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Tolkien expressou aversão pela alegoria formal, mesmo assim escreveu uma interessante alegoria sobre o purgatório. Imagem ilustrativa.
Tolkien expressou aversão pela alegoria formal, mesmo assim escreveu uma interessante alegoria sobre o purgatório. Imagem ilustrativa.| Foto: Bigstock

J.R.R. Tolkien já expressou aversão pela alegoria formal ou direta, rejeitando o emprego de abstrações personificadas em seu trabalho.

Você não encontrará na Terra Média, por mais que procure, nenhum gigante chamado Desespero ou nenhuma bela mulher chamada  Filosofia. Você não encontrará nenhum cavaleiro de armadura brilhante chamado Dom Razão batalhando com um monstro chamado Espírito da Época, nem mesmo a nobre serva de Dom Razão, a Senhorita Teologia.

Mesmo assim Tolkien se entregou a essa forma de alegoria em um conto chamado Leaf by Niggle [Folha, de Niggle] no qual ele filosofa sobre o sentido da vida e o propósito da arte, levando o leitor com ele numa jornada pelo túnel escuro da morte para o misterioso reino do purgatório.

O protagonista da história é um homem chamado Niggle, uma palavra que significa “irritado”. Niggle é caracterizado por sua irritabilidade, especialmente em relação a seu vizinho, o apropriadamente chamado Sr. Paróquia, que está sempre o impedindo de terminar a enorme pintura da paisagem na qual Niggle está trabalhando e que precisa terminar antes de ser forçado a ir em um jornada inevitável.

Niggle pode ser visto como a personificação do artista, em geral, mas também como a personificação do próprio Tolkien, pois a história pode ser vista como significativa do ponto de vista biográfico.

Tolkien, como Niggle, era apaixonado por terminar sua própria paisagem literária, o legendário de contos inacabados que seriam publicados postumamente como A história da Terra Média e, como Niggle, estava sempre sendo afastado de seu trabalho pelas demandas de sua família, amigos e vizinhos.

Devido às incessantes demandas de tempo do Sr. Paróquia, o progresso de Niggle em sua pintura é extremamente lento. “De qualquer forma”, diz ele consigo mesmo, “vou conseguir fazer este quadro, o meu verdadeiro quadro, antes de ter que ir a essa jornada miserável”.

No caso, ele tem de partir para a jornada mais cedo do que ele percebeu. Um homem alto, vestido de preto, o visita inesperadamente. “Venha comigo!”, diz o homem. “Eu sou o Motorista… Você começa hoje a sua jornada”.

Niggle começa a chorar, exclamando que não acabou sua pintura. “Não acabou?” disse o Motorista. “Bem, de qualquer maneira, acabou, no que diz respeito a você. Venha comigo!”

O Motorista não dá tempo para Niggle fazer as malas, dizendo que ele já deveria ter feito isso. Pegando o trem, Niggle adormece assim que ele entra em um túnel escuro.

O significado da alegoria é bastante simples e direto. A jornada é aquela em que todos nós devemos embarcar, que nos levará desta vida para o que vier depois. O Motorista é a própria Morte, a Ceifadora, e o túnel escuro é o momento da morte, ou a passagem desse mundo para o outro.

Niggle acorda numa estação de trem.

“Ah, aí está você!” diz o Carregador, que estava claramente esperando por ele. “Por aqui! O quê! Sem bagagem? Você terá de ir para a Casa de Trabalho”. Por estar despreparado no momento da morte, por ter falhado em ficar alerta como advertiu São Mateus, Niggle está claramente inapto ao Céu. Ele é levado de ambulância para a enfermaria da Casa de Trabalho. “Parecia mais uma prisão do que um hospital”, informa o narrador.

Niggle tem de trabalhar duro, fazendo o tipo de tarefas que sempre o incomodou, porque o impedia de pintar. Ele tem de cavar muito, o que não fez em sua vida terrena (negligenciando seu jardim, para grande aborrecimento do Sr. Paróquia), e só tinha permissão para pintar placas sem enfeites com uma cor apenas.

Niggle passa muito tempo sozinho, para que possa “pensar um pouco”. Com o passar do tempo, ele começa a ver as coisas de forma diferente. Ele fica menos mesquinho com o Sr. Paróquia, quando pensa nele, e se arrepende de não tê-lo ajudado mais quando teve oportunidade. Não há sensação de pressa. Ele é “mais quieto por dentro” e tem uma paz interior que sempre escapou dele no passado.

Deitado no escuro, Niggle escuta duas vozes, uma das quais é “severa” e a outra “gentil”. A última é “uma voz de autoridade” que soa tanto esperançosa quanto triste. Ao ouvirmos as vozes discutindo “o caso de Niggle”, percebemos que são as vozes da Justiça e da Misericórdia.

Após a devida deliberação, a Segunda Voz declara que é hora de Niggle progredir para um tratamento mais suave. A Primeira Voz concorda, dizendo que Niggle deve continuar para a próxima fase de sua recuperação. Ele pega o trem mais uma vez e é levado para uma estação no meio de uma bela paisagem. Quando o trem parte novamente, ele vê uma bicicleta com seu nome escrito.

Enquanto anda de bicicleta pelo campo, começa a ter uma sensação de déjà vu. Ele parece ter visto ou sonhado com a grama na qual está pedalando. As curvas do terreno parecem de alguma forma familiares.

“Sim: o solo estava ficando plano, como deveria ser, e agora, é claro, estava começando a subir novamente. Uma grande sombra verde se interpôs entre ele e o sol. Niggle olhou para cima e caiu da bicicleta… Diante dele está A Árvore, sua Árvore, acabada. Se você pudesse dizer isso de uma Árvore que estava viva, suas folhas, seus galhos crescendo e se curvando ao vento”.

Era exatamente o que Niggle havia sentido ou adivinhado, mas tantas vezes deixara de perceber quando estava com o pincel na mão. Todas as folhas que ele já trabalhou estão lá, “como as tinha imaginado, em vez de como as tinha feito”.

Havia também outras folhas “que apenas brotaram na sua mente, e muitas outras que poderiam ter brotado, se ao menos tivesse tido tempo”.

Olhando para A Árvore, ele levanta os braços lentamente e os abre em uma expressão de louvor.

“É um presente!”, exclama ele.

Examinando a ampla extensão da paisagem ao redor da árvore, ele também reconhece como sua pintura, mas em sua forma viva e perfeita, da qual sua própria pintura era apenas uma sombra ou um prenúncio. A floresta, sua floresta, abriu-se em todas as direções e marchou para longe.

Além, estavam as montanhas, brilhando no horizonte distante. As montanhas não pareciam pertencer à imagem exceto quando algo a conecta a outra coisa, um vislumbre de algo mais distante e mais profundo do que qualquer coisa que ele já tenha visto ou imaginado.

Niggle acaba sendo acompanhado pelo Sr. Paróquia, que evidentemente também fez a jornada através do túnel escuro:

Enquanto trabalhavam juntos, ficou claro que Niggle era agora o melhor dos dois em matéria de ordenar seu tempo e fazer as coisas até o fim. Estranhamente, foi Niggle quem ficou mais absorvido na construção e na jardinagem, enquanto Sr. Paróquia muitas vezes se perguntava sobre como olhar para as árvores, especialmente para A Árvore.

Aproxima-se dele então um homem que parecia um pastor. Ele tinha chegado do alto das montanhas e se ofereceu para ser seu guia se estivessem prontos para explorar mais e mais além, além da “borda” de qualquer coisa que eles já imaginaram. O pastor explica ao Sr. Paróquia que ele tinha sido muito cego em sua vida mortal para ver a beleza da pintura de Niggle.

“Mas não parecia assim”, disse Paróquia, “não era tão real”.

“Não”, responde o pastor, “foi apenas um vislumbre, mas você poderia ter visto o vislumbre, se alguma vez tivesse pensado que valia a pena tentar”.

Niggle se despede do Sr. Paróquia, que vai ficar até sua esposa se juntar a ele, e acompanha o pastor em uma jornada para as montanhas.

Tal como acontece com a imagem das montanhas em O Grande Abismo e A última batalha de C.S. Lewis, elas representam uma visão purgatorial muito mais colorida e reconfortante do que a proporcionada por Dante.

E assim vamos deixar Niggle, que não faz mais jus ao seu nome, vagando cada vez mais para cima:

Ele iria aprender sobre ovelhas e pastagens altas, olhar para um céu mais amplo e caminhar cada vez mais longe em direção às montanhas, sempre para cima. Além disso, não consigo imaginar o que aconteceu com ele. Até o pequeno Niggle em sua antiga casa podia avistar as montanhas ao longe, e elas entraram nas bordas de seu quadro; mas como elas realmente são e o que está além delas só quem as escalou pode dizer.

Joseph Pearce é colaborador sênior do The Imaginative Conservative. Nascido na Inglaterra, Pearce é diretor de publicação de livros do Instituto Augustine e autor de várias obras, incluindo “The Quest for Shakespeare”, “Tolkien: Man and Myth”, “Literary Converts”, “Wisdom and Innocence: A Life of G.K. Chesterton”.

© 2020 Imaginative Conservative. Publicado com permissão. Original em inglês.
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