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“Uma Vida Chinesa”: a história de uma geração que passou da fome ao capitalismo

Detalhe da capa do volume 3 da graphic novel "Uma Vida Chinesa"
Detalhe da capa do volume 3 da graphic novel "Uma Vida Chinesa" (Foto: Divulgação)

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Como é nascer e crescer em um país e um momento em que mudanças políticas marcaram profundamente a vida individual das pessoas? É isso que explora a graphic novel "Uma vida chinesa" (Ed. WMF Martins Fontes), colaboração entre o chinês Li Kunwu e o roteirista francês Philippe Ôtié.

Li Kunwu nasceu na China em 1955, apenas seis anos depois do início da República Popular, marcada pela chegada de Mao Tsé-Tung ao poder. Seu pai era o filho revolucionário de uma família dona de terras, e sua mãe uma camponesa: os dois se conheceram enquanto ele viajava pelo interior em campanha pelo Partido Comunista. Isso quer dizer que sua infância foi marcada por uma criação que valorizava os ensinamentos de Mao e os valores da sociedade chinesa.

"Para um homem nascido no início dos anos 1950, como o herói desta epopeia extraordinária, a vida evolui como um livro de história, confundindo-se com a epopeia maoísta que dominou a vida da China até a morte de seu chefe supremo em 1976 e com as grandes transformações dos últimos trinta anos", diz Pierre Haski no prefácio do livro.

E esse é de fato um dos aspectos mais interessantes do livro: mostrar como as grandes políticas públicas impactavam fortemente a vida da população. Kunwu passou fome durante o Grande Salto Adiante — milhões de pessoas morreram neste período; fez parte de um grupo mirim de investigação e denúncia de pessoas com "comportamentos inadequados" durante a Revolução Cultural; precisou decidir entre ser soldado ou camponês para servir o partido quando chegou à fase adulta.

Um dos debates do livro é como que as diversas mudanças políticas chinesas fizeram com que as gerações sejam muito diferentes entre si. O protagonista do quadrinho é da geração de "filhos do Mao" - ou seja, os que eram crianças no auge do poder político de Mao Tsé-Tung. É uma geração com "sede de êxito, de reconhecimento e desejo de deixar uma herança positiva às gerações seguintes", esclarece Haski. É uma geração que viveu períodos de fome e necessidades extremas, acreditando que era em prol do país.

Filhos de Mao

O Grande Salto Adiante, política que começou em 1958, trouxe a criação das "Comunas Populares", quando os moradores deveriam acordar juntos, ir trabalhar juntos e inclusive comer juntos em grandes refeitórios, com perda total de qualquer noção de vida privada. As medidas voltadas para o aumento da produção têm quase o efeito reverso: logo a China entra em um período de grande fome. A lógica é relativamente simples: se cortam todas as árvores para ter combustível para fazer aço; animais e predadores que antes viviam nas florestas atacam as plantações, as plantações não dão conta de alimentar a população.

Logo depois vem o momento da Revolução Cultural, quando Kunwu passava da infância para a adolescência. Aqui, a narrativa retrata bem como foi convencido pelo discurso extremista e assumiu para si o papel de mudar a sociedade, denunciando quem fizesse algo diferente do que o proposto por Mao. Isso incluía a destruição de obras de arte e objetos históricos. No livro, Kunwu comenta: "como muitos, tento evitar olhar demais para trás, para não deixar a memória me levar ao remorso. Mas, na verdade, aquele que outrora destruiu, na despreocupação da juventude, tantas e tantas maravilhas daria tudo para recuperar hoje nem que fossem alguns poucos daqueles objetos maravilhosos que traziam em si nossa história".

Esse período traz inclusive problemas para a família de Kunwu. Com ideias cada vez mais extremas, o partido não vê mais com bons olhos seus membros iniciais, que por vezes se opunham às novas medidas. É o caso de seu pai, que por ter família que no passado foi dona de terra imediatamente se torna um traidor e é levado para um campo de reeducação. Kunwu segue para o exército e sua irmã vai para o campo — a família é completamente afastada e não se comunica com facilidade (o livro apresenta algumas cartas que trocavam esporadicamente).

O primeiro volume (de três no total) termina com a morte de Mao, o que deixa a população desnorteada. "Já faz quatro dias que o grande timoneiro nos deixou. Nunca imaginei que isso poderia acontecer, que teríamos de viver assim. Sem ele. Sozinhos, Desamparados… ".

Abertura política

Com a morte de Mao, começa a circular o boato de que existiram quatro pessoas (incluindo a esposa de Mao) que eram responsáveis pelas medidas políticas desastrosas dos últimos anos — o "Bando dos Quatro". A imagem foi amplamente divulgada pelo exército. Com os quatro culpados por todos os problemas da China, o que eximiu a culpa de Mao e se manteve o ídolo nacional, houve o espaço para a criação de um novo sistema e a abertura política e econômica da China.

A população finalmente se torna otimista. Há a criação de empregos — Kunwu, que chegara a atuar como desenhista do exército, se torna ilustrador de um jornal e volta a morar com a família, assim como seu pai, que finalmente pôde sair do campo de reeducação. A circulação de bens de consumo se intensifica e se solucionam alguns dos problemas anteriores, além, claro, da chegada de turistas estrangeiros.

Para Kunwu, a maior mudança começa em 1982, quando a China se abre para capital estrangeiro e privado. "Eu ainda não tinha consciência disso, mas minha vida, como a da maioria de meus concidadãos, seria então menos épica. Acabavam-se os grandes arroubos utópicos com final dramático", admite.

Mais do que uma autobiografia, "Uma vida chinesa" é um relato importante e impactante de uma geração de chineses que viveu muita história para uma vida só. De otimismo com mudanças a abusos extremos, essas pessoas tiveram suas vidas marcadas pela política do período.

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