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O empresário Elon Musk simplesmente se cansou das leis que paralisaram a economia norte-americana. Na segunda-feira (11), ele deixou claro pelo Twitter que iria desobedecer aos decretos da Califórnia que impediam o funcionamento da fabricante de carros Tesla no estado. “A Tesla está retomando a produção hoje, contra as regras do condado de Alameda. Eu estarei na linha de produção com todo mundo. Se alguém for preso, peço que seja eu”, escreveu ele.
O ato de Musk contra a tirania tecnocrata-cientificista que tomou conta do mundo por causa da pandemia de coronavírus tem uma longa tradição no mundo livre. A “desobediência civil”, termo cunhado pelo filósofo transcendentalista Henry David Thoreau em 1848, inspirou líderes importantes do século XX, como Martin Luther King Jr. e Mahatma Gandhi.
A ideia por trás dos atos de desobediência civil não é o descumprimento puro e simples de uma lei. Isso seria apenas birra - ou pior, crime. Desobediência civil pressupõe a existência de leis, normas ou decretos aos quais a pessoa se opõe por uma questão de princípios. O próprio Thoreau foi preso ao se recusar a pagar impostos que viriam a financiar uma guerra que ele considerava imoral, contra o México.
No ensaio intitulado justamente “Desobediência Civil”, Thoreau explica o que leva a pessoa a abdicar da liberdade e se sujeitar à força do Estado em defesa de princípios mais elevados:
Leis injustas existem. Devemos nos satisfazer em obedecê-las ou devemos nos atrever a corrigi-las e obedecê-las até termos conseguido isso, ou devemos ainda transgredi-las? Em geral os homens, sob um governo deste tipo, acham que devem esperar até terem convencido a maioria a alterar essas leis. Eles acham que, se resistirem, o remédio será pior do que a doença. Mas o fato de o remédio ser pior do que a doença é culpa do governo em si. Isso só piora as coisas. Por que não seria melhor se antecipar e promover a mudança? Por que não cultivar a minoria sábia? Por que não gritar e resistir antes de ver o mal causado? (...)
A desobediência civil, vale reforçar, não é apenas um ato voluntarioso de transgressão. Tampouco tem um caráter revolucionário no sentido de pretender destruir instituições - embora ela tenha servido como pretexto para revoluções recentes como a Primavera Árabe e a Revolução Laranja na Ucrânia. Aliás, uma das características mais importantes da desobediência civil e o que a diferencia de um crime é o fato de o “desobediente” não fazer uso da violência.
Sobre isso, escreveu o jurista, historiador e cientista político Norberto Bobbio em seu "Dicionário de Política":
Enquanto a desobediência comum é um ato que desintegra o ordenamento e deve ser impedida ou eliminada a fim de que o ordenamento seja reintegrado em seu estado original, a desobediência civil é um ato que tem mira, em última instância, mudar o ordenamento, sendo, no final das contas, mais um ato inovador do que destruidor. Chama-se “civil” precisamente porque quem a pratica acha que não comete um ato de transgressão do próprio dever de cidadão, julgando, bem ao contrário, que está se comportando como bom cidadão naquela circunstância particular que pende mais para a desobediência do que para a obediência.
A Constituição de 1988, em seu artigo 5º, garante ao cidadão brasileiro o direito à desobediência civil e à objeção de consciência. “Ninguém será privado de direitos por motivo de crenças religiosas ou de convicção filosófica ou política”, diz o texto da Carta Magna. É com base nele, por exemplo, que adventistas e testemunhas de Jeová pedem isenção do alistamento militar obrigatório.
Antes e depois de Thoreau
Thoreau pode ter dado fama à desobediência civil como forma de protesto e de enfrentamento do poder injusto, mas o princípio remonta à Grécia Antiga. Na famosa peça Lisístrata, de Aristófanes, a greve de sexo proposta pelas mulheres para pôr fim à guerra é vista como uma forma (bastante original, diga-se de passagem) de desobediência civil.
No século XVI, o filósofo e jurista francês Étienne de la Boétie defendeu a servidão voluntária como uma forma de desobediência civil. E, no começo do século XIX, o poeta romântico inglês Percy Shelley, numa época em que as palavras de poetas eram ouvidas, também defendeu a desobediência civil como meio de se lutar contra as injustiças promovidas por um Estado opressor.
Foi influenciado por Shelley, e não por Thoreau, que o líder Mahatma Gandhi deu início ao processo de independência da Índia fazendo uso da Satyagraha, isto é, a “força da verdade”, e não a força das armas. Entre as estratégias usadas por Ghandi estavam a greve de fome, as marchas pacíficas e as greves.
Em sua luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos, Martin Luther King Jr. também empregou a desobediência civil às leis racistas vigentes no sul dos Estados Unidos e que impediam que negros frequentassem as mesmas escolas que os brancos, por exemplo. Simbólica deste tempo foi a desobediência civil de Rosa Parks, a mulher que simplesmente se recusou a ocupar o lugar no ônibus destinado aos negros, foi presa e virou símbolo da luta pelo fim do racismo institucionalizado nos Estados Unidos.
Voltando a Elon Musk
O tuíte de Elon Musk informando as autoridades californianas e o mundo todo que ele estava disposto a ser preso para ver sua fábrica funcionando novamente deu resultado. Afinal, a prisão de um bilionário carismático seria péssima para a imagem do estado. Mas não só por isso. Ao desafiar a decisão do governo de paralisar a econômica, Musk deu às autoridades três opções: prendê-lo, permitir a transgressão ou mudar o decreto.
Se as autoridades mantivessem o decreto que proibia o funcionamento da fábrica da Tesla, mas não prendessem o empresário, isso lhes tiraria a autoridade. Logo, a saída menos desonrosa foi recuar e tornar o decreto que paralisava as atividades da indústria inválido.
Diante de investidas cada vez mais ousadas dos governos que usam a pandemia de coronavírus como desculpa para ver seu poder ampliado, atitudes com a de Musk tendem a se tornar mais comuns - embora talvez não causem tanta repercussão quanto à desobediência civil de um bilionário. Em tempos de lockdown, um simples caminhar na praia pode fazer a diferença entre garantir a liberdade ou se deixar oprimir por um Estado enlouquecido em seu furor sanitário.