A direita, em especial a base de apoiadores influentes de Jair Bolsonaro, foi o principal alvo de coleta em massa de dados privados e suspensões de conteúdo e contas por parte das autoridades desde 2020, revelaram as duas edições anteriores dos Twitter Files Brasil. Porém, como mostra a análise abaixo, também a esquerda foi alvo dessas ações.
Foram potencialmente alvo de coleta de dados privados no Twitter, feita em desafio ao Marco Civil da Internet, segundo a equipe jurídica da plataforma, personalidades da esquerda como a deputada federal e pré-candidata a prefeita de São Paulo Tabata Amaral, e a ex-prefeita da cidade Luiza Erundina, entre outros. Além disso, um partido e outras personalidades de esquerda foram alvo de bloqueios ordenados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Como afirmou a Gazeta do Povo em editorial, suspensões de contas inteiras em vez de apenas o suposto conteúdo ilícito também violam o Marco Civil.
“Em que ponto traçaremos o limite?”: hashtag usada pela esquerda foi alvo de coleta em massa de dados
Como revelado nas edições anteriores, em março de 2022 Diego de Lima Gualda, que foi diretor jurídico da rede social até este mês, foi a um encontro no TSE com “o juiz” (não identificado, mas potencialmente Luís Roberto Barroso, presidente do TSE na época, ou Alexandre de Moraes, que já encabeçava diversos inquéritos), membros da Polícia Federal e do corpo técnico da corte. A saída de Gualda em abril de 2024 coincidiu com o período após as revelações dos Twitter Files Brasil e a reação de Elon Musk, com críticas a Alexandre de Moraes. A Câmara dos Deputados não conseguiu contato com um representante do X para uma audiência pública.
O TSE e o Twitter estavam ainda em uma fase de ajuste: o tribunal estava aprendendo os limites do que a rede social poderia fornecer, a plataforma estava aprendendo a atender melhor às exigências para evitar as multas estratosféricas em caso de descumprimento de ordens.
As autoridades eleitorais, durante os mandatos de presidência do TSE dos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, queriam coletar em massa informações sobre três hashtags, ou seja, marcações com link de assuntos em discussão no Twitter: #VotoDemocráticoAuditável, a favor de recibos impressos nas urnas eletrônicas (opinião geralmente de direita), #VotoImpressoNão (contra os recibos, opinião geralmente de esquerda) e #BarrosoNaCadeia (impulsionada por seguidores de Bolsonaro após inclusão dele nos inquéritos secretos do STF). O TSE queria identificar quem criou as hashtags, ver sua progressão cronológica até o intervalo mínimo de 15 em 15 minutos, e manipular o algoritmo de recomendação para diminuir o alcance de algumas contas.
“Eles entenderam que não conseguimos afirmar quem foi o primeiro usuário de uma hashtag; que não conseguimos fornecer informação de IP (código identificador do computador) a partir de tweets específicos; que não há relatórios detalhados do uso da hashtag”, explicou Gualda em email do dia 21 daquele mês, dia da reunião. “A corte enfatizou que são circunstâncias excepcionais”, relatou, e que “está tentando antecipar atividades ilegais em potencial”.
Nove dias depois, Gualda mandou por email uma atualização para a equipe. No dia 29 de março de 2022, receberam mais uma ordem judicial, a ser obedecida em uma semana sob pena de descumprimento de R$ 50 mil por dia, para dar ao TSE a progressão mensal das três hashtags durante o ano anterior, junto com planilhas com “dados de inscrição e IPs dos usuários que usaram a hashtag”. Aquela a favor dos recibos deveria ter sua progressão passada detalhada hora a hora. Quanto à contrária, o TSE havia “revogado a decisão anterior de fornecer dados de usuário a respeito dos ‘primeiros usuários’ de #BarrosoNaCadeia e #VotoImpressoNão”.
Conforme o que foi narrado por Gualda, a revogação, contudo, não excluiu a coleta em massa dos usuários da hashtag preferida pela esquerda. Isso fica claro em um email mandado por Gualda no dia 12 de maio de 2022, quando ele se encontrou com agentes da Polícia Federal que trabalhavam a mando do TSE. Repetindo o mantra de que a investigação era “excepcional”, a PF teria pedido uma planilha com “dados de inscrição [como usuário, email, telefone e idade] e IP (registro de acesso logo antes do tweet), data, hora e conteúdo de todos os tweets com a hashtag #VotoImpressoNão no período entre 9/8/2021 e 12/8/2021”.
Na mesma mensagem de 12 de maio, o brasileiro relata que, do ponto de vista do Twitter, não havia um “comportamento coordenado inautêntico” das contas visadas pela PF (várias das quais estavam inclusas no Inquérito das Fake News do STF). A PF teria explicado, segundo ele, que encontrar a tal coordenação era seu objetivo. Corroborando as informações das edições anteriores dos Twitter Files, o email de Gualda afirma que Meta e Google adotaram “medidas extraordinárias” para colaborar mais com as autoridades (potencialmente na liberação de dados privados em violação ao Marco Civil) que o Twitter.
No dia seguinte, Guarda informou que a corte insistia que “não tem interesse em tornar pública” sua investigação, o que pode ter violado o princípio constitucional da publicidade dos processos. “A informação é sensível e deverá ser mantida sob sigilo. O tribunal continuará tendo o poder último de decisão sobre a divulgação”, detalhou.
Esse e outros pedidos do TSE foram considerados pela equipe jurídica do Twitter “questionáveis à luz das leis e precedentes dos tribunais do Brasil, pois estariam em violação aos direitos dos usuários de privacidade e devido processo legal. Como está, a requisição da Polícia Federal causará potencial quebra de sigilo em massa de um número indeterminado de usuários, sem uma causa clara e sem nenhuma fiscalização prévia do Judiciário”. Como mostrou a Gazeta do Povo, os pedidos do TSE podem ter exposto dados de contas associadas a até 260 mil tweets. Após protestos do Twitter, é possível que o número de contas afetadas tenha sido reduzido a cerca de 200.
As exigências do TSE chamaram a atenção da americana Karen Colangelo, diretora jurídica sênior do Twitter especializada em litígio global. Em 18 de agosto de 2022, dois dias depois de Alexandre de Moraes tomar posse como presidente do tribunal, ela mandou uma série de perguntas para Diego Gualda. Ela perguntou se buscar apelação legal contra as ordens poderia causar problemas par ao Twitter no futuro. “Correto”, explicou Gualda: se apelassem, o caso escalaria para o Supremo Tribunal Federal, “com chances muito baixas” de sucesso.
“Entendo que já resistimos ao governo, de forma que limitamos significativamente o que estávamos fornecendo?”, perguntou Colangelo. “Sim”, respondeu o colega, mas “essa requisição ainda vai fazer que potencialmente quebremos o sigilo de uma a duas centenas de contas. Consideramos esse número muito significativo e excepcional, com base nos casos típicos com que tivemos de lidar no Brasil”. Gualda explicou também que “a requisição inicial da PF era tão ampla que dezenas de milhares de contas seriam implicadas”.
Gualda então explicou para Colangelo que estavam atendendo aos pedidos do TSE pelo uso da busca avançada e captura manual de tweets, e que explicaram para a PF que os métodos de coleta eram públicos e que o trabalho poderia ser feito por ela própria. “A Integridade do Site”, setor chefiado na época pelo americano Yoel Roth (um dos executivos responsáveis pelo banimento de Donald Trump do Twitter, que depôs no Congresso americano a respeito de suas decisões de moderação reveladas nos Twitter Files EUA), “identificou algum conteúdo, incluído conteúdo indisponível na ferramenta de busca avançada, mas esse conteúdo não foi (e não será) divulgado para a autoridade de polícia”.
A última pergunta de Colangelo transparece preocupação com o TSE se acostumar a coletar dados: “Há alguma chance de eles continuarem a voltar até nós se obedecermos? Quero dizer, eles de início concordaram em estreitar [a coleta de dados], mas agora estão pedindo mais, voltarão daqui um mês querendo mais? Em que ponto traçaremos o limite?” Gualda esclareceu que “não estão pedindo mais dados fora do escopo do que discutimos”. Para ele, a investigação estava prestes a terminar, mas “não podemos garantir que novos pedidos não virão”.
Àquele ponto, o Twitter estava resistindo havia quase um ano à pressão do TSE para coletar dados das hashtags. Como revelado antes, o consultor jurídico sênior Rafael Batista disse em 25 de outubro de 2021 que o TSE não apresentou “provas da ilegalidade no uso das hashtags, o que poderia caracterizar monitoramento e pesca probatória”, também incorrendo em “divulgação em massa e indiscriminada de dados privados de usuários, o que caracteriza uma violação da privacidade e outros direitos constitucionais”.
Tabata Amaral, Luiza Erundina e outros estavam inclusos nos alvos originais da PF
De especial interesse para o TSE e a PF na coleta de dados de usuários que postaram as hashtags no Twitter foi o mês de agosto de 2021. Como explicou o mestre em Direito e colaborador deste jornal Hugo Freitas, àquele ponto o Congresso já havia discutido o voto impresso em três ocasiões: em 2002, 2009 e 2015. Nessa quarta tentativa, “ministros do TSE chamaram a atenção por se envolverem ativamente no Congresso para que se votasse contra a proposta”, comentou Freitas, no X. “Agora, com os Twitter Files, descobrimos que o envolvimento foi ainda mais longe, com a tentativa de investigação dos usuários que participaram da campanha usando as hashtags”.
O período específico do dia 9 a 12 de agosto daquele ano coincide com a votação da quarta proposta de adoção do voto impresso. O debate foi intenso e as hashtags foram parte dele. A proposta foi derrotada mesmo com a maioria de votos favoráveis aos recibos impressos, pois não foi atingido o número mínimo de 308 votos favoráveis. O placar foi de 229 a favor, 218 contrários e uma abstenção. Personalidades de esquerda, inclusive Lula, já levantaram ceticismo a respeito do voto completamente eletrônico no passado, mas a posição acabou associada ao “bolsonarismo”, causando uma mudança de lado e debandada da esquerda.
No período visado para coleta de dados pelo TSE e a PF, personalidades de esquerda usaram a hashtag alvo das investigações. A deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP) postou no Twitter em 10 de agosto de 2021 uma captura de tela do registro de seu voto “não” À PEC do voto impresso, com a hashtag #VotoImpressoNão. Na mesma data, a deputada federal Luiza Erundina (PSOL-SP) postou na rede social uma comemoração pelo resultado da votação: “VITÓRIA da democracia! (...) #VotoImpressoNão”. Fez o mesmo a indígena Joênia Wapichana, ex-deputada federal (REDE-RR) e atual presidente da Funai, incluindo um vídeo de sua participação do debate na Câmara dos Deputados.
Muitas outras personalidades e influenciadores da esquerda, incluindo parlamentares estaduais e a conta anônima anti-Bolsonaro @jairmearrependi (431 mil seguidores), postaram a hashtag no período. Os deputados federais Alessandro Molon (PSB-RJ), relator do Marco Civil, e Sâmia Bomfim (PSOL-SP) também postaram, mas fora do período visado pelas autoridades.
PCO, o partido político de esquerda censurado durante as eleições
É de 6 de junho de 2022 o email interno da equipe jurídica do Twitter a respeito da ordem direta de Alexandre de Moraes de censura contra o Partido da Causa Operária, um partido comunista. A ordem do ministro veio no contexto do Inquérito das Fake News, que já completou cinco anos. A autora da mensagem (mantida anônima pela reportagem por não ser uma funcionária de nível sênior) informa que Moraes mandou suspender imediatamente a conta @PCO29, “identificar quem criou a conta” e “preservar e divulgar todo o conteúdo (público ou privado) da conta, incluso conteúdo deletado, dentro de cinco dias”.
A advogada diz que o Twitter obedeceria “parcialmente” fornecendo “informações básicas de inscrito” (BSI, na sigla em inglês), mas que recorreria, sem obediência imediata, “ao pedido de suspensão da conta, dado que o PCO é um partido político legal e registrado no Brasil”.
Entre as declarações do PCO que chamaram a atenção de Moraes, estão “skinhead de toga retalha o direito de expressão e prepara um novo golpe nas eleições. (...) Dissolução do STF”; “É preciso adotar uma política concreta contra a ditadura do STF. Lutar pela dissolução total do tribunal e pela eleição dos juízes com mandato revogável”; e “Tribunal Superior Eleitoral quer impor censura a manifestações políticas em show. Fascista Alexandre de Moraes é um dos pilares da ditadura do judiciário e vai presidir o TSE nessas eleições. #ForaBolsonaro #LulaPresidente #PCO”.
Nos documentos de ordens judiciais de Moraes contra o Twitter revelados pelo Comitê Judiciário da Câmara dos Estados Unidos na semana passada, o PCO aparece em duas medidas aplicadas durante as eleições de 2022. A primeira é um mandado de intimação emitido por Moraes "de ofício", ou seja, iniciada pelo próprio juiz sem que houvesse pedido externo, em 17 de junho de 2022, ordenando o bloqueio das redes sociais do PCO, incluindo Twitter, dentro de um prazo de 24 horas. Em caso de não cumprimento desta ordem, foi estipulada uma multa diária de R$ 20 mil.
O segundo documento revela que, somente em 28 de fevereiro de 2023, quase quatro meses após as eleições, as restrições impostas às redes sociais do PCO foram finalmente revogadas. Moraes justificou a decisão de desbloqueio argumentando que houve cessação da divulgação de conteúdos considerados ilícitos que poderiam comprometer a integridade do processo eleitoral. No entanto, a decisão ainda impôs uma multa diária de 10 mil reais em caso de futuros descumprimentos.
Felipe Andreoli: visado pelo MP por comentários desenterrados
Em outubro de 2021, o jogador de vôlei Maurício Souza (hoje deputado federal, PL-MG) fez comentários críticos a respeito da introdução da bissexualidade na trama dos quadrinhos da franquia Superman. Ele se retratou, mas terminou demitido do Minas Tênis Clube. Os comentários atraíram a atenção do ex-humorista e apresentador do Globo Esporte SP, Felipe Andreoli, que disse em seu programa “Maurício, homofobia não é opinião, é crime, cara, mata”.
Usuários do Twitter prontamente desenterraram piadas e comentários potencialmente homofóbicos do próprio Andreoli feitos no passado. Reconhecendo seus erros passados, Andreoli declarou na rede social que “o print é eterno” e “o que era considerado piada hoje sabemos que mata”.
Os arquivos do Twitter mostram que a comoção com as manifestações antigas de Andreoli atraiu a atenção da Procuradoria-Geral da República e do Ministério Público Federal. O MP enviou ao Twitter um pedido de “preservação” de IPs relativos a esses tweets, relata um email de Rafael Batista enviado em 26 de novembro de 2021. O Twitter se recusou a atender ao pedido pois não teria recebido as URLs específicas, apenas capturas de tela. Além disso, não teria sido seguido o que determina o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal (MLAT), acordo de cooperação entre países para investigações que obedeçam a ambos os ordenamentos jurídicos dos envolvidos.
Manifestações de entrevistados e o outro lado
A Gazeta do Povo conversou com Cássia Gontijo, de Minas Gerais, e Rodrigo Ramos, de Piracicaba (SP), citados nos arquivos como uns dos primeiros a levantarem a hashtag #VotoDemocráticoAuditável.
“Não acesso meu Twitter desde a eleição”, declarou Ramos, depois corrigindo sua última data de acesso para “março de 2023”. Ele diz não ter conhecimento de que estava sob investigação do TSE. “São minhas opiniões, não vejo nada demais, nada de especial que possa estar sendo julgado”, opinou. “Não tenho interesse em continuar com assunto político”. Ele negou que tenha usado robô para promoção da hashtag.
Cássia Gontijo disse que seu perfil foi derrubado sem que ela “soubesse o motivo”. “A censura a todo vapor”, exclamou a mineira, expressando que quer “que em breve o Estado Democrático de Direito seja reestabelecido no Brasil”. Ela nega que tenha criado a hashtag e diz que sua opinião a favor do voto impresso foi criminalizada “ao arrepio da nossa Constituição Federal”. “Sou uma cidadã comum”, conclui. “Fiquei famosa no TSE por algum momento e nem sabia. Espero que as autoridades tenham coisas mais importantes para cuidar ao invés de se investirem como fiscais de hashtag”.
A reportagem tentou contato com todos os citados, mas não recebeu resposta até o fechamento. O espaço segue disponível para seu contraponto.
É coautor da reportagem Eli Vieira, editor de Ideias da Gazeta do Povo. Colaborou também o jornalista Michael Shellenberger, que tem posse da base completa de arquivos desde o final de 2022.
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