O presidente Donald Trump e Omarosa Manigault Newman, autora de livro que faz várias denúncias ao presidente, em foto de 2016| Foto: Reprodução/ Facebook/ OfficialOmarosa

Uma ex-diretora de comunicação Casa Branca acaba de lançar um livro que revela bastidores e faz diversas acusações à administração Trump. Omarosa Manigault Newman também foi participante do programa de TV “O Aprendiz”, apresentado por Donald Trump, e garante que o presidente usou a ofensa racial “nigger” diversas vezes durante o programa, e que isso teria sido gravado. No seu livro “Unhinged: An Insider's Account of the Trump White House” (Descontrolado: Um relato de dentro da Casa Branca de Trump), Omarosa diz que ela mesma não tem a suposta gravação, mas que o motivo da sua demissão da Casa Branca foi ter chegado muito perto de conseguir encontrar a fita. 

CARREGANDO :)

A repercussão à acusação foi grande entre os americanos, já que o termo é a pior ofensa racista no país. 

O dicionário de inglês Merriam-Webster diz que a palavra “nigger” é quase certamente o “insulto racial mais ofensivo e inflamatório da língua inglesa, um termo que exprime ódio e intolerância. Seus usos autorreferenciais por e entre pessoas negras nem sempre têm a intenção ou são tomados como ofensivos (embora muitos se oponham a esses usos também), mas seu uso por uma pessoa que não é negra para se referir a uma pessoa negra só pode ser considerado como uma expressão deliberada de racismo pejorativo”, diz a discussão sobre o uso do termo no dicionário. 

Publicidade

Existe alguma expressão no português brasileiro que tenha poder ofensivo equivalente ao desse insulto racial, que nos Estados Unidos normalmente é chamado de “palavra com N”? Ou seja, há na Língua Portuguesa uma expressão cujo uso por determinados grupos seja inaceitável, não importando o contexto? Certamente, o nosso idioma contém diversas palavras ofensivas, desrespeitosas, e que se transformam e ganham novos significados com o tempo. Mas não temos um caso semelhante no Brasil, na opinião de Bruno Dallari, professor do Departamento de Linguística da UFPR, porque aqui não tivemos um longo período de segregação racial oficial, como nos Estados Unidos. 

“Esses termos depreciativos para os negros faziam parte de uma conduta aceitável [durante a segregação racial]. Por isso, foi importante que eles deixassem de ser usados”, disse Dallari. 

A segregação racial nos Estados Unidos envolveu décadas de separação física de lugares e atividades para negros e brancos.

Para o professor, a questão tem a ver com o estigma presente na sociedade americana, que não teria equivalente no Brasil. “Usar esse termo lá é como se você estivesse recuperando esse ponto de vista de alguém que acha que a segregação racial é aceitável”, comparou. 

Já no Brasil, termos envolvidos em tabu existem, mas estariam restritos a alguns locais, e não presentes em todo o território nacional. “Não é difícil que existam esses termos, mas em contextos circunscritos. Ou seja, não em contexto geral do país, mas em alguns ambientes específicos que tenham termos tabu”, disse Dallari. 

Publicidade

Leia também: Boticário é criticado por comercial com família negra e caso retoma pergunta: existe racismo reverso?

Variação

No artigo “A palavra com N: Sua história e uso na comunidade afro-americana” (em tradução livre), publicado em 2012 no Journal of English Linguistics, a professora de Linguística Jacquelyn Rahman afirma que apesar do banimento social do uso das formas de nigger, uma variante ainda encontra aceitação entre alguns membros da comunidade afro-americana para fazer referência a membros do grupo. O termo “nigga”, comum em letras de rap e hip hop, “permite ao falante construir uma identidade que representa a consciência da história dos afro-americanos”, afirma o artigo. Rahman afirma que essa variação do termo tem a capacidade de transmitir conceitos que incluem solidariedade, censura e uma postura proativa de buscar mudanças positivas. 

Embora seja mais usada, a variação “nigga” também não é livre de controvérsia. O rapper branco Eminem, por exemplo, supostamente nunca usa o termo. Em um de seus shows, o rapper Kendrick Lamar chamou uma fã branca ao palco para cantar uma música cuja letra incluía a palavra “nigga”. Quando a fã chegou a essa parte da letra, ela foi vaiada pela plateia. O cantor interrompeu e pediu a ela que parasse de cantar a palavra. 

Há quem argumente que, uma vez que a própria comunidade afro-americana tenha passado a usar o termo, ele não poderia mais ser considerado como uma ofensa racista. No entanto, a mudança da palavra original para “nigga” pelos afro-americanos faz diferença, na opinião de Monique Amaral de Freitas, doutoranda em Linguística pela USP.

“A diferença parece sutil, mas tem a ver com algo muito maior. A queda do “r” final e a alteração de sua forma final para o “schwa” (som que não temos na língua portuguesa) diz respeito ao sistema fonológico do Inglês Afro-americano, que seria um modo característico de falar dos afro-americanos e alvo de diversas pesquisas. Usado nesse contexto e por esses sujeitos, o termo ganha o sentido de aliança e cumplicidade e faz referências, dentre outras coisas, aos antepassados que resistiram ao racismo”. 

Publicidade

Origem e contexto 

Alguns estudos dizem que a palavra “nigger” teria sua origem no latim (niger/nigra/nigrum). “[A palavra] teria surgido como uma forma de pessoas brancas se referirem aos povos capturados no período da escravidão, essencialmente advindos do continente africano e de comunidades indígenas nativas das Américas”, conta Monique. 

A doutoranda considera importantes as discussões etimológicas, mas afirma que não existe valor essencial e intrínseco a nenhuma palavra, e que os sentidos possíveis na língua estão no contexto do uso. 

“O contexto, por sua vez, diz respeito às relações sociais existentes em cada sociedade. Dessa forma, o sentido que determinada palavra carrega depende das relações entre os indivíduos envolvidos na situação de comunicação, o propósito da fala em questão e os aspectos históricos e sociais que situam o uso daquela palavra dentro daquela sociedade.” 

Para Dallari, o que vale é o sentido atual das palavras. “É muito forçado e artificial tentar recuperar a história de um termo e considerar esse sentido original como se fosse o atual”, opinou. Nesse raciocínio, o professor discorda de argumentos que consideram politicamente incorretos alguns termos que eram ofensivos na sua origem, mas passaram a ser usados sem a intenção de ofender. 

Leia também: Simpsons é xenófobo, Shakespeare machista e Monteiro Lobato racista? É justo julgá-los pela visão atual?

Publicidade

“Essa é uma coisa dessa época. Essa hipersensibilidade, em certo sentido, desvia o assunto das coisas realmente importantes e fica em coisas menos relevantes, que são as questões da designação”, disse Dallari. “É uma espécie de disposição de policiar, mas que no fim é muito superficial. Não há comprometimento com mudanças sociais ou melhoria. É o contrário; esse zelo excessivo com as palavras esconde a falta de zelo com as questões reais”.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]