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Marcos Degaut e Lindolpho Cademartori argumentam que já é hora de o Brasil criar sua reserva de Bitcoin, o "ouro digital".
Marcos Degaut e Lindolpho Cademartori argumentam que já é hora de o Brasil criar sua reserva de Bitcoin, o “ouro digital”.| Foto: Eli Vieira com Dall-E

O mercado global de criptomoedas tem ganhado crescente visibilidade nos últimos anos, levando à progressiva mudança de percepção de líderes mundiais e governos em relação ao Bitcoin (BTC), como ilustram dois episódios recentes. O primeiro foi o discurso de Donald Trump, em 27 de julho, na “Bitcoin Conference”, realizada em Nashville, Tennessee, maior evento público relacionado à commodity. Na ocasião, o ex-presidente dos EUA anunciou que, se eleito no pleito de novembro, determinará a criação de “Reserva Nacional Estratégica de Bitcoin” (NBSR).  

O segundo episódio foi a apresentação, em 31 de julho, pela senadora Cynthia Lummis (Partido Republicano/Wyoming) de projeto de lei que estabelece critérios para a constituição da mencionada Reserva e prevê o acúmulo de um milhão de BTC pelo governo norte-americano, que deverá mantê-los entesourados por vinte anos. Os recursos para sua formação viriam da atualização dos valores contábeis das reservas de ouro dos EUA, avaliadas em aproximadamente 261,5 milhões de onças. Por força de lei federal de 1973, esse montante, cujo valor da onça era fixado em USD 42,22, corresponderia a meros USD 11,2 bilhões. Entretanto, como a onça troy é atualmente comercializada por cerca de US$ 2.500,00, a reavaliação contábil resultaria em majoração das reservas auríferas norte-americanas para US$ 653,7 bilhões. A diferença de valores, equivalente a algo da ordem de US$ 642,5 bilhões, seria utilizada para a aquisição dos BTC a serem entesourados. A proposta de Lummis, no entanto, demanda modificações significativas na legislação financeira norte-americana.

O governo dos EUA já é a entidade soberana detentora das maiores reservas de BTC no mundo, aproximadamente 210 mil unidades, ou 1% de todo o estoque da commodity, que, consoante seu protocolo virtualmente imutável, não ultrapassará 21 milhões de unidades. Existem, atualmente, cerca de 19,75 milhões de BTC em circulação; o último satoshi, subunidade do BTC – cada Bitcoin é integrado por 100 milhões de satoshis –, será emitido apenas em 2140. Os BTC em posse do governo norte-americano, assim como os detidos por seus homólogos chinês (190 mil BTC) e britânico (61,2 mil BTC), provêm de confiscos de indivíduos e empresas envolvidos em atividades ilegais, e até recentemente o procedimento padrão seguido pelos países era o de vender as unidades confiscadas. Isso mudou. O último governo que assim procedeu foi o da Alemanha, que em julho passado liquidou cerca de 50 mil BTC. Já os governos da Ucrânia (46.350 BTC) e de El Salvador (5.800 BTC) compuseram suas reservas, respectivamente, por meio de doações externas no contexto do conflito com a Rússia e acumulação deliberada por autoridades estatais. Não há informações públicas sobre a quantidade de BTC detida pelo Estado brasileiro, embora o país seja um dos que mais possuem essa criptomoeda em mão de particulares, juntamente com Índia, Nigéria, Singapura, EUA, Rússia e China.

Caso Donald Trump seja eleito e seu governo endosse o projeto da senadora Lummis, sua conversão em lei poderá, à luz da preeminência econômica norte-americana e de sua preponderância no sistema financeiro global, ensejar debates similares em outros países acerca da formação de reservas estratégicas de BTC. Ao Brasil, deveria interessar iniciar tal debate tão logo quanto possível, a fim de que o país possa constituir reserva estratégica de BTC antes de eventual instalação de cenário de baixa disponibilidade da commodity (cuja oferta é inelástica) no mercado, sobretudo considerando-se que nossas reservas em ouro são extremamente baixas, cerca de 130 toneladas. Para efeitos de comparação, as reservas em ouro dos EUA são de 8.133 toneladas e as da Alemanha, França, Itália, Rússia, China e Suíça são de 3.351, 2.452, 2.437, 2.336, 2.264 e 1.040 toneladas, respectivamente. Uma fonte de recursos para a constituição da Reserva Estratégica Brasileira poderia ser o Fundo Social do Pré-Sal, a partir da destinação de parte de seus aportes para a aquisição de BTC, se realizadas as modificações legais correspondentes.

Essa futura Reserva Estratégica de Bitcoin poderia também se beneficiar de iniciativas favoráveis à mineração de larga escala da commodity no Brasil. Conquanto 89% da geração elétrica do país já provenham de fontes renováveis, a criação de arcabouço legal que remova entraves burocráticos e tributários de “fazendas” de mineração de BTC viabilizaria projetos de geração elétrica a partir de fontes energéticas renováveis, sobretudo em regiões que atualmente não reúnem condições de exequibilidade econômica para iniciativas dessa natureza, assim contribuindo para aumentar a participação de energias renováveis na matriz elétrica brasileira. Isso ocorreria em razão da possibilidade de contratação, por mineradores de BTC, da carga excedente (que seria desperdiçada se não fosse utilizada pelas fazendas de mineração), a custo viável tanto para os geradores quanto para os próprios mineradores. Tal dinâmica concorreria para mitigar a volatilidade de fluxos de caixa de projetos de geração renovável, de modo a reduzir o custo do capital e, consequentemente, melhorar os termos de financiamento de tais empreitadas. A mineração de BTC pode, portanto, tornar-se um importante catalisador da promoção do desenvolvimento sustentável no Brasil, principalmente em regiões tradicionalmente deprimidas economicamente.

Independentemente da trajetória a ser adotada pelos decisores brasileiros, é fundamental se ter presente que, em razão de sua descentralização, natureza apolítica, caráter deflacionário, portabilidade, liquidez e virtual imutabilidade do protocolo, dentre outras características, o Bitcoin reúne elementos para se tornar uma classe de ativo de importância crescente nos próximos anos e décadas. Desde sua criação, em 2009, o BTC explodiu em popularidade e já vale mais de US$ 1,1 trilhão. Sua utilização, entretanto, não é desprovida de controvérsias. Para uns, é um eficiente mecanismo de investimentos e seguro contra inflação. Para outros, sua relativa desregulamentação pode favorecer atividades criminosas. De qualquer forma, trata-se de tema que demanda a atenção das autoridades competentes, em um cenário de debate incipiente no Brasil, em contraposição aos principais mercados globais. Nesse particular, é importante ressaltar que diversas instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial, o Banco Europeu de Investimentos e o Banco Asiático de Infraestrutura e Desenvolvimento já têm adotado diversas iniciativas para integrar a tecnologia blockchain nos mercados financeiros tradicionais, inclusive com emissão de títulos.

O ingresso de investidores institucionais no mercado, viabilizado pela aprovação, em janeiro deste ano, de fundos de índice cotados (ETFs) pela Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (SEC), e a expectativa de “corrida de acumulação” por Estados soberanos, poderão perfazer ponto de inflexão para a integração definitiva de BTC ao sistema financeiro global, com evidentes impactos para a estabilidade macroeconômica e financeira dos países, sobretudo em mercados emergentes e carentes de investimentos internacionais. O Brasil não pode se dar ao luxo de ser mero espectador distante nesse processo. 

Marcos Degaut, cientista político, é doutor em segurança internacional e pesquisador sênior na University of Central Florida (EUA); ex-Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa e ex-Secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

Lindolpho Cademartori, diplomata de carreira, é mestre em diplomacia pelo Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Suas opiniões são estritamente pessoais e não necessariamente refletem as do MRE.

Conteúdo editado por:Eli Vieira
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