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Artigo

Uma recordação do nosso purgatório

As Santas Almas no purgatório, detalhe do altar na Igreja de São Eustáquio em Dobrota, Montenegro. (Foto: BigStock)

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Em fevereiro deste ano, a palavra “aglomeração” não tinha entrado na moda, e um monte de gente junta na rua se divertindo significava “festa”. 2020 parece um ano que começou em março, arrastou-se num março eterno, e só por agora parecemos começar a sair de uma dormência, num estranho outubro com cara de começo de ano.

Não que tenhamos morrido de tédio. Muitos tiveram que se reinventar, mudar de profissão. Outros não conseguiram, e vivem angustiados.

Um amigo meu acertou em cheio ao concluir que estamos no Purgatório. Sejamos ricos ou pobres, concursados ou tementes ao desemprego, ficamos todos em suspenso nos perguntando: “e depois?”. A expressão “o novo normal”, que expressa esse anseio, se afigurava a uns como um inferno onde as pessoas não enxergam as bocas alheias, a outros como um paradisíaco fim do capitalismo. A quarentena é um estado geral de suspensão e suspense do qual ninguém gosta.

Assim, não é de admirar que os altos e baixos vividos nesses oito meses de purgatório pareçam sonho, e se esvaneçam agora que começamos a despertar. Quem se lembra daquele dia em que as torcidas organizadas foram apresentadas ao Brasil como manifestantes em defesa da democracia?

A guerra às estátuas 

Em 25 de maio, George Floyd morreu sob o pé de um policial. Um caso de violência num país de maioria branca protestante, onde a polícia é tradicionalmente composta por brancos, e onde os indivíduos recebem rótulos étnico-raciais caso tenham um ancestral que não seja branco e protestante, súbito incitou uma histeria coletiva pelo Ocidente. Estátuas de figuras tão díspares quanto Churchill e Antonio Vieira foram atacadas na Europa. Até para Colombo e a Pequena Sereia sobrou.

Estátuas de Marx, porém, permaneceram intocadas Ocidente afora. Em Cuba, a imagem do racista Che Guevara permanecia intocada não só por ser de um santo da esquerda, mas antes pela óbvia impossibilidade de fazer manifestações naquela longeva ditadura caribenha. Os ataques às estátuas foi um ataque nas democracias que atingiu tudo o que não fosse abençoado pela religião totalitária do marxismo.

Dado que as republiquetas africanas, hoje, são colônias da China, é interessante notar que em Gana houve em 2018 um precedente de cruzada contra estátuas racistas. O alvo foi Ghandi.

É bem possível que os dois surtos de histeria deste ano tenham sido causados pela China: primeiro, a mania de trancar todo mundo em casa eternamente; depois, a de mandar alguns jihadistas ateus irem às ruas destruir ícones da civilização judaico-cristã ocidental (para usarmos a expressão cara a bin Laden). Assim, quem tem um mínimo de senso crítico (que não é aquela papa que os discípulos de Paulo Freire vendem pronta, enlatada) ficou boquiaberto ao descobrir que era imoral ir a uma festa ou a uma missa, mas era bonito ir para as ruas quebrar tudo por causa de um problema dos EUA. No quebra-quebra e na festa, os homens se aglomeram, mas festa é “aglomeração” e quebra-quebra é “protesto”. O vírus dava pausa para a luta antirracismo?

Gambiarra no Brasil 

No Brasil, professores e jornalistas se assanharam, mas não conseguiram levar gente às ruas para quebrar estátuas. Só quem ia às ruas eram os apoiadores incondicionais de Bolsonaro, tachados de genocidas e terraplanistas pelos bem-pensantes. Ao menos os bolsonaristas eram consistentes: se acreditavam mesmo que o vírus era uma invenção globalista para manipular as pessoas, e não algo letal, fazia perfeito sentido se “aglomerar” em manifestações.

Desde a queda do PT, manifestação de rua não é mais coisa de mortadela, é coisa de velho bolsonarista. Com o tempo, os velhos, que mais resistiam a sair da rua, acabaram descobrindo que a letalidade ataca justo o seu grupo, e talvez por isso as manifestações bolsonaristas tenham cessado.

O quebra-quebra da esquerda dos EUA se espalhou mundo afora tão rápido, que em 31 de maio, apenas seis dias após a morte de George Floyd, o Brasil era como que retardatário. Nessa data, o máximo que o Brasil conseguiu lograr foi o tradicional quebra-quebra na Avenida Paulista, desta vez protagonizado não por mortadelas – que sumiram –, e sim por torcidas organizadas.

Esse protesto se parece com aqueles pratos improvisados que fazemos com os restinhos que estão na geladeira. A Av. Paulista é o lugar mais clichê dos quebra-quebras políticos neste país; e, do conjunto total de quebra-quebras nacionais, os protagonistas mais frequentes são as torcidas organizadas paulistas. A Av. Paulista e as torcidas eram o restinho da geladeira. Para improvisar a manifestação, faltava o motivo.

Como pardo morrendo em confronto com policial pardo é feijão com arroz, usaram como pretexto os velhinhos bolsonaristas que faziam manifestações pacíficas “genocidas” na Paulista. E pronto: marmanjões violentos foram para as câmeras posar de democráticos enquanto davam uns pontapés em um ou outro bolsonarista de meia idade que não saiu correndo de lá. Telejornais que costumam deplorar a criminalidade das torcidas organizadas logo passaram a tratá-la como heroicas defensoras da democracia contra os velhinhos bolsonaristas.

Meia dúzia de antifa pegou carona e tentou fazer algo. Este jornal até descobriu um professor da UFBa, forasteiro recém-chegado, que tentou chamar gente para ir a uma manifestação em Salvador com armas brancas para atacar “fascistas”. O coitado fracassou, óbvio; e ainda deve ter tomado um esporro do reitor, que é de esquerda mas não é besta. O professor antifa não sabe que quebra-quebra político em Salvador é coisa raríssima; o povo só gosta de trocar soco em carnaval, com finalidades hedonísticas e sem motivos políticos. O Movimento Antifa é um grupelho urbano e universitário sem a mínima expressão fora do Sudeste e do Sul.

Que têm na cabeça? 

O heroísmo oco das torcidas organizadas caiu rápido no esquecimento. Mas despertou aqui, no Brasil, a perplexidade dos que têm senso crítico. Como é possível as mesmas pessoas defenderem as quarentenas mais restritas e o quebra-quebra? De Norte a Sul, milhões de brasileiros devem ter visto o telejornal e exclamado ué, oxe, uai e bá. Depois de nos chocarmos, fomos cuidar de nossas vidas no purgatório.

Meu palpite para entender a cabeça deles é o seguinte: muita gente tem anseio pela estabilização absoluta do estado de coisas. Ao longo da história do Ocidente, esse anseio foi aplacado com a crença no Além.

Lá pelo XIX, com o advento do secularismo e do progresso científico, a religião foi perdendo a força, e a realização de um mundo fixo foi antecipada para esta vida. Surge o mito do Fim da História, que chegaria ora com os sansimonianos, ora com os comtianos, ora com os marxistas, ora com os fascistas – enfim, com toda e qualquer ideologia política que prometa acabar com as incertezas do mercado e da democracia. Saem os reis submissos à autoridade religiosa, e entram os porta-vozes da deusa Ciência, os plenipotenciários planejadores da sociedade e da economia. Uns planificam a raça ariana; outros, o preço do ovo em Vladivostok.

A sociedade hoje, de um modo geral, quer o fim da covid e o fim do racismo. Os progressistas, que têm uma religiosidade recalcada, acreditam em ritos religiosos com tanto fervor quanto um romeiro do sertão. A diferença entre um romeiro do sertão e um progressista da redação é que o romeiro aprendeu a separar assuntos sagrados de assuntos seculares. Os católicos puseram  o Senhor do Bonfim para rodar num carro de bombeiro por Salvador e proteger a cidade do vírus, mas fizeram-no sabendo que isso não é uma medida racional, e que não exclui cuidados médicos. Os progressistas têm seus ritos, mas acham que é uma medida racional e eficaz, porque não vão admitir que fazem coisas irracionais voltadas para o sagrado.

Barganhas com o sagrado em geral envolvem sofrimento ou desconforto da parte de quem pede algo. Carregam uma cruz, privam-se de algo, sobem escadas de joelhos etc. No caso dos progressistas, fizeram votos quase monásticos de castidade e de clausura. Feministas até disfarçam de empoderamento esses votos, fazendo alardes com vibradores. (Os vibradores substituem vocês sabem o quê.) Pois bem: a quarentena eterna é a promessa (ou o “orar e jejuar”) dos progressistas para acabar com a covid.

E o quebra-quebra? É tão irracional quanto a quarentena eterna. Um único ritual santo acabaria com ele. Assim, com ritos, sem razão nem parcimônia, a humanidade poderá chegar ao definitivo paraíso na terra.

Eles parecem irracionais porque são irracionais. Têm uma religião que chamam pelos nomes equívocos de razão, ciência e justiça social.

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