Desde o último sábado (10), qualquer usuário com conta na plataforma Notas da Comunidade, lançada globalmente pelo Twitter, pode apontar correções em publicações na rede social de Elon Musk. O serviço, com perfil próprio, já tem mais de 150 mil seguidores e, se bem-sucedido, ameaça a hegemonia das agências de checagem de fatos com um modelo singular. Entre os alvos de correções recentes por participantes do site está o próprio dono do Twitter, além da conta da Casa Branca. Com a ferramenta, antes disponível apenas para poucos países, rótulos de verificação deixam de ser colocados em postagens por uma equipe de funcionários do alto escalão do Twitter e passam a ser atribuição de uma comunidade mundial de checadores, com código aberto a qualquer pessoa com conta na rede, desde que não tenha sido alvo de punição recente por violação das normas de uso.
“Se as Notas da Comunidade podem me corrigir, então, obviamente, elas podem corrigir qualquer pessoa”, comentou Musk, após receber um rótulo de “contexto adicional” no mês passado. “Este é um bom exemplo. Estavam certos ao adicionar o rótulo”. No caso, a checagem foi feita sobre uma piada com provocação à rede de televisão CNN. Uma aparente captura de tela com o âncora Don Lemon dizia “CNN: Elon Musk poderia ameaçar a liberdade de expressão no Twitter ao literalmente permitir que as pessoas se expressem livremente”. O rótulo de contexto adicional diz “a captura de tela não é real e se originou em um website satírico”, com link para uma matéria da agência de notícias Associated Press, para corroboração.
Qualquer pessoa com conta na rede social pode pedir para participar, mas há restrições como não ter sido alvo de punição recente por violar as normas. Uma vez aceitos no serviço de notas, os moderadores podem adicionar os rótulos, após votação interna entre eles, e qualquer usuário do site pode votar se o rótulo foi informativo.
Mais checagens já feitas
No começo do mês, Musk tuitou que sua rede social “veicula um vasto número de cliques para outros websites”. O tweet foi rotulado com “o inverso é verdadeiro”, e os checadores deram estatísticas mostrando que o Twitter não está entre os maiores estimuladores de tráfego na Internet: a rede social “veicula 7% dos encaminhamentos na rede. O Facebook veicula 74%. O Pinterest veicula 7%”.
Outro alvo da checagem comunitária foi a Casa Branca. No começo de novembro, a conta oficial da sede do Executivo americano disse que “os aposentados estão ganhando seu maior aumento nos cheques do seguro social em dez anos graças à liderança do presidente Biden”. As Notas da Comunidade reagiram com um rótulo: “o aumento do benefício é devido ao ajuste do custo de vida anual, que é baseado na taxa de inflação”. O governo Biden, em parte devido a um grande gasto e impressão de moeda, tem um dos piores resultados em inflação das últimas décadas. Após a checagem, a Casa Branca deletou o tweet.
Riscos e vantagens da checagem comunitária
É um “experimento radical de checagem de fatos”, como caracterizou a revista Wired, com potencial de sofrer com os mesmos problemas que a Wikipédia. Ela é aberta para qualquer pessoa editar, mas tem uma hierarquia interna com um viés político denunciado por um de seus cofundadores, Larry Sanger. O próprio Musk faz essa acusação: “A Wikipédia tem um viés de esquerda considerável”, alegou o bilionário na semana passada (6). O motivo para isso seria que a enciclopédia considera a “mídia mainstream” uma fonte de informações fiáveis, herdando dela o mesmo viés, segundo ele. No Brasil, ao menos, uma pesquisa confirma que 80% dos jornalistas se consideram de esquerda, o que não necessariamente significa que são todos produtores de material enviesado, mas cria um risco nessa direção.
No fim de novembro, as Notas da Comunidade atualizaram um plano que pode criar uma hierarquia interna. Em uma série de tweets, a seção explicou que seus contribuidores se frustram com notas (rótulos) de baixa qualidade e, para solucionar o problema, estavam lançando um novo algoritmo que identificaria essa baixa qualidade e trancaria temporariamente o acesso de seus autores à contribuição. Já os contribuidores que tiverem muitos votos ganham uma nota de “prestatividade”. Ao menos há transparência: o código do algoritmo e os dados usados são disponibilizados na plataforma aberta de programadores GitHub (comprada pela Microsoft).
Os rótulos não são postos nos tweets com base apenas em popularidade entre os checadores, contudo. São colados os rótulos que atingirem o mais amplo consenso entre eles — uma regra inspirada em uma plataforma de Taiwan chamada Polis, através da qual os cidadãos do país podem criar novas leis. Na Polis, as autoridades fazem perguntas simples à população, por exemplo, como deve ser regulado um novo aplicativo. Os cidadãos oferecem respostas e votam nas respostas um dos outros.
O algoritmo da Polis, então, identifica os agrupamentos ideológicos e seleciona as propostas que têm maior concordância e menor rejeição pluripartidária. Assim, Taiwan está fazendo uma democracia mais direta com um sistema que, em vez de incentivar exibicionismo de lealdade a cada tribo e de hostilidade às tribos políticas rivais, incentiva os pontos em que as ideologias concordam. “As pessoas competem para oferecer as afirmações mais nuançadas que possam ganhar mais pessoas de todos os lados”, explicou a ministra digital Audrey Tang à Wired. A inspiração da Polis para as Notas da Comunidade é direta: engenheiros de software que trabalharam na primeira foram chamados pelo Twitter para contribuir com as últimas.
O serviço já existia antes de Elon Musk, com o nome “Birdwatch”, algo como “observação de pássaros”, brincando com o tema de ave do site — “tweet” é a onomatopeia em inglês para o pio dos pássaros e “twitter” é literalmente “piador”. Quando ele comprou a plataforma em outubro, viu na ferramenta, até então restrita aos Estados Unidos, uma solução em potencial para aumentar a veracidade de seu conteúdo. Apesar de ser anterior, contudo, ela só foi implementada semanas antes da aquisição por Musk. Os empregos dos funcionários que cuidam das Notas da Comunidade sobreviveram à onda de demissões da transição.
As notas estão em sua infância. Até o começo do mês, menos de 40 mil notas foram produzidas por menos de 5.500 pessoas. Um grupo muito pequeno comparado às centenas de milhões de usuários do Twitter. O modelo da busca de consenso, no entanto, não está livre de vieses. Os checadores são mais propensos a produzir notas contra opiniões políticas contrárias às suas. Se um assunto não é politizado, tende a ganhar menos checagem.
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