“Alguns livros são injustamente esquecidos; nenhum livro é injustamente relembrado.” A frase do poeta inglês W. H. Auden serve como luva para apreciar Quando os livros foram à guerra, da jurista e historiadora norte-americana Molly Guptill Manning, lançado em 2015 no Brasil. A obra não sapateou na lista dos mais vendidos. Sua chegada foi mais secundária que a miss Filipinas, mas há de dormir em berço esplêndido na memória daqueles que, mais do que a literatura, amam os livros e o que representam.
Molly não escreveu um texto de história, como se podia esperar, mas uma reportagem, merecedora de um Pulitzer, sobre um assunto que parece cativar menos gente do que a filosofia de Spinoza. Mas a despretensão aqui é qualidade. Independente de alguém estar doido para saber ou não, a autora mostra o que os soldados de seu país liam na Segunda Guerra, e que o faziam mesmo diante da possibilidade de uma mina terrestre mandar suas pernas pelos ares. Muitos sucumbiram levando um exemplar na calça, consagrando o livro de bolso.
Ao soltar a lista, Molly esmiúça um episódio pouco conhecido do maior conflito bélico do século 20. Entre o ataque a Pearl Harbor, em 1941, e o beijo do marinheiro e da enfermeira, flagrado por Eisentaed na Times Square, em 1945, os EUA se lançaram numa comovente campanha para angariar livros, alento para os oficiais nas horas em que nada acontecia. Os americanos tinham know-how nesse tipo de mobilização, mas pareciam mais inclinados a reunir tocos de borracha, trapos, papel e metais do que em angariar cópias do best-seller Tree Grows in Brooklyn, de Betty Smith.
Foi preciso convencê-los de que ler e guerrear não eram dois verbos incompatíveis. Conseguiu-se. Ao contar como, Molly Manning escreve um épico bélico, só que sem batalhas campais. Nancys e Daisys limparam suas estantes para abastecer Davids e Jimmys que lutavam na Europa, espremidos dentro de um coturno e sem saber se iam voltar para o Tennesse ou o Alabama. Cada linha lida poderia ser a última.
Os burocratas custaram em aderir à chamada Victory Book Campaign (VBC) e a seu ambicioso objetivo de coletar 10 milhões de exemplares. Poucos imaginavam que alguém tivesse cabeça para ler O grande Gatsby enquanto um torpedo despencava do céu. Morderam a língua – não só Scott Fitzgerald virou um clássico como os livros que foram à guerra mudaram o perfil dos leitores americanos dali em diante, forjando um dos mais bem-sucedidos projetos e leitura de que se tem notícia.
Isso só bastaria para que o texto de Manning ganhasse um lugar nas estantes ao lado da Bíblia. Mas ela vai mais longe ainda: descreve como se formou a rede de pessoas comuns que encheu cestões com obras como Into the valley, de John Hersey. Sugere que esse gesto valeu mais do que uma carteira de Lucky Strike e quase tanto quanto uma canção de Marlene Dietrich em visita ao front. Ao mesmo tempo, tira a terra que encobria uma verdade esquecida – o sentido que os livros ganharam naqueles dias em preto-e-branco, quando livros salvavam soldados, mas também eram queimados em praça pública. Eis o ponto.
Bibliotecas nos sótãos
A destruição de livros como sinônimo de destruição de ideias é tão velha quanto o alfabeto. O conhecido levantamento do ensaísta venezuelano Fernando Báez, sobre esse quesito, não deixa passar uma faúlha – vai da Suméria ao Iraque de agora. Mas em 1939, quando a Segunda Guerra começa, boa parte do mundo ainda parecia sentir os olhos arderem pela fumaça de 10 de maio de 1933. Há quem defenda que a guerra começou ali, quando 80 mil pessoas, metade armada com tochas, queimaram de enfiada 25 mil livros em Berlim. O “ritual macabro” se repetiu em 90 e tantas cidades alemãs, tudo transmitido pelo rádio, é claro. Até o final da guerra, 100 milhões de livros viraram cinzas, na tentativa de sepultar 5,5 mil autores. Foi o “bibliocausto”, na expressão usada pela revista Times.
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À época, a reação planetária ao bibliocausto virou um caça desgovernado. Os nazistas seguiram queimando livros. Em resposta, aqui e ali gente furiosa dava o troco, queimando os livros dos nazistas e, por tabela, os dos alemães, parecendo supor que qualquer louro germânico ou teuto escondia uma suástica no cós da calça. Ponha-se Curitiba na lista de cidades em que livros e jornais alemães foram pilhados, saqueados, confiscados – quando não, queimados.
O fato é conhecido, mas contado ao pé do ouvido. Há boas pesquisas sobre a saia justíssima enfrentada pela colônia alemã na capital, tanto na Primeira quanto na Segunda Guerra. Raros desses escritos sonegam a informação de que em 1917 e em 1942, agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) invadiam jornais, clubes, pensionatos e até residências atrás de livros que confirmassem um dos fantasmas de então – a de que havia aqui alemães instruídos pelo nazismo.
Só no Clube Concórdia – 2,8 mil livros teriam sido confiscados pelo Dops, então sob o comando do delegado Valfrido Pilotto, personalidade que tinha lá suas diferenças com os alemães. O destino desses livros é desconhecido ou um segredo bem guardado. Não faltam perguntas. Se foram queimados, a repressão em Curitiba agiu igual aos jovens incendiários de Berlim. Caso tenham sido devolvidos, a comunidade optou por sepultar o fato. Alguns volumes, por certo, foram salvos nos sótãos, a cada visita do temido Pilotto. Volta e meia, reaparecem solitários, nos sebos da cidade. A letra em gótico denuncia o passado. Falta-nos uma Molly Manning para responder o que havia nessas bibliotecas esquecidas de Curitiba, e o que liam os nossos alemães do Colégio Progresso ou da Sociedade Rio Branco. (JCF)
Exercício de apagamento
Durante a guerra, a imprensa incitava ódio contra alemães, gerando confiscos e saques. Trauma e relações de parentes com o Partido Nazista impõem até hoje “lei do silêncio” sobre aqueles dias de 1942.
“Penso que é forçado relacionar o saque às bibliotecas alemãs na capital à reação ao bibliocausto de 1933. Confiscar obras era uma prática comum no Brasil nacionalista dos anos 1930 e 1940”, ilustra a historiadora Regina Maria Schimmelpfeng de Souza.
Ela fala do país que promovia “queima de livros”, a exemplo do que ocorreu em 1937, quando mais de mil obras, com preferência para as de Jorge Amado e José Lins do Rego, viraram poeira na Bahia, sob a alegação de que propagavam o comunismo. Os exemplos são muitos e foram listados pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, referência no assunto.
Regina – autora de Deutsche Schule, a Escola Alemã de Curitiba: um olhar histórico (1884-1917) – figura no seleto grupo de pesquisadores, pontificado por Rafael Athaídes, autor do referencial Partido Nazista no Paraná, que se debruça sobre a espinhosa relação dos germânicos e seus descendentes com a Alemanha de Hitler – o que inclui o intercâmbio de livros.
“É tudo muito vago. Não sabemos o destino desses livros. Os alemães daquela época, ainda vivos, são muito reticentes. Imagino que muitas obras tenham sido escondidas nos sótãos, longe da vigilância. Algumas podem ser encontradas hoje nos sebos”, comenta a historiadora, no que é confirmada: “Eu era muito pequeno em 1942, mas lembro que minha família tinha livros escritos em alemão. Sentíamos medo de que fossem confiscados e queimados. Foram colocados no sótão”, lembra o professor Ernani Costa Straube, 86, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.
Esquecer?
O escritor Miguel Sanches Neto, autor de A segunda pátria, ficção histórica lançada em 2015, faz um exercício de imaginação para tratar do período: “E se Getúlio Vargas se alinhasse com a Alemanha, em vez de ceder à pressão dos EUA”. Para produzir seu livro, fez ampla pesquisa, o que lhe permite dizer: “Os alemães querem apagar esse episódio. Havia entre eles até quem escrevesse romances de divulgação”, comenta, sobre a lei do silêncio que impera entre os que ainda se lembram dos anos 1940 na cidade.
Do outro lado da moeda, há os traumas provocados pela associação imediata entre ser alemão e ser nazista. Difícil não repassar pelo menos uma recordação do jornalista Rodrigo de Freitas, incitando o ódio contra os “súditos do Eixo” nas ondas da PRB2 ou na coluna que assinava na Gazeta do Povo.
“Ninguém gosta de falar sobre esse assunto. Até livros infantis escritos em outras línguas foram proibidos de circular”, reforça o pesquisador da área de linguística e filosofia Ulf Gregor Baranow. Ele reforça uma opinião cultivada por Regina e outros estudiosos.
Pilotto, o temido
Ralf Kyrmse, médico aposentado, vê uma linha direta entre o controvertido delegado do Dops Valfrido Pilotto – que teve seu pai morto por alemães gaúchos, no início da década de 1930 – e a rigidez algo desmedida com que a comunidade alemã foi tratada em Curitiba, depois de 1942.
Setenta anos depois – Ralf encontrou motivos para rir. Certa feita, chamaram atenção de seu avô, na rua, por estar falando em outra língua – após a nacionalização de 1938. “O senhor não pode falar em alemão”. Ao que respondeu – “mas é austríaco”. Silêncio. “Era a mesma coisa que dizer que estava falando americano, e não inglês”, diverte-se. “Eram tempos difíceis. A empresa Byington, na Rua Barão do Rio Branco, foi toda quebrada. Acharam que era alemã”.
Três alemães não podiam andar juntos – o que valia para os meninos de calça curta, como Ralf, que costumava escalar o Morumbi. Na ocasião, em companhia de outros adolescentes alemães, e também italianos e japoneses, foi chamado a uma chefatura, onde hoje funciona o Solar do Barão, na Carlos Cavalcanti. Pediram que evitassem “subir”, pois “vá lá” que passassem alguma mensagem aos submarinos alemães.
Livros que Alemanha mandava se misturavam a obras religiosas e de canto
Durante a Segunda Grande Guerra, os alemães e seus descendentes somavam 230 mil pessoas no Paraná. Na capital, eram bem-sucedidos, em especial os chegados entre 1920 e 1929, já beneficiados pela campanha de erradicação do analfabetismo na Alemanha. Tratava-se de uma população ilustrada, urbana, e de alguma maneira exposta aos livros espalhados aqui e ali pela NSDAP – Organização do Partido Nazista para o Exterior, criado em 1934, justo os procurados pelo Dops.
Se fosse luterana – e 90% dos alemães paranaenses, estima-se, era – tanto melhor: mais intimidade com os livros e com a música, o que manifestavam com classe, frequentando as aproximadas 26 sociedades étnicas da capital. Como a preocupação do governo, até 1938, era com os comunistas – e muitos livros políticos foram confiscados e queimados na década de 1930 – os alemães podiam não só falar a língua de Goethe como guardar – em casa, na escola e no clube – os livros enviados pelo Partido Nazista via NSDAP – em parceria com a VDC – União das Sociedades Alemãs. Os dados são do historiador Rony Christian Neitzke.
Os livros de tendência nazista não eram o grosso das bibliotecas alemãs. Estudos de Maria Luiza Tucci Carneiro – mais concentrados no estado de São Paulo – mostram que havia nessas coleções panfletos nazistas, antissemitas, exaltações ao III Reich – benesses da NSDAP– mas também discos da Ópera Fausto e os Contos dos Bosques de Viena, assim como livros escolares, de cânticos e religiosos. É provável que nas estantes curitibanas não fosse muito diferente. Mas “a polícia política tinha ânsia de enxergar suásticas até em livros de Goethe”, observa Rafael Athaídes.
Parte do mito do “perigo alemão”, expressão cunhada pelo crítico literário Sílvio Romero, se forma nesse cenário. Uma rica biblioteca como a do Clube Concórdia – segunda consta, destituída de livros em português – deixava a Dops com sangue nos olhos. A Lei da Nacionalização, em 1939, vai começar uma caçada de gato e rato contra a língua alemã e, por tabela, usa de força para blindar os livros que aqueles letrados tanto cultivavam.
Ao lado dos italianos e dos japoneses, nos anos seguintes os alemães vão provar o gosto amargo da censura postal, além de sentir a sanha de populares ensandecidos.
O enigma das bibliotecas alemãs
O historiador paranaense Rafael Athaídes – professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – se tornou uma voz dissonante em meio aos estudos sobre o Paraná e o nazismo. Não assina embaixo de nenhum senso comum sobre a questão. Ele investiga – e prova disso é o hoje referencial O Partido Nazista no Paraná 1933-1942, lançado pela Editora UEM (2011).
A pesquisa de Athaídes tangencia o “bibliocausto” às avessas, que levou ao esquecimento bibliotecas inteiras, impedindo de saber, inclusive, o que liam os alemães na época da Segunda Grande Guerra. Secundária na aparência, essa questão pode ser uma das chaves para fazer avançar os estudos sobre um dos mais controversos capítulos da história paranaense.
Confira a entrevista dada pelo historiador à Gazeta do Povo.
O que se pode afirmar com segurança sobre o confisco? Há alguma hipótese sobre onde esses livros foram parar? Teria havido queima, a exemplo de outros lugares?
A apreensão de livros alemães durante a Segunda Guerra é o corolário de um processo que teve seu início com o golpe que instituiu o Estado Novo (novembro de 1937). Embora a campanha de nacionalização começasse já em 1937, diversos decretos publicados em 1938 deram respaldo a ações como fechamento ou ‘abrasileiramento’ de escolas e clubes alemães. Com a publicação do Decreto-Lei n.º 1545, de 25 de agosto de 1939, forçou-se legalmente o que chamavam de “assimilação dos quistos raciais”: “Essa adaptação – versava o Decreto – far-se-á pelo ensino e pelo uso da língua nacional, pelo cultivo da história do Brasil, pela incorporação em associações de caráter patriótico e por todos os meios que possam contribuir para a formação de uma consciência comum”.
A língua foi colocada como item elementar da “adaptação” nos projetos varguistas. Embora não versasse sobre apreensões, a legislação previa que os estados, com auxílio do Governo da União, organizariam “bibliotecas de livros nacionais nos centros de aglomeração de estrangeiros”. Isso significou o primeiro passo, xenófobo por excelência, para a incorporação de culpa sobre as leituras de obras estrangeiras.
A esse quadro se somou, em setembro de 1939, o início da Segunda Guerra Mundial e a posição de neutralidade brasileira. Como a historiografia mostra, a despeito dos flertes de Getúlio com a Alemanha, a neutralidade se mostrou pendente aos Aliados, ao longo do tempo.
O Decreto-Lei n.º 1.561, de 2 de setembro de 1939, que aprovava as regras da postura neutra, estabelecia em seu primeiro artigo: “O Governo do Brasil [...] não permitirá [...] que os nacionais ou estrangeiros, residentes no país, pratiquem ato algum que possa ser considerado incompatível com os deveres de neutralidade do Brasil”. Para os alemães aqui residentes isso era muito vago, na medida em que às autoridades locais competiam julgar quais seriam esses atos. Com a ajuda da população, por meio de delações, alguns alemães e descendentes foram investigados mais de perto e tímidos confiscos de livros e radiotransmissores foram feitos no período em questão (setembro de 1939 – janeiro de 1942).
Quando sobreveio Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, a situação dos alemães começou a ganhar contornos dramáticos. 13 dias depois do ataque japonês, a Chefatura de Polícia do Paraná emitiu uma Portaria Reservada (de n.º 519-A), determinando aos seus funcionários:
O chefe de polícia do Estado do Paraná, considerando a grave situação decorrente da guerra entre os Estados Unidos da América e Japão; considerando ainda a solidariedade empenhada pelo Governo e povo brasileiros aos Estados Unidos da América do Norte pelo Presidente da República; considerando igualmente os compromissos firme e solenemente assumidos pelo Brasil com os demais países do continente em obediências à política do pan-americanismo a que lealmente nos associamos; [...] resolve determinar a todos os funcionários da Polícia Civil que, a) envidem todos os esforços no sentido de ser mantida em absoluta ordem e tranquilidade à população do Estado, em face dos acontecimentos que se desenrolam no mundo; b) concorram para evitar quaisquer manifestações contrárias aos Estados Unidos da América do Norte e à política seguida pelo Governo Brasileiro [...]; c) se abstêm de comentar as presentes instruções, que são de caráter reservado; [...] e) à Delegacia de Ordem Política e Social, especialmente, recomenda a mais severa vigilância em torno de cidadãos japoneses, alemães e italianos, devendo ser estudadas e submetidas ao exame desta Chefia as providências aconselháveis no sentido de anular a atividade perigosa aos interesses nacionais que, possam praticar tais súditos estrangeiros.
Não tardaria para que o Brasil ratificasse a posição aventada pelo Chefe de Polícia paranaense. Isso se deu em 28 de janeiro de 1942, com o rompimento das relações diplomáticas e comerciais com as nações do Eixo, após a Terceira Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas (também conhecida como Conferência do Rio de Janeiro). No mesmo dia, o Paraná publicou a famigerada Portaria n.º 30, impondo “restrições aos estrangeiros”, em obediência a uma circular do Ministro da Justiça, datada do dia anterior. Nas semanas seguintes dezenas de alemães, nazistas ou não, foram presos interrogados (no limite, alguns seriam enviados a colônias penais de internamento naquele mesmo ano). Os “súditos do Eixo” perderam o direito de ir e vir, sem prévia comunicação ou salvo-conduto, o direito de portar e comerciar armas, de se reunirem em comemorações privadas; além disso, a portaria versava, nas proibições gerais, o uso de idioma daquelas três nações nas conversações em lugar público (rua, cafés, casas de diversões, etc.); a distribuição de quaisquer escritos nos idiomas acima referidos; cantar ou tocar os hinos daquelas nações estrangeiras; fazer saudações peculiares aos partidos políticos dos três países retro aludidos; a exibição em lugar acessível ou exposto ao público, de retratos de membros dos governos dessas nações.
Sob esse contexto, qual seja, o da repressão desenfreada aos ditos “eixistas”, teve início a apreensão sistemática de bens desses indivíduos e de suas instituições comunitárias. A Dops pôs em funcionamento um aparato repressor que, embora precário em sua estrutura, foi responsável por desmantelar o que havia sobrado do Partido Nazista e da Ação Integralista Brasileira (partidos na ilegalidade desde o início do Estado Novo). Arbitrariamente, residências, clubes e estabelecimentos comerciais de alemães foram invadidos, em busca de suspeitos e/ou provas de atividades subversivas, como espionagem ou qualquer outro tipo de facilitação para o esforço de guerra germânico.
Quando, nos meses que se seguiram, navios brasileiros foram afundados pelos alemães no Atlântico, o Governo Federal decretou que dos bens dos “súditos do eixo” sairiam as indenizações. Em março, o Paraná estabeleceu a intervenção nos clubes e nas sociedades das comunidades italiana e alemã, o que incluía o confisco dos itens ‘perigosas’ e a entrega dos demais a instituições brasileiras guardiãs.
É o caso da então Associação Alemã de Cantores (Verein Deutscher Saengerbund), ou Clube Concórdia, o nome “adaptado”) que após o processo de abrasileiramento perdeu completamente a autonomia. Em 1942, em função da guerra, seus bens ficaram sob a guarda da Cruz Vermelha e, mais tarde, do Clube Atlético Paranaense. A polícia tinha ojeriza da biblioteca do Concórdia, que “de milhares de volumes, não [possuía] sequer um livro editado em língua portuguesa” (nas palavras de um relatório da Dops, datado do pós-guerra).
Nem mesmo se preocuparam, os policiais, em fotografar uma suástica nos livros (se é que havia), prova de que nazismo e germanismo permaneceram no mesmo patamar para a opinião policial – e partes da opinião pública – até o fim da guerra.
Toda a biblioteca do Concórdia foi confiscada, até mesmo os livros emprestados aos sócios foram exigidos, conforme o Auto de Apreensão.
Em fins de agosto viria a declaração oficial de guerra do Brasil à Alemanha e Itália. Com o inimigo em solo nacional, justificava-se as intervenções nas vidas dos “eixistas” pela lógica da culpabilidade, fundamentada na dúvida. Sem qualquer treinamento específico, os policiais da Dops faziam o gênero “eu não sei o que está escrito, mas pode vir a ser perigoso”. Amontoaram-se os registros de apreensões de objetos, entre eles os livros, cujos títulos, às vezes, passavam por um tradutor juramentado (depois da apreensão!), para a certificação da ameaça.
É óbvio que os filiados ao Partido Nazista, os simpatizantes teutos mais enérgicos e certos integralistas (brasileiros ou teutos) simpáticos ao III Reich possuíam livros e outros materiais de propaganda nazista (isso nunca fora proibido até 1938). É assim que, nas diligências de março de 1942, encontraram na residência do tesoureiro do Círculo Paranaense da NSDAP livros sobre feitos militares alemães, livros sobre a “nova Alemanha de Hitler”, o próprio Mein Kampf, uma publicação integralista (os filhos do tesoureiro eram brasileiros filiados à AIB) e até material da AO (a Organização para o Exterior do Partido Nazista).
Não obstante, quanto temos a junção da política xenófoba varguista com a ideia do alemão “quinta-coluna”, não havia porquê de a polícia política fazer distinção entre material político/ideológico e, digamos, literatura romântica alemã. O integralista teuto-brasileiro Frederico Kobs teve sua casa revirada pela Dops em 24 de agosto de 1942. Entre fotografias integralistas, rádios receptores, combustível, um “32” e alguma munição, constavam “dois livros de missa, escritos em idioma alemão” e “um volume em alemão, intitulado Madame Narcisse. A novela impressa sobre a Polônia russa se tornou tão perigosa, quanto uma arma de fogo.
Em suma, nos procedimentos policiais, há pouco diferenciação entre a obtenção de provas e a definição da validade das provas. Um Fausto e um Mein Kampf, encontrados em casas distintas, poderiam colocar os investigados no mesmo plano dos “nazistas fervorosos” (termo muito usado por Pilotto). Em muitos casos, o caráter nazista ou não de uma evidência era atribuído no momento mesmo do arrolamento. O uso da língua de Hitler era a garantia.
Sobre a localização dos itens confiscados. Ao fim da guerra, havia a possibilidade de cidadãos e instituições requererem seus bens, por meio de petições, sobre as quais a decisão final ainda cabia à polícia. Foi dessa forma que alguns clubes voltaram a funcionar com suas sedes e bens (não mais com seus antigos nomes). Assim, cada caso precisa ser visto especificamente, no intuito de sabermos se houve ou não requerimento de devolução.
Há também outra possibilidade. Mais acima falei do museu de apreensões organizado por Valfrido Pilotto, que se tornou um Departamento de Pesquisas e Atividades Antibrasileiras. Sabemos que os EUA, no contexto da catalogação, requereram e levaram muito material. Quem diz isso é o próprio Pilotto: “E, assim, pudemos ir deixando seguir para os EE.UU., sem o mínimo receio de perda, dezenas e dezenas de peças, tais como livros, álbuns, folhetos, documentos, relatórios e mapas, dentre a farta presa que fizéramos ao nipo-nazifascismo”. Em minhas pesquisas, não encontrei referências à devolução desse material ao Paraná.
Sobre a queima de livros, cheguei a consultar alguns colegas que estudam o tema dos alemães em Curitiba. Nenhum deles ouviu falar em evento semelhante. Mas não é improvável que livros tenham sido destruídos no fatídico comício de 18 de março de 1942. No evento, uma multidão raivosa – instilada por oradores não menos raivosos – pôs-se a quebrar estabelecimentos comerciais, casas e qualquer coisa que fosse entendida como alemã em Curitiba. Era um comício de protesto contra o torpedeamento dos navios brasileiros. Até mesmo instalações comerciais de indivíduos de outras nacionalidades, cujas lojas tinham nomes “confundíveis” com os idiomas do Eixo, foram atacados pela multidão. 68 locais foram alvos de depredações, invasões e incêndios.
O que se sabe sobre o grau de instrução dos imigrantes alemães nas quatro primeiras décadas do século 20?
Que os alemães valorizavam demasiadamente a instrução é lugar-comum. Tanto que são o grupo étnico que mais fundou escolas no Brasil. Estudos mostram que algo entre 80% e 90% dos alemães que entraram no Brasil nas três primeiras décadas do século eram alfabetizados, enquanto o Brasil, tinha quase a mesma cifra de analfabetos. Não é estranho, portanto, o fato de a polícia ter encontrado livros, revistas ou folhetos em quase todas as diligências nas casas de teutos e descendentes, até mesmo de agricultores (até porque muitos se declararam “agricultores” para entrarem no Brasil, mas faziam outra coisa na Alemanha).
Ademais, muitos desses alemães eram qualificados: funcionários do setor urbano, comerciantes, burocratas, fotógrafos, técnicos, professores, profissionais liberais, dentistas, etc. Ou seja, para além, dos números da alfabetização, os imigrantes tinham formação superior ou técnica e se destacavam nos centros urbanos brasileiros.
Darei um exemplo de uma pesquisa em curso, que demonstra essa questão. Utilizando a documentação da polícia política, o historiador Márcio J. Pereira fez uma análise dos indivíduos detidos pela Dops/PR durante o processo mais agudo da repressão aos imigrantes alemães considerados “eixistas” (incluindo brasileiros com vínculos de parentesco ou ascendência germânica). Num total de 90 pastas individuais da Dops, verificaram-se as seguintes cifras: 29 profissionais liberais, 27 industriais ou comerciantes, 14 funcionários em posições estratégicas, 7 agricultores e 13 não determinados por categoria específica. Esta última categoria inclui algumas mulheres (genericamente “do lar”), uma adolescente e alguns marinheiros que se evadiram da Marinha alemã.
A categoria profissionais liberais possui índice socioeconômico variável, uma vez que engloba de médicos a marceneiros numa mesma divisão, mas carrega como constante a formação profissional e/ou técnica. A categoria mais abastada se encontra entre os industriais e comerciantes, sendo que os últimos ocupavam, na Curitiba da década de 1930, 52,7% do total das empresas até então registradas na Junta Comercial do Paraná. Os considerados estratégicos também possuíam grau de instrução elevado, uma vez que ocupavam cargos no Consulado ou chefias em empresas estratégicas como a Cia Paranaense de Telefonia, a Cia Luz e Força e também nos portos de Paranaguá e Antonina. Desses 90 prontuariados, temos um total de 2/3 de alemães natos (60), sendo que 24 deles com certeza pertenceram ao Partido Nazista.
Temos alguma pista sobre o que liam os alemães mais ilustrados?
Não podemos nos esquecer de que uma das metas da Alemanha, pós-unificação, era a da erradicação do analfabetismo. Ensinar as pessoas a ler e escrever se tornou um dos propósitos da política de Bismarck, o que foi alcançado por volta de 1875. Ao aceitarmos que os alemães mantinham o hábito da leitura, se faz necessário encontrarmos formas de descobrir o que liam os imigrantes aqui residentes.
Em pesquisa conjunta com o professor Márcio J. Pereira, delimitada nas primeiras décadas do século 20, encontramos nos autos de apreensão lavrados pela Dops a possibilidade de mapearmos as obras que faziam parte desse ambiente alemão de leitura. Analisando 90 pastas de alemães e descendentes prontuariados pela Dops, concluímos preliminarmente que, na maioria delas, livros, revistas e jornais constam nos autos de apreensão. São referidos pelos inspetores, invariavelmente, como “literatura subversiva”.
Dos autores alemães mais conhecidos, os que frequentemente aparecem são Goethe e Schiller, os amigos e expoentes do movimento romântico alemão. Assim, no auto da apreensão, realizada na casa do alemão Erich Heinze, comerciante de 58 anos, foram encontradas as teses de Schiller sobre aquele movimento literário.
O grande volume de livros políticos aprendidos pela Dops tinha vínculos com os temas da atuação da NSDAP no mundo, da figura do Führer ou do “protagonismo alemão” diante dos outros povos. Entre os nomes mais encontrados estão os livros Grossdeutshland e Hitler Regiert, traduzidos grosseiramente por Grande Alemanha e Hitler Governa. Alguma literatura antissemita estava presente, mas não em quantidade considerável, como a obra Forças Secretas da Revolução, de Léon de Poncins.
Para além da literatura sobre o Partido, sobre as questões expansionistas de Hitler ou o que efetivamente se trata de propaganda nazista, evidenciamos novelas em alemão, livros de história da Alemanha, variadas obras literárias menores, além de obras sobre grandes músicos como Bach, Wagner e Schutz. Na casa de Georg Guilerme Fillies, comerciante, alemão de 29 anos, foram listados livros específicos sobre a vida e a música de Johann Sebastian Bach.
Jornais e revistas alemãs eram leituras comuns nas casas dos prontuariados: jornais vindos da Alemanha ou editados no Paraná e em São Paulo, como o Aurora Alemã (jornal oficial da NSDAP no Brasil, publicado na capital paulista); revistas como a FM-Zeitschrift (revista mensal da SS) e a Der Deutsche im Ausland (O alemão no exterior), também figuram entre os pertences.
É muito provável que as maiores apreensões tenham se dado nos clubes e nas sociedades alemãs, uma vez que seus acervos eram compartilhados por centenas de imigrantes e descendentes. Os maiores confiscos de acervos pessoais de que se tem registro na DOPS/PR ocorreram nas residências de membros da NSDAP. A maior delas se deu na casa do comerciante Hans Garbers, alemão de Hamburgo que possuía uma distribuidora de rádios, vitrolas e discos em Curitiba, representante de grandes marcas e importador. Outra grande lista foi evidenciada na casa do profissional liberal Gustavo Gaase, revendedor da Chymica Bayer S/A. Na casa do eletricista Ernest Minjon, da Cia. Telefônica Paranaense, também foi descoberto um acervo considerável. O clássico Mein Kampf foi encontrado na casa do industrial alemão Kurt Maria Boiger, bem como vasta literatura nazista, cartas e informes do Partido sobre como agir durante o período de cooptação de membros inclusive.
Tudo o que foi aqui apresentado, tomou por base um tipo de documentação histórica, extremamente hostil, tanto aos perseguidos do passado, quanto aos historiadores do presente. Os registros são lacunares, de forma que podem ter ocorrido outras apreensões não registradas ou cujos registros se perderam.
Que desafios um episódio como esse, o do confisco, traz para a História? Em que pode contribuir para compreender a presença dos alemães na cidade?
Há uma tremenda dificuldade hoje de se fazer juízo do que aconteceu com os alemães nos anos 1930 e 1940. Os historiadores, mais próximos dos documentos, veem a situação de forma mais complexa do que as expressões de generalizações politicamente motivadas da atualidade. Havia uma imensa gama de posições políticas entre os alemães: da explícita filiação pró ou antinazista, até conformações de opiniões subjetivas que jamais qualquer pesquisador vai perscrutar. Nem os nazistas, nem o Estado Brasileiro/Paranaense estavam preocupados com isso. Cada um operava com seus mecanismos niveladores: “todos devem ser nazistas”, diziam os primeiros; “todos são nazistas”, os segundos. Não raro, um policial da Dops, sabendo do que o outro lado era capaz, aterrorizava o depoente: “Você está ciente do que pode acontecer com você se os nazistas souberem o que está nos contando?”
O desafio da História é, sem dúvida, lembrar a sociedade daquilo que até mesmo os alvos dessas ações queriam esquecer. Trata-se de uma parte da história do Paraná e do Brasil, que mostra o quanto a guerra, mesmo distante, produziu uma miríade de injustiças e violações de todos os lados.
Uma guerra particular
Confira passagens que acirraram a perseguição do Estado brasileiro aos alemães que viviam no Paraná
1917
Em 3 de abril, navio brasileiro “Paraná” é afundado na Europa por submarino alemão. Em Porto Alegre (RS), polícia confisca jornais alemães. No dia 17 de abril, em Curitiba, apedrejamento e saque do Teatro Hauer, da Sociedade Teuto Brasileira e da sede do jornal católico alemão Der Kompass (Rua 24 de Maio, 103), dos frades franciscanos.
Cidade abriga passeatas contra alemães e invasão das sociedades culturais. Revoltosos confiscam quadros do Kaiser e os destroem. Escola Alemã, na hoje Praça 19 de Dezembro, é invadida, vandalizada e fechada em outubro, por força de decreto que proíbe funcionamento de instituições de ensino estrangeiras. Tinha 500 alunos.
1920-1929
Em decorrência do pós-Primeira Guerra, nos anos 1920 cerca 75 mil alemães se mudam para o Paraná. São oriundos de uma Alemanha que já tinha erradicado o analfabetismo – sendo habituados à leitura. Na década seguinte, total da população de origem germânica no estado chegará a 230 mil pessoas. Estima-se que não mais do que 185 eram filiados de fato ao Partido Nazista, sendo 94 em Curitiba. A convivência com eles nas sociedades étnicas não se dava de forma tranquila.
1933
Bibliocausto na Alemanha. Livros de Einstein, Thomas Mann, Arthur Schnitzler e Remarque vão para a fogueira. Há revides em todo o mundo, com a queima de livros alemães.
1934
Criação do NSDAP – Organização do Partido Nazista para o Exterior, que terá braço em Curitiba, reforçando o senso comum de que adeptos e alemães em geral representavam perigo à soberania nacional.
1936
Projeção no Cine Imperial do documentário O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, com sessões especiais para alunos das escolas alemãs.
1937
Sociedades culturais alemãs mudam de nome para “Rio Branco”, “Duque de Caxias” e “Concórdia”, entre outros.
1938
Lei da Nacionalização obriga imigrantes a falarem português, proíbe professores estrangeiros nos colégios de colônia e coíbe circulação de livros e jornais em outros idiomas, assim como participação nas associações teutas, entre clubes e corais. Mais de mil escolas étnicas serão fechadas. À época, circulavam em Curitiba o jornal católico Der Kompass (“a bússola”) e o agnóstico Der Beobachter (“o observador”).
1939
Lei Federal 1208/8 limita cargos públicos a brasileiros natos ou naturalizados, medida que acentua animosidade contra estrangeiros – em especial contra os bem-sucedidos alemães, fortes no comércio e na indústria.
18 de março de 1942
Manifestação contra alemães leva à depredação de 68 estabelecimentos comerciais – a Foto Progresso, de Alfredo Weiss, entre elas. Casa Mousseline é quebrada – tipo de tecido é tomado como referência ao fascista italiano Mussolini.
19 de abril de 1942
Cerca de mil pessoas (há quem diga 10 mil) depredam clubes alemães, italianos e japoneses. Uma das mais atingidas será a Sociedade Rio Branco, então na Rua Carlos de Carvalho. O Clube Concórdia, na Rua Carlos Cavalcanti, é invadido e destruído a machadadas. Piano é jogado do palco. Salão nobre é usado para partida de futebol. Em tese, durante o saque, livros e documentos estrangeiros foram confiscados e queimados. Famílias alemãs ricas, com bibliotecas, eram revistadas, assim como locais que reuniam alemães, a exemplo da Pensão Kreutz, na Rua Cândido Lopes, 261.
7 de setembro de 1942
Repressão a movimento que pretendia queimar e destruir bens dos alemães em Paranaguá.
1943
Clube Concórdia tem 2,8 mil livros apreendidos pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Relatos orais dão conta de que a polícia queima de registros de nascimento, casamento e óbitos. Em 1943, jornais usam a expressão “estrangeiros perigosos”. Tornam-se corriqueiras denúncias vazias contra imigrantes nas delegacias. Mais de 3 mil alemães, japoneses e italianos serão privados de liberdade no país, sendo isolados em 13 abrigos diferentes. Há quem os considere campos de concentração à brasileira.
1944
Germanofobia dá sinais de diminuição.
Fonte: Pesquisa em monografias, dissertações, teses e artigos de Roseli Boschilia, Petra Laus Henning, Márcio de Oliveira, Rony Christian Neitzke, Regina Maria Schimmelpfeng de Souza e Márcio José Pereira.