Do ponto de vista da legislação, não há nada de ilegal em casamentos de adolescentes com 16 a 18 anos de idade — desde que os responsáveis legais tenham autorizado a união em cartório; se, um dos dois, o pai ou a mãe, não concordarem, apenas um juiz pode autorizar o enlace. O que é estritamente proibido, sem exceção alguma, desde março de 2019, é o casamento de menores de 16 anos.
Até quatro anos atrás, era possível se casar com meninas menores de 16, desde que elas estivessem grávidas ou concordassem em se unir a um homem que tenha abusado delas — assim, ele se livrava da acusação de estupro, passível de pena de até 15 anos de reclusão.
Atualmente, manter relações sexuais ou atos libidinosos com crianças e adolescentes, meninos ou meninas, antes que eles completem o 14º aniversário, configura estupro de vulnerável, mesmo que tenha havido consentimento verbal. Para os 14 aos 16 anos, o consentimento ainda é levado em consideração para julgar se houve crime.
Foi nesse contexto que a notícia de que o prefeito de Araucária (PR), Hissam Hussein Dehaini, de 65 anos, se casou com Kauane Rode Camargo, de 16 anos, correu o Brasil e repercutiu em dezenas de veículos de imprensa. Por que isso acontece? Afinal, por que este casamento provoca tanta controvérsia?
Prejuízo para o futuro
Existe um movimento global para combater o casamento de jovens menores de 18 anos. Para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), qualquer união, formal ou informal, de menores desta idade, é considerada casamento infantil. A UNICEF argumenta que esta situação precisa ser combatida porque, em geral, ele reduz o acesso das meninas a oportunidades em escolaridade e trabalho — o mais comum é elas atuarem como mães e donas de casa, em uma idade em que poderiam estar trabalhando ou estudando.
Ainda assim, esta continua sendo uma tendência mundial, especialmente nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. A UNICEF estima que 26% das adolescentes brasileiras se casaram ou foram morar com seus parceiros antes de alcançar 18 anos.
O percentual se mantém ao longo dos últimos 25 anos e é semelhante aos 25% de média da América Latina. Um levantamento realizado pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) a pedido do jornal O Globo reforça o quanto a prática permanece corriqueira: entre 2021 e março deste ano, 7.228 menores de idade se casaram no Brasil.
“Apenas proibir o casamento não resolve, muitas das uniões acabariam acontecendo da mesma forma. Mas, do ponto de vista de igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, o casamento de meninas adolescentes é muito ruim”, avalia Raul Araújo, presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Criança e do Adolescente (IBDCRIA).
Ele lembra também que a faixa de idade de consentimento, de 14 a 16 anos, é foco de intensos debates no mundo. “Há uma linha de pensamento que defende que, nestes casos, mesmo com o consentimento declarado, a diferença de idade dos dois envolvidos seja de no máximo cinco anos. Na Suíça, por exemplo, é assim”.
Além disso, para evitar as situações em que meninas jovens saem de casa por falta de opções ou arranjos familiares em busca de um maior conforto financeiro, ele recomenda que esta faixa etária seja alvo de ações específicas, sociais, educacionais e econômicas. “Também é importante aplicar a legislação que coíbe o abuso. Em casos de concessão da menor, por parte da família, em troca de ganhos econômicos, a motivação financeira pode configurar exploração sexual”.
Ainda que a humanidade tenha avançado em uma série de questões morais nas últimas décadas, as mulheres continuam sendo vítimas de conceitos morais antiquados, como lembra Kwame Anthony Appiah no livro O código de honra: Como ocorrem as revoluções morais.
Ele argumenta: “A prática da morte por questão de honra — que, embora também seja teoricamente aplicável aos homens, na imensa maioria das vezes volta-se contra as mulheres — serve não só para aterrorizar muitas mulheres e obrigá-las a aceitar abusos conjugais, como também para oferecer aos homens uma forma de se livrar impunemente de mulheres inconvenientes”.
Ações sob investigação
No caso de Araucária, rapidamente o debate migrou para as acusações de nepotismo, já que a mãe da menina, que já era diretora-geral na Secretaria Municipal de Educação, foi nomeada secretária de Cultura e Turismo, com aumento significativo de salário, 24 horas após o casamento — ela foi exonerada diante da repercussão do caso.
Existe a possibilidade de o episódio ser investigado, considerando que ele conheceu a jovem quando ela tinha 15 anos e eles se casaram exatamente um dia após ela ter completado 16. É possível que o relacionamento tenha se iniciado antes de ela completar a idade autorizada por lei? “O Ministério Público do Paraná informa que há procedimentos em andamento sobre o caso. Como envolve adolescente, por força de lei, todas as informações referentes ao fato em apuração são sigilosas”, responde o MPF, via assessoria de imprensa.
No passado, o prefeito chegou a ser detido, em março de 2000, por 60 dias, acusado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de envolvimento com narcotráfico. Foi indiciado por envolvimento com tráfico de drogas, furto e desmanche de veículos, concussão, extorsão, corrupção ativa e passiva, mas inocentado pelo Ministério Público por falta de provas em 2010.
"Dilemas morais complexos"
No momento em que o casamento começou a ganhar repercussão, a cobertura jornalística se dividiu quanto à escolha das imagens que acompanhavam a notícia. Alguns veículos optaram por utilizar apenas fotos do prefeito, outros publicaram um registro do casal, inclusive nas capas de seus portais.
Expor a menina representaria um descumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)? Afinal, em seu artigo 17, a lei estabelece: “A promoção dos direitos e proteção da criança e do adolescente deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada”.
Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão Nacional de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), especialista no Estatuto da Criança e do Adolescente, explica que, neste caso, nenhum crime foi cometido. “Em termos legais a idade núbil, ou seja, a idade mínima para contrair matrimônio, é de 16 anos. Assim, os pais ou responsáveis pela adolescente que se casou com o idoso, obrigatoriamente deram autorização para o casamento. Com a autorização concedida à referida adolescente de 16 anos ocorre o casamento e a consequente emancipação”.
Emancipada, a jovem não se enquadra mais nos critérios do ECA em relação à proteção de sua imagem. E o casamento representa uma forma de alcançar a emancipação, explica Moreira. “O Código Civil prevê três espécies de emancipação: a voluntária, feita em cartório pelos pais e independe de homologação judicial, a judicial, pleiteada judicialmente pelo tutor em favor de seu tutelado ou pupilo, e a legal, resultado de casamento, colação de grau em instituição de ensino superior e se a(o) adolescente, aos 16 anos, já possui renda ou economia própria”.
Para o professor de filosofia e colunista da Gazeta do Povo Francisco Razzo, à parte questões legais, há em curso uma mudança na percepção a respeito do casamento. Se o matrimônio até há poucas décadas era validado por instituições religiosas, hoje tem majoritariamente status civil — que por sua vez reforça um aspecto antigo, o de arranjo social entre famílias diferentes, que tradicionalmente utilizam a instituição para criar vínculos.
Mas, para ele, há uma certa hipocrisia em questionar o casamento de uma adolescente de 16 anos, quando esta é a idade mínima para escolher governantes. “A reação ao caso de Araucária revela dilemas morais complexos. Ao mesmo tempo em que os adolescentes são cada vez mais sexualizados nas redes sociais, a internet tem se tornado um tribunal de exceção, em que é possível julgar e condenar, destruindo reputações e carreiras”.
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