As polêmicas relações do atual governo americano com representantes russos continuam rendendo novos capítulos. O escândalo mais recente ganhou força após a revelação de que Donald Trump Jr., filho do presidente, havia realmente se encontrado com representantes de Moscou em junho de 2016 – em meio à corrida para a Casa Branca. É mais um caso de encontro entre russos e americanos que havia sido inicialmente negado pelo governo Trump, mas acabou sendo admitido após o surgimento de evidências irrefutáveis.
Atualmente, as ações do presidente dos EUA e as possíveis colaborações ilícitas de seu governo com a Rússia estão sendo investigadas pelo procurador especial independente Robert Mueller, que foi diretor do FBI entre 2001 e 2013. Sua postura discreta e silenciosa é vista com apreensão pela Casa Branca – designado há mais de dois meses para o cargo, Mueller ainda não se pronunciou sequer uma vez sobre a questão. Se Mueller constatar novas irregularidades em um governo que já sofre com baixos índices de aprovação, pode ser o empurrão necessário para os pedidos de impeachment ganharem substância em um Congresso onde a maioria governista ainda sustenta Trump.
Afinal, qual a dimensão da crise política enfrentada por Donald Trump, e o que a Rússia tem a ver com isso?
Afinal, o que aconteceu de fato?
O episódio mais recente é a reunião liderada por Donald Trump Jr. em junho de 2016, na Trump Tower, em Nova York. O encontro foi marcado após uma série de e-mails entre o filho do atual presidente e o produtor musical Rob Goldstone, que alegava ter informações capazes de minar a campanha de Hillary Clinton – material que seria oferecido, segundo Goldstone, “como parte do apoio da Rússia e seu governo ao Sr. Trump”.
A existência da reunião foi negada por muito tempo pelo entorno de Trump, mas uma reportagem do New York Times no último dia 8 de julho revelou que o encontro realmente havia acontecido. Desde então, os nomes de novos envolvidos na conversa têm vindo à tona, e os e-mails que levaram ao agendamento da reunião acabaram sendo divulgados pelo próprio Trump Jr. Não há provas, por enquanto, de que as supostas informações contra Hillary chegaram a ser recebidas pela equipe do candidato republicano.
Os e-mails de Donald Trump Jr. são comprometedores?
Do ponto de vista ético, sim, mas não em termos legais (ver abaixo). O filho do presidente demonstra claro interesse em informações que pudessem incriminar Hillary Clinton e prejudicar sua campanha – e, mais do que isso, interessa-se por material obtido através de uma potência estrangeira e historicamente hostil aos Estados Unidos. Críticos do governo americano afirmam que o mero conhecimento disso deveria ser razão suficiente para procurar o FBI, e não para marcar uma conversa às escondidas com os russos, que poderia ser considerada um conluio. Em vez de recorrer às autoridades, Trump Jr. respondeu entusiasmado em questão de minutos e afirmou “se é o que você diz, eu amo isso”. O encontro foi marcado para poucos dias depois.
Mesmo assim, os e-mails não chegam a garantir qualquer culpabilidade perante a Justiça, e o próprio Trump Jr. fez questão de divulgar publicamente as mensagens que trocou na época, garantindo sua inocência. Segundo o filho do presidente, o encontro “foram 20 minutos perdidos”.
Houve conluio?
“Collusion” (conluio, colusão) é a palavra do momento no noticiário norte-americano. Envolvidos no caso negam a existência de um conluio entre eles próprios, apoiadores de Trump, e os russos. Democratas não perdem a chance de dizer que, sim, existiu “collusion” nesse caso. A verdade é que ninguém tem uma resposta definitiva: pelo que se sabe até o momento, parece ter havido disposição de Trump Jr. e outras pessoas ligadas ao então candidato por ouvir o que os russos tinham a oferecer – e um dos motivos principais para a reunião acontecer era a busca por informações danosas a Hillary Clinton.
Ainda não se descobriu, porém, qualquer indício de que esse diálogo em particular efetivamente tenha rendido algum material utilizado pelos Trump para vencer as eleições. Os envolvidos no caso garantem que a conversa com os russos foi uma perda de tempo e que, embora as informações contra Hillary tenham sido oferecidas como atrativo para iniciar as conversas, esse material jamais chegou às mãos de ninguém próximo à campanha de Trump. Ainda não se sabe, porém, se houve outras reuniões posteriores para discutir o tema.
Se houve conluio, isso é ilegal?
Nesse ponto, os analistas são unânimes: não . Mesmo que as razões para a reunião sejam eticamente questionáveis, principalmente por envolver membros de uma potência estrangeira, a colusão, por si só, não quebra lei alguma. “Mera colusão não é crime”, argumentou o ex-procurador federal Andrew C. McCarthy. “Não é um crime entrar em conluio com um governo estrangeiro, mesmo que hostil, se o objetivo é aceitar informação durante uma pesquisa sobre a oposição”.
Para Ed Rogers, ex-assessor das administrações Reagan e Bush (pai), “se Trump Jr. é culpado de alguma coisa, é ter deixado alguém com tão pouca credibilidade (como Rob Goldstone) ter livre acesso à sua agenda”. Veterano da Casa Branca, Rogers vaticinou em texto ao Washington Post: “algo pode ser errado e [mesmo assim] não ser ilegal”.
Novamente, a questão fica pendente de eventuais provas: o conluio, por si só, não é um crime – mas uma reunião como essa poderia levar a um acordo pela realização de práticas criminosas. Nesse caso, a situação mudaria de figura e os especialistas se dividem: a irregularidade da conversa seria questão a ser resolvida pela Suprema Corte.
Houve outras reuniões entre pessoas ligadas a Trump e representantes russos?
Sim, e este é um dos pontos em que Donald Trump tem sido mais inconsistente. Desde antes das eleições, o atual presidente se tornou notório por tecer comentários elogiosos a Vladimir Putin – de uma forma que poucos políticos americanos haviam ousado até então –, mas negava veementemente que algum membro de sua administração tivesse se reunido em segredo com emissários russos. Pouco a pouco, esse argumento foi sendo desmantelado: cada vez mais encontros foram sendo revelados pela imprensa, e depois confirmados pelos envolvidos, gerando dúvidas sobre o que teria sido discutido nessas conversas, bem como a verdadeira razão de a Casa Branca ter omitido a existência delas.
Secretos ou públicos, houve diferentes momentos em que Trump e os russos mostraram estar politicamente afinados: antes mesmo da campanha, agora se sabe, na reunião de junho de 2016 envolvendo o filho do presidente; durante as eleições, quando Trump repetidas vezes fez menções aos hackers russos e ao que eles teriam a revelar sobre Hillary Clinton; e, finalmente, na época da troca de governos, quando o assessor Jared Kushner (genro de Trump) e o (agora demitido) conselheiro de segurança nacional Michael Flynn teriam seguido em contato com agentes russos em segredo.
O próprio Donald Trump teve uma reunião inicialmente negada pela Casa Branca e, posteriormente, confirmada por outras fontes: no último encontro do G20, em Hamburgo, ele voltou a se encontrar com Vladimir Putin, após a conversa oficial. O governo americano garantiu não ter se tratado de uma reunião propriamente dita, mas de um diálogo informal, algo que foi desmentido por outros presentes no evento: Trump e Putin teriam passado cerca de uma hora conversando e, numa quebra dos protocolos de segurança, o diálogo só foi intermediado pelo tradutor russo – sem a presença de um representante de Washington. Antes disso, em maio, Trump já havia revelado informações confidenciais de Inteligência ao embaixador russo em um encontro na Casa Branca.
Ian Bremmer, presidente da firma de consultoria Eurasia Group, que testemunhou a cena, afirmou: “é muito claro que a melhor relação de Trump no G20 era com Putin. Os aliados dos EUA estavam surpresos e desalentados: todos esses aliados em uma sala e com quem Trump decide passar o tempo?”. A pergunta, ainda sem resposta, feita pelos opositores do presidente: se nada de errado acontece nessas conversas, como a Casa Branca alega, por que a existência de reuniões entre membros do governo e representantes russos costuma ser negada por Trump?
A Rússia já tinha se envolvido na política americana antes disso?
Já havia tentado, mas, até onde se sabe, nunca conseguira. O Kremlin buscou influenciar eleições americanas em outros tempos, mais notavelmente durante o auge da Guerra Fria. Em 1960, a União Soviética passou orientações ao agente da KGB em Washington para que oferecesse auxílio diplomático e de propaganda para ajudar a eleger John F. Kennedy, a quem Moscou considerava mais simpático aos seus interesses – a campanha de Kennedy, porém, refutou qualquer apoio. Oito anos mais tarde, o candidato democrata Hubert Humphrey também teria recebido uma proposta parecida, e novamente recusou a ajuda externa – Humphrey acabou derrotado por Richard Nixon.
Mesmo a interferência atual é anterior a Donald Trump, o que indica que o atual presidente pode até ter se beneficiado, mas dificilmente é o mentor. Segundo testemunho do ex-diretor do FBI James Comey (demitido por Trump em maio), há evidências de hackers russos agindo desde 2015 em busca de dados que pudessem interferir nas eleições americanas, particularmente para prejudicar Hillary Clinton. Na época, Trump ainda não era o nome do Partido Republicano.
Se nos tempos da União Soviética a tentativa de apoio pendia para os democratas, a Rússia de Putin parece se inclinar a candidatos republicanos: durante a campanha eleitoral de 2016, os vazamentos prejudiciais a Hillary eram repassados pelos hackers russos ao WikiLeaks em momentos estratégicos, geralmente para desviar o foco de alguma polêmica envolvendo o então candidato Donald Trump. A razão para um apoio de Moscou a Trump seria sua maior propensão a reverter as sanções impostas pelos EUA contra a Rússia após a invasão da Crimeia, em 2014. Hillary Clinton defendia a continuidade das medidas adotadas durante o governo Barack Obama.
Donald Trump pode sofrer impeachment?
Pode, embora ainda seja improvável . Em tese, dependendo da interpretação que o Congresso der às ações de Donald Trump, o processo de impeachment já teria base para começar independentemente das relações com a Rússia – um caso frequentemente citado é a demissão do diretor do FBI, James Comey, que levava a cabo uma investigação que poderia afetar Trump; sua retirada do cargo poderia ser vista como obstrução de justiça, dando argumento para a abertura do processo.
A questão é que o afastamento de um presidente esbarra tanto no apoio político que Trump ainda possui quanto no tabu histórico em torno dessa medida: por um lado, os republicanos detêm a maioria tanto no Congresso quanto no Senado, e um presidente só é afastado com maioria parlamentar de dois terços. Por outro, em 241 anos de história republicana, os Estados Unidos discutiram o impeachment de apenas quatro presidentes (mais recentemente, de Bill Clinton), e nenhum deles chegou a ser retirado da presidência – quem passou mais perto de sofrer um afastamento foi Richard Nixon, na época do Watergate, mas ele renunciou ao cargo antes de o processo ser concluído.
No lado Democrata, os pedidos de impeachment já começaram a ser feitos, ainda com pouca força, mas se acredita que será necessário um escândalo maior para convencer os republicanos a optar pela substituição de seu próprio presidente. É por isso que as investigações de Robert Mueller são vistas com apreensão pela Casa Branca.
O presidente pode “perdoar” seus parentes (e a si mesmo)?
Numa reviravolta digna de House of Cards, um elemento novo entrou em discussão nos últimos dias: a hipótese de, caso seja constatado crime nas ações de membros do governo, Donald Trump fazer valer a prerrogativa de seu cargo e conceder um “perdão presidencial” e eximir de culpa seu filho, seus demais assessores – e até a si próprio. Isso é possível? A resposta não é tão simples: depende da situação.
Caso seja constatada a culpa de alguém no entorno de Trump, o presidente teria possibilidade de perdoá-los, mas tomar essa medida implicaria em uma nova ameaça à sua já combalida popularidade: os “perdões presidenciais” são sempre mal vistos pelo público e, por essa razão, só costumam ocorrer quando o mandatário está próximo de deixar o cargo – Trump recém concluiu o sexto mês de sua administração. Outra questão a ser considerada: se os eventuais crimes forem vistos como tendo ocorrido fora da esfera federal, eles seriam responsabilidade dos estados em que foram praticados. Neste caso, a Constituição dos EUA garante a não-interferência do governo federal, e o presidente não pode emitir perdões.
De todo modo, perdoar um assessor implicado em um eventual crime poderia trazer outras ramificações complicadoras para o presidente: uma vez perdoados, eles não podem mais ser punidos por esse crime. Isso significa que, caso venham a ser chamados a testemunhar sobre o caso, não teriam mais o direito de invocar a 5ª Emenda: comumente representada no cinema e nas séries de TV, ela garante à testemunha o direito de ficar calada para não se incriminar – no entanto, se a testemunha foi “perdoada”, o crime já foi reconhecido e seu depoimento não poderia lhe causar novos danos. Obrigados a falar para não incorrer em um novo crime (perjúrio), os assessores de Trump poderiam revelar fatos inconvenientes ao presidente.
Neste caso, Trump poderia perdoar a si mesmo? Ninguém sabe. Isso jamais aconteceu e a própria lei não prevê um caso assim. A primeira vez que essa hipótese foi discutida foi em 1974, quando Richard Nixon estava ameaçado pelo escândalo do Watergate e comentou que poderia perdoar a si mesmo. Seria uma medida com ares autoritários e, provavelmente, acabaria nas mãos da Suprema Corte definir a validade do perdão. Certo é que, mesmo que Mueller conclua que houve envolvimento do presidente em ato ilícito, Trump não pode ser julgado como um cidadão comum enquanto ocupar a presidência – antes disso, seria preciso sofrer um impeachment.
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