É senso comum que o gasto do governo é, de modo geral, ineficiente em comparação ao gasto de pessoas e negócios privados. Como o economista vencedor do Nobel Milton Friedman notoriamente argumentou, "ninguém gasta o dinheiro alheio com o mesmo cuidado com que gasta o seu próprio. Ninguém usa os recursos alheios com o mesmo cuidado com que usa os seus próprios. Então, se você quiser eficiência e efetividade, se você quiser que o conhecimento seja usado de modo apropriado, você tem que fazer isso por meio da propriedade privada."
Esse argumento sobre a eficiência econômica pode ser verdadeiro, mas também livra a cara dos agentes do governo fácil demais. Um exemplo perturbador é como a Califórnia está lidando nos dias de hoje com seu longo histórico de forçar esterilização contra a vontade de suas vítimas e depois, por meio do legislativo, se blindar da responsabilidade.
Se você tiver sido um pagador de impostos no estado dourado até 2010 (uma data nada remota), seus ganhos provavelmente ajudaram a bancar a esterilização forçada de centenas de presidiárias como a índia Moonlight Pulido.
"Enquanto estava na prisão em 2005, Pulido disse que um médico falou-lhe da necessidade de remover dois 'tumores' que poderiam ser câncer", noticiou a Associated Press este mês. "Ela assinou um formulário e fez a cirurgia. Depois, algo parecia errado. Ela estava sempre suando e não se sentia mais a mesma. Perguntou a uma enfermeira, que lhe respondeu que ela fez uma histerectomia completa, procedimento que tira o útero e o colo, e às vezes outras partes do sistema reprodutivo."
"Eu me senti menos do que uma mulher", disse Pulido ao repórter Adam Beam. "Nós somos as únicas que podem dar a vida, e ele roubou de mim essa bênção."
Pulido não era a única. Outras vítimas dessa política demoníaca contaram suas histórias à imprensa, inclusive Kimberly Jeffrey, que se lembrava de resistir a uma ligadura de trompas enquanto estava sedada e amarrada a uma mesa de operação.
"Ser tratada como menos que humana me causou desespero", disse Jeffrey à NPR.
Kelli Dillon, uma ex-presidiária da instalação feminina Central California, explicou como descobriu que seus ovários tinham sido removidos em 2001 sem o seu conhecimento ou consentimento depois de os cirurgiões lhe dizerem que ela faria uma biópsia para tirar um cisto.
"Era como se minha vida não valesse nada. Alguém achou que eu não tinha nada a contribuir, a tal ponto que tiveram de achar esse jeito sorrateiro e diabólico de roubar minha capacidade de ter filhos", disse Dillon ao Guardian em 2021.
Foi só anos depois, quando ainda era um membro do sistema prisional estadual da Califórnia, que Dillon começou a perceber que outras presidiárias estavam recebendo histerectomias e outras cirurgias de esterilização sem saber, amiúde depois de ouvirem que as cirurgias "eram necessárias para investigar cânceres ou corrigir problemas ginecológicos."
Se os perpetradores dessas violações fossem responsabilizados por suas ações, tais atrocidades seriam mais difíceis de acontecer. Mas, em vez de serem levados à justiça por seus malfeitos, o governo do estado da Califórnia está forçando gente inocente a pagar o preço e garantindo para si próprio a impunidade. É esse tipo de uso da expropriação dos fundos de cidadãos produtivos e privados que deixou os governos aterrorizarem seus cidadãos desde tempos imemoriais — um padrão que não terá razão para acabar sem que se tomem medidas para eliminar o poder dos governos de fazer legislações tão cruéis.
Cronologia: a esterilização forçada da Califórnia
1909: O estado da Califórnia criou um programa de esterilização que se tornou o maior movimento eugenista dos EUA, esterilizando à força mais de 20.000 vítimas e também inspirando práticas eugenistas da Alemanha Nazista. As práticas foram levadas adiante em hospitais públicos e noutras instituições (bancadas por impostos) para deficientes e doentes mentais, porque as pessoas com deficiências ou doenças mentais eram tidas como inadequadas para a reprodução.
1927: Nessa época o movimento eugenista tinha se tornado dominante nos EUA. Tinha ampla aceitação em meio à elite americana dos elaboradores de políticas públicas a ideia de que a população humana poderia ser aprimorada pela prevenção compulsória da reprodução de grupos demográficos dos quais eles não gostavam, tais como os deficientes, os pobres, os "débeis mentais" e até pessoas tidas como "desviantes sexuais", tais como estupradores, prostitutas ou mulheres que fizeram sexo fora do casamento. O direito constitucional da Califórnia a dar prosseguimento às suas práticas eugenistas foi sacramentado pela Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Buck v. Bell, no qual o direito do estado da Virgínia a esterilizar Carrie Buck (que foi falsamente julgada "débil mental") contra a sua vontade foi mantido — e com isso os direitos de outros governos estaduais a tomarem decisões similares para os seus habitantes.
Escrevendo pela maioria, o ministro Oliver Wendell Holmes Jr. (considerado um ídolo do "progressismo" em seu tempo e ainda hoje, por alguns) afirmou que "é melhor para todo o mundo que, em vez de esperarmos para executar por um crime a prole degenerada, ou deixá-la morrer de fome por sua imbecilidade, a sociedade possa deter aqueles que são manifestamente inaptos de continuar o seu tipo. O princípio que mantém a vacinação compulsória é amplo o bastante para cobrir o corte das trompas de Falópio."
E assim concluiu, numa frase famosa: "Três gerações de imbecis já bastam".
1968-1974: Embora o movimento eugenista tenha tido o seu ápice nos anos 1930, os funcionários públicos da Califórnia supervisionaram a continuidade das esterilizações financiadas pelo erário até a segunda metade do século XX. Por exemplo: segundo um documento oficial divulgado pelo condado de Los Angeles cinco anos atrás pedindo desculpas por uma série de esterilizações supervisionadas por seus funcionários públicos entre 1968 e 1974, "mais de 200 mulheres que fizeram seus partos no condado de Los Angeles + Centro Médico da USC [Universidade do Sul da Califórnia], a maioria das quais eram de baixa renda e nascidas no México, possivelmente foram obrigadas a fazer ligadura de trompas pós-parto. Ao menos parte das mulheres não sabia que estava sendo esterilizada, e só descobriu que perdeu seus direitos reprodutivos durante visitas subsequentes ao médico. É significativo e necessário reconhecer o dano irreparável infligido àquelas mulheres que foram sujeitas a essas esterilizações forçadas no condado de Los Angeles + Centro Médico da USC, bem como às suas famílias."
1979: As leis eugenistas da Califórnia foram revogadas, supostamente encerrando a prática de eugenia publicamente financiada no estado.
1999 - 2010: O movimento eugenista da Califórnia foi misteriosamente revivido, mas desta vez sob o disfarce de saúde prisional. Segundo escrevia a Associated Press menos de dois anos atrás, "as esterilizações nas prisões californianas parecem remontar a 1999, quando o estado mudou sua política por razões desconhecidas de modo a incluir o procedimento de esterilização conhecido como 'ligadura de trompas' como parte dos cuidados médicos das presidiárias. Na década seguinte, mulheres relataram que foram coagidas a se submeter a esse procedimento, com algumas delas não entendendo perfeitamente as consequências."
2003: Enquanto o governo da Califórnia ainda financiava esterilizações involuntárias em suas prisões estaduais, o governador Gray Davis pediu desculpas, em nome do "povo californiano", pelas ações eugenistas "pretéritas" do governo. "Às vítimas dessa injustiça pretérita e às suas famílias, o povo californiano está profundamente triste pelo sofrimento que vocês suportaram pelos anos", dizia o pedido de desculpas. "Nossos corações estão pesados pela dor causada pela eugenia. Foi um capítulo triste e lamentável na história do estado, e que nunca mais deve ser repetido."
2013: O Centro de Reportagens Investigativas (CRI, agora chamado Reveal) descobriu que entre 1997 e 2010 os funcionários públicos estaduais da Califórnia gastaram ao menos 147.460 dólares dos impostos para esterilizar 148 presidiárias. Os casos supracitados de Moonlight Pulido, Kimberly Jeffrey e Kelli Dillon foram só três deles. Muitos registros dessas esterilizações foram "perdidos ou destruídos", diz a Associated Press. A NPR aponta que o verdadeiro número de esterilizações ilícitas durante aquele período pode ter sido significativamente mais alto que o relatado, e que as operações pareceram mirar desproporcionalmente as reincidentes.
As alegações do CRI foram negadas pelos poucos funcionários estaduais que comentaram o assunto na fase inicial do escândalo. O ex-ginecologista obstetra da Prisão Valley State, o Dr. James Heinrich, alegou que todas as presidiárias esterilizadas consentiram com as operações. Ele até justificou esse uso dos impostos numa maneira que parecia ecoar o desrespeito do ministro Oliver Wendell Holmes Jr. pelo valor da vida humana em 1927. "Num período de 10 anos, [147.460 dólares] não são uma quantia muito grande em comparação ao que se economiza em benefícios sociais para essas crianças indesejadas, se elas procriassem mais", disse Heinrich segundo a NPR.
2014: Impulsionados pelas descobertas do CRI, os auditores conduziram sua própria investigação para confirmar ou refutar tais alegações. "Uma auditoria do estado encontrou 144 mulheres esterilizadas entre 2005 e 2013 com pouca ou nenhuma evidência de terem tido aconselhamento ou tratamentos alternativos", descobriu a auditoria. O relatório dos auditores, publicado em www.auditor.ca.gov, descobriu que a má conduta ocorrera sob supervisão ou do Departamento de Correções e Reabilitação da Califórnia, ou dos Serviços de Saúde Correcionais da Califórnia.
"Este relatório conclui que, durante o período auditado de oito anos, 144 presidiárias foram esterilizadas por um procedimento conhecido como ligadura bilateral de trompas, uma cirurgia feita somente com o propósito de esterilizar", escreveram os auditores.
Naquele mesmo ano, em resposta às revelações, o governador Jerry Brown assinou uma lei supostamente escrita para proibir futuras esterilizações involuntárias nas prisões californianas. No entanto, como notou uma reportagem do Guardian, "ainda que a lei tenha passado com unanimidade, sua linguagem cuidadosamente negociada permitiu ao estado escapar de futura responsabilidade."
2021: O governo da Califórnia aprovou uma lei feita para compensar, por meio de pagamentos reparativos financiados com impostos, as vítimas de esterilização. O programa irá pagar pelo menos 15 mil dólares [R$ 78 mil] a qualquer solicitante que puder provar que foi uma das vítimas.
2022-2023: A Califórnia está procurando as vítimas que ainda estão vivas, as quais devem ser mais de 600, segundo matéria de 2021 da Associated Press (embora muitas vítimas nunca tenham sabido o que lhes foi feito, de modo que não está claro como elas solicitariam reparações). A estratégia de busca do governo consiste em mandar pôsteres, cartazes e panfletos para bibliotecas, prisões e outros estabelecimentos pelo estado, segundo noticiou a AP este mês.
Depois de um ano procurando, o governo aprovou só 51 das 310 postulantes, negou as solicitações de 103 e encerrou 3 solicitações incompletas. "Dizem que é difícil verificar as solicitações, já que muitos registros foram perdidos ou destruídos." Portanto, segundo a Oficial Executiva do Quadro de Compensação de Vítimas da Califórnia, Lynda Gledhill, "tentamos encontrar todas as informações que podemos e às vezes só podemos torcer que alguém talvez possa encontrar mais informação detalhada por conta própria. Às vezes simplesmente não somos capazes de verificar o que aconteceu."
Das 51 vítimas aprovadas para pagamentos reparativos, três foram esterilizadas sob as leis de eugenia da Califórnia revogadas em 1979. As demais foram esterilizadas mais recentemente.
2024: Acabará o programa de 4,5 milhões de dólares [R$ 23 milhões] em reparações, ao qual se somam dois milhões gastos em propaganda.
Quaisquer vítimas ainda não pagas terão perdido a chance de receber uma compensação pelos danos aos seus corpos, identidades sexuais, dignidade humana e potencial para passar os seus genes às gerações futuras.
Permitindo o acontecimento do impensável
Os "servidores públicos" a governar os fundos da Califórnia, fundos apropriados de cidadãos inocentes contra a sua vontade, usaram esses fundos para capturar e esterilizar vítimas involuntárias, depois "perderam ou destruíram" os relatórios associados, passaram uma legislação para se proteger da responsabilidade (depois de pegos), enfim decidiram pagar reparações, mas passaram a conta para os cidadãos inocentes, em vez de enfrentarem eles próprios qualquer impacto legal ou financeiro, e só pagaram a 51 das pelo menos 600 vítimas vivas, agora que cerca de metade do tempo para reparações passou.
A história acima, de legislação em causa própria e de desculpas vazias, confirma a suspeita do senso comum que costuma nos guiar — a saber, que as instituições do governo da Califórnia não merecem confiança para proteger, por meio das leis, os cidadãos contra atrocidades continuadas, dado que as atrocidades em questão são, muitas vezes, perpetradas pelas próprias instituições governamentais.
Quando a coerção injustificada é usada de modo consistente por um grupo, o jeito de impedi-la é impor custos aos indivíduos culpados que eles mesmos têm que sofrer até suas transgressões serem compensadas. É bom (ainda que de modo muito inadequado) que reparações estejam sendo pagas, mas, até os perpetradores dos crimes serem os que pagam o preço, as lições cruciais não serão aprendidas e os incentivos cruciais não serão impostos.
Há muitas instituições destrutivas que permitiram essa eugenia, mas, entre elas, está a própria prática da taxação governamental. Permitiu que os perpetradores conduzissem suas operações sem incorrer em despesa pessoal, e através da taxação dos muitos inocentes que agora estão sendo o bode expiatório que vai proteger os poucos culpados das punições que eles poderiam ser forçados a suportar pela sua ofensa ao público.
Se os perpetradores desses crimes contra a humanidade não forem encarcerados por toda a vida, ou punidos rigorosamente como qualquer cidadão privado que cometesse os mesmos crimes, então ao menos os cidadãos que involuntariamente pagam os seus salários e financiam os programas de sua imaginação distorcida poderiam lutar para evitar o envolvimento forçado dos cidadãos que financiam tais programas com seus impostos.
Se seus impostos fossem gastos somente com melhorias na saúde, educação e segurança, em vez de amiúde financiarem o exato oposto dessas coisas, como foi o caso na Califórnia, então a oposição à predação da coleta de impostos não seria tão urgente. Mas, no mundo real, aqueles que são malévolos o bastante (ou que apenas estão sob a influência de ideias malévolas) para pensar que podem gastar o dinheiro alheio contra a vontade alheia também costumam ser malévolos de outras maneiras.
Há muitas razões para lutar contra a taxação governamental. Talvez você seja um trabalhador pobre ou de classe média suando para bancar a educação dos filhos. Talvez você seja um empreendedor visionário tentando bancar alguma pesquisa médica ou tecnológica capaz de mudar o mundo.
Mas ao menos uma razão tão boa quanto qualquer outra para se opor ao confisco da sua riqueza é impedir que instituições como o governo da Califórnia gastem mais um tostão em suas campanhas de terror e destruição reprodutiva.
Saul Zimet é coordenador de dados para o site HumanProgress.org, do Instituto Cato, e estudante de pós-graduação em economia.
©2023 Foundation for Economic Education. Publicado com permissão. Original em inglês.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
A gestão pública, um pouco menos engessada
Projeto petista para criminalizar “fake news” é similar à Lei de Imprensa da ditadura