria Crítica – não estaria contaminado pelo desespero de não compreender as decisões surgidas dos impulsos produzidos na própria época em que vive um pensador. No caso de Hegel, era a Revolução Francesa, o surgimento de Napoleão e a restauração monárquica. Portanto, o que seria no caso de Nobre? As revoltas brasileiras de 2013, abertamente defendidas em ‘O Novo Tempo do Mundo’? A polarização ideológica que acontece no país desde então e que se agravou com as eleições de 2018? Ambas as opções?
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O próprio professor afirma que o impasse de aceitar a Teoria Crítica como forma de interpretar o mundo atual, especialmente por meio das obras de Alex Honneth (o mais revolucionários de todos os discípulos desta tradição reflexiva), implica numa alternativa caduca na qual as propostas da Escola de Frankfurt para a novidade surgida neste início do século XXI são demasiadamente vagas, senão ultrapassadas para orientar tanto “o pensamento como a ação transformadora”.
Que o leitor não se engane ao ler este último termo: o que Nobre quer dizer mesmo é “revolução” – feita com aquele ímpeto jacobino que mistura igualdade e oportunidade, no desconhecimento de que, hoje e sempre, fazer isso é como tentar misturar água e óleo. A única diferença entre a Teoria Crítica do passado e o surgimento do novo proposto pelo brasileiro é que, se antes a igualdade podia ser conquistada com a subversão das instituições do Estado, agora o êxtase da destruição deve ser completo e irreversível, desde que, claro, um bom professor universitário seja o Paráclito espiritual.
O novo tempo do mundo nunca terminou
O problema é que, em ‘Como Nasce o Novo’, não se sabe se Marcos Nobre quer ou não interpretar o mesmo papel pretendido por Paulo Eduardo Arantes – afinal de contas, a perfeição técnica do seu raciocínio impede tal decisão que, na prática, seria realmente desesperadora (para ele e para todos nós).
É uma contradição intrínseca para quem pensa nos moldes da Teoria Crítica, na qual a busca por uma “razão comunicativa” (o termo favorito de Jürgen Habermas, um dos representantes supostamente equilibrados desta esquerda que sempre precisa se reconstruir) que amenize os problemas do mundo é, no fundo, segundo o diagnóstico preciso de Roger Scruton em ‘Tolos, Fraudes e Militantes’, uma “necessidade religiosa plantada profundamente em nosso ser genérico”, um “desejo por pertencimento que nenhuma quantidade de pensamento racional, nenhuma prova de absoluta solidão da humanidade ou da natureza irredimível de nossos sentimentos pode erradicar”.
Eis aqui o verdadeiro impasse da esquerda: se continuar nesse caminho obviamente auto-destrutivo, sobram-lhe duas opções. A primeira é a que foi sugerida por Lilla – recuperar o seu prestígio por meio de uma “educação do imaginário” que permita o acesso democrático em cargos governamentais, talvez para promulgar o aborto do ser humano como lei suprema; e a que foi elaborada minuciosamente por Arantes e Nobre – ou seja, a violência transfigurada, pondo em risco a sociedade brasileira.
No fundo, ambas são trágicas, porque elas são suficientemente maliciosas para mudar o eixo do conhecimento humano, permitindo que o poder se sobreponha à verdade, como se esta não fosse mais importante na busca filosófica. E, ao fazer isto no nosso meio cultural, a esquerda não apenas ganha todas as batalhas; ela ganha a guerra contra aquilo que deveria ser o nosso bem mais precioso: o espírito.
Por alguma ironia do destino, foi Theodor Adorno quem registrou a encruzilhada trágica da filosofia – e das suas variantes, como a poesia e a política – em um mundo onde ela não sabe mais como superar tal aporia. No último micro-ensaio de ‘Minima Moralia’, sua obra-prima publicada em 1951, após a desgraça que foi a Segunda Guerra Mundial, ele escreve que “a filosofia, segundo a única maneira pela qual ela ainda pode ser assumida responsavelmente em face do desespero, seria a tentativa de considerar todas as coisas tais como elas se apresentariam a partir de si mesmas do ponto de vista da redenção”.
O xis da questão é que, em uma sociedade democrática onde cada decisão política não consegue mais alcançar o Bem Comum, fica evidente que não há mais essa possibilidade de salvação, se ela ficar dependente do puro valor do intelecto. A consequência direta disso é que, como argumenta Benedito Nunes, a vinculação completa da filosofia com aquilo que Marx chamava de “desalienação do homem”, em conjunto com a abolição da propriedade privada (a raiz de todos os males, de acordo com a esquerda que se recusa a lidar com sua melancolia), implicaria, sobretudo, em uma “conversão ontológica”, na qual existiríamos em uma “existência redimida e sem Mal, que tem na reciprocidade sem conflitos uma espécie de nova riqueza coletiva”, diluindo os “problemas filosóficos” antes resolvidos somente na “intimidade do pensamento”.
A redenção, na filosofia segundo a perspectiva deformada da esquerda, só acontecerá se o espírito da primeira for trucidada pelo antiespírito da segunda. É o poder em seu estágio mais cru, naquela política em que a verdade fica em segundo plano, conforme sugeriu Mark Lilla na epígrafe que abre este ensaio. Nem Adorno ousou isso. Ele ainda tinha algum respeito pelo eros filosófico, ao declarar que “quanto maior é a paixão com que o pensamento se fecha contra seu condicionamento por amor ao incondicionado, tanto mais inconsciente, e por isso mais fatal, é o modo pelo qual ele fica entregue ao mundo. Até mesmo sua própria impossibilidade tem que ser por ele compreendida, a bem da possibilidade. Mas, diante da exigência que a ele se coloca, a própria pergunta pela realidade ou irrealidade da redenção é quase que indiferente”.
É a consciência aguda desta indiferença que fará a esquerda sair do seu impasse atual. Portanto, para quem ainda grita aos quatro ventos que a direita venceu, por causa das eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro, saiba que o novo tempo do mundo nunca terminou. Na verdade, graças ao fato de que não há mais a redenção ou a superação da filosofia, capaz de nos orientar nas águas turvas (e trágicas) da política, ele está apenas começando.
Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pesquisador pela FGV-EAESP.
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